Benedita Paes de Vasconcellos tem 63 anos, é mãe de três filhos e avó de duas netas. Ao contrário do que é habitual — normalmente os filhos é que ficam com o negócio dos pais, dos avós ou da família — foi ela quem herdou o negócio do filho. O negócio era um hostel no centro de Lisboa. Hostel que há nove anos colocou entre os melhores do mundo: é agora o melhor português e o terceiro melhor mundial e nunca esteve abaixo do top four.
É a história deste negócio, das experiências das suas viagens — desde o Irão à Mongólia, até à Rússia, onde experimentou o que é ser astronauta –, da grande paixão por animais — que já a fez ser tratadora de chimpazés ou estar ao lado de gorilas –, mas também da família — em especial da relação com as duas netas, educadas para andar ao colo até terem um ano — que falou com Laurinda Alves. É mais uma conversa do programa “Imperdíveis”, da Rádio Observador.
Posso começar por lhe perguntar como é que se define?
Como é que me defino a mim própria?!, isso é uma pergunta um bocadinho… Sou uma pessoa lutadora, que não me conformo com as situações que se me deparam no dia a dia. Basicamente, é essa a minha definição: uma pessoa muito tolerante e uma pessoa que tenta sempre resolver os problemas.
Uma pessoa que aposta muito no staff, na equipa, no team bonding, nos laços que se criam?
No hostel temos um serviço de pessoas para pessoas e, portanto, as pessoas são a coisa principal. Aliás, as pessoas são o principal desta indústria. E, por isso, ponho todo o meu empenho em conseguir formar um staff que queira e goste de receber os hóspedes como se fossem amigos.
Como se fossem família, se calhar.
Como se fossem família, como se fossem…
Se calhar é isso que lhe dá depois as reviews e que faz com que esteja sempre neste pódio mundial. É?
É o principal. Mas há também toda a outra parte que é tomar conta de uma casa, que é a parte chata de um trabalho destes. As camas, os pequenos-almoços, jantares…
Sobretudo numa casa onde todos os dias há entradas e saídas.
Saídas novas e milhares de lençóis e milhares de coisas assim. Mas essa é uma parte que é fácil de gerir, a parte da casa grande é uma parte que é relativamente fácil de gerir desde que a estrutura esteja bem montada. O que é difícil mesmo é…
A parte humana?…
Ter a certeza que as dezassete pessoas que trabalham comigo tenham a vontade de agradar a toda a gente e tenham a vontade de colaborar uns com os outros.
E, na verdade, têm?
Pois, têm que ter.
Se ficou em primeiro lugar em Portugal e em terceiro no mundo, têm que ter.
Obrigada!
Se calhar, devia ter começado por aí. Muitos parabéns, porque é uma proeza incrível. Há mais de cinquenta mil hostels no mundo, tantos e tão bons que não deixa de provocar admiração e fascínio perceber porque é que o seu faz a diferença e está neste pódio. Como é que começou tudo isto? Como é que herdou um negócio do seu filho?
Tenho três filhos todos diferentes uns dos outros. Um deles, às tantas, resolveu abrir um hostel quando só ainda havia dois em Portugal. Ele abriu-o juntamente com um outro: foram os quatro primeiros em Lisboa.
Isso foi em que ano?
Há treze anos, mais ou menos. E, logo na primeira semana, ficou cheio e o João sempre esteve no top ten também dos hostels.
Em inglês, uma pessoa pode dizer “it runs in the family” (é de família). Aliás, esqueci-me de dizer que tem um lado germânico — já falaremos também sobre isso — que faz de si também uma gestora muito afinada…
O que aconteceu foi que ao fim de quatro anos o João fartou-se: disse que estava farto de ser dona de casa e partiu para outras vidas, digamos assim.
Foi para fora do país?
Foi para fora do país e estávamos em plena crise. Eu, que trabalhei durante vinte e tal anos na produção de decoração, estava sem trabalho. Detesto estar sem trabalho, detesto estar sem nada para fazer. Estava a ficar preocupada. Quando o João veio ter comigo e disse “ó mãe, vou vender o hostel porque estou farto de ser dona de casa”, no mesmo minuto disse: “Então fico com isso”.
E na altura tinha 54 anos. Ele achou extraordinário?
Não sei se achou extraordinário, mas disse “está bem”. Nós somos um bocadinho impulsivos lá em casa e, portanto, as coisas são decididas assim.
Tem um rapaz e duas raparigas. Uma muito artista…
Uma muito artista…
Uma muito ligada a causas humanitárias e à gestão…
Sim.
E este seu filho ao business…
Não, nem tanto business. É um “goza a vida” sem estar em muitos problemas (risos).
E a partir do momento em que herdou este negócio de repente, nunca se arrependeu?
Nunca me arrependi apesar de ter imensas saudades da produção de decoração, que era mesmo o que gostava de fazer.
Mas aplicou isso no hostel?
Fiquei com o hostel do João — que não é o meu agora — e pensei: “Ah, quem tem um, tem dois”. Estava um à venda por um preço bastante acessível e achei que era capaz de fazer um bom negócio. De repente vi-me com 125 camas na mão para gerir, staff e tudo o resto em dois hosteis. Foi um desafio. Lembro-me do primeiro dia que entrei no hostel do João para anunciar que, agora, era meu. Fui ter com uma empregada nossa, que ainda está a trabalhar connosco e em quem confio plenamente, e disse-lhe: “Olha, eu não percebo nada disto. Tens de me ajudar”.
Não sei se há muitas pessoas a fazer isso.
Pois, não sei. Saiu-me completamente instintivamente. De resto é a minha filosofia, não é? Nós, como gestores, não abrangemos os campos todos. Tinha uma amiga minha que me dizia várias vezes: “Um bom gestor não é aquele que sabe fazer tudo, mas aquele que se sabe rodear das pessoas que o sabem fazer”. E é um bocadinho isso que faço. Não percebo de marketing, não percebo de redes sociais, não percebo… Há tantas coisas que não percebo! O que preciso é de encontrar a pessoa certa que o saiba fazer e que, sob a minha — nem é orientação, a minha guidance, digamos assim — faça aquilo que quero e que sou capaz. Mas bem feito.
Quem é esta sua colaboradora que a ajudou inicialmente — não sei se quer dizer o nome ou não?
É a Tatiana.
Não sei se os outros dezasseis do staff vão ficar com alguns ciúmes.
Não, que a Tatiana é, de longe, a que está lá há mais tempo. A Tatiana trabalha connosco há doze anos.
Uma com a outra conseguiram entrar e encontrar as pessoas certas?
Sim, primeiro comecei por arrumar a casa. O meu filho João não era propriamente o mais indicado para isso. Comecei por tentar perceber o que é que era um hostel, perceber o que é uma empresa de prestação de serviços a hóspedes — portugueses ou não. E, a pouco e pouco, fui começando a entender que não era só uma questão de ter a cama limpinha, o pequeno-almoço, as casas de banho, a água quente a funcionar, a própria indústria dos hosteis foi evoluindo.
E expandindo-se.
Foi evoluindo. Há grandes cadeias de hosteis que estão já em Lisboa que, no fundo, vendem uns edifícios espetaculares, uma decoração maravilhosa, umas camas fantásticas — mas não têm aquilo que chamo “S”, de socializing.
E o que é que faz para isso?
Atividades… O hostel é um hotel com “S” de sharing e socializing: é essa definição que tenho de hosteis.
E o que é que faz? Atividades é uma coisa muito abstrata.
Todos os dias tenho que facilitar o contacto das pessoas umas com as outras. Porque há muitas pessoas que viajam sozinhas e cada vez mais estou a trabalhar para essas pessoas.
Ou seja, posicionou-se no mercado para…
Para o solo traveller.
As pessoas sabem que indo para o seu hostel — além destes bons reviews (críticas) e de estar em primeiro lugar em Portugal e em terceiro lugar no mundo — que é um sítio onde podem fazer um match (correspondência) com outras pessoas. Até promover outro tipo de relações…Claro! As pessoas são livres e há que respeitar. Aliás, mudei agora o nome do meu hostel para “Good Morning Solo Traveller Hostel”, exatamente para que seja essa a perceção das pessoas que reservam comigo saibam que isso vai acontecer e que vejam nos reviews o que é que acontece. Desde o momento em que eles entram no hostel, o meu objetivo e a minha preocupação é eles encontrarem outras pessoas com quem partilhar, com quem dividir, com quem fazer programas, com quem conversar, com quem trocar impressões. E é esse o objetivo.
Temos desde jogos de nomes, a uma hora de bebida grátis ao fim do dia, que faz com que as pessoas queiram vir. Tomam o seu duche e vão para a sala — e têm uma hora de bebida grátis. Começam todas a conversar umas com as outras. O hostel fica cheio a essa hora e depois partem aos dois e dois, três e três, partem para as atividades…
De repente um grupo de pessoas que entra isolada parece já ter um grupo de amigos, já há uma relação…
É isso. Ou tocam música, ou… E, fora isso, tenho jantares…
A cozinha: como é que a cozinha é usada?
A cozinha é toda construída à volta de um fogão.
A cozinha tem lá qualquer coisa a dizer “hoje a mãe não está em casa”, como quem diz…
Lava os pratos se faz favor (risos).
Lavem tudo, ponham tudo no sítio porque hoje a mãe não vem trabalhar (risos).
Temos jantares todos os dias. Mas antes, ao pequeno-almoço, que é muitas vezes feito pela Tatiana, comçeam logo as relações. Ela é a pessoa mais extrovertida que conheço e consegue logo dizer: “Ai, és coreano”, “ai, és coreana”, “olha, vocês estão os dois a viajar sozinhos ou…”, “ah, tu és dinamarquês, tenho aqui também outra pessoa do norte da Europa”… Consegue estabelecer essas relações. E já muitos outros também o conseguem fazer. Ao princípio com um bocadinho mais de dificuldade, mas ao fim de dois meses de estar lá a trabalhar já o fazem lindamente.
O segredo do sucesso, a alma do negócio, é o staff.
É o staff. Todos eles.
O que é que aprende mais sobre a natureza humana sendo dona de um hostel — neste caso do hostel que está em terceiro no mundo e em primeiro em Portugal?
Não sei o que é que aprendo deles propriamente ditos. Da natureza humana é que todas as pessoas são diferentes. Todas as pessoas têm maneiras de interpretar, de ouvir, de receber as mensagens e de pensar diferentes. É mais uma aprendizagem minha sobre como olhar para essas pessoas e não as classificar.
Ou seja, olhar sem julgar. Olhar de aceitação.
Totalmente sem julgamento. É o meu lema de vida, porque as pessoas são como são e cada pessoa tem a sua história. Cada pessoa tem o seu carácter . É olhar para elas e pensar: “Esta pessoa é assim”, “tu és assim”. Então, vamos lá aprender e saber lidar, ver o melhor que cada pessoa tem.
E houve algum episódio ou há alguma coisa que num hostel as pessoas não sabem? Imagine, às vezes penso: “Deve ter percevejos”. Ou pode ter piolhos. Isso acontece? Mesmo no melhor hostel do mundo?
Acontece, claro, mesmo no melhor hostel do mundo. Os percevejos não sabem se as malas são Louis Vuitton. Fazemos desinfestações regulares e não regulares.
E não tem beliches de madeira? Não deixa que os bichos entrem?
Não temos, não. Tentámos! Já tivemos episódios desses, como todos os hotéis. Não acredito em alguém que me diga que não teve. Mas tentamos sempre lidar com isso. Já deitei fora camas. Agora é tudo de ferro.
As viagens, o campo espacial e os animais
Saímos do hostel para uma das suas grandes paixões: viajar. Viaja incansavelmente e incessantemente. A última viagem que fez foi para fazer uma experiência de astronauta. Foi para um space camp (campo espacial) em Moscovo, na Rússia. O que é que aconteceu?
A minha família tem uma tradição do… ar. O meu pai tinha o brevet, a minha mãe tem o brevet de avião com motor e sem motor, eu tenho brevet de avião com motor e sem motor. Portanto, a nossa experiência tem muito a ver com o ar.
É uma novidade para mim, peço desculpa não ter falado sobre isso. Não investiguei bem.
Tenho muita coisa que as pessoas desconhecem.
Uma caixa de surpresas.
Apesar de o ar nunca ter sido a minha paixão. A minha paixão de desporto era outra, diferente.
Os cavalos.
Os cavalos, claro. Mas acho que deve ter ficado lá qualquer coisa… Nós vivíamos no meio dos aviões. A minha mãe levava a alcofa do bebé com o meu irmão para o campo de aviação: ia voar e a alcofa do bebé ficava ali, à guarda das pessoas que tomavam conta dos hangares. Portanto, a nossa experiência de vida foi muito à volta do ar. Em busca de coisas novas para substituir a perda dos cavalos.
Deixou de poder montar a cavalo por questões de saúde.
Sim, exatamente.
Mas a idade — acho que é importante falarmos da idade, uma vez que tem 63 anos, herdou o negócio do seu filho aos 54 — parece não contar. Acabou de fazer uma viagem em que foi…
Ao espaço.
Exato, uma viagem ao espaço em que foi astronauta. Tem o brevet e, portanto, não tem problemas de idade. Há muita novidade em cada idade? “Nova idade”, novidade?
O tempo todo de vida em que montei, viajar significava não montar. Era sempre uma dualidade muito grande: “Vou viajar ou fico para montar?” — que era aquilo que mais gostava de fazer. Quando tive que deixar de montar foram dois anos e dois meses a chorar. E, depois, de repente, pus as coisas para trás das costas. “Então toca lá de encontrar qualquer coisa que te preencha um bocadinho esse vazio”, pensei. E comecei a viajar. Porque já não precisava de cá estar.
É preciso também ter bolsos fundos. Podemos viajar lowcost ou highcost.
Há várias. Já viajei low cost e já viajei high high high cost.
Uma viagem a um campo espacial é high cost?
Medium. Depende da pessoa. Para mim, posso dizer que seja uma coisa medium cost. Para uma pessoa normal que recebe o seu salário médio ao fim do mês é muito high cost, digamos assim. É “custativa”.
Ou seja, custa cerca de…
Oito mil euros, talvez, com viagem e tudo. É muito high cost, portanto. Penso que para a grande maioria das pessoas é inatingível.
Mas é uma viagem única, é uma experiência única. Conte lá como é que foi essa experiência de ser astronauta e de zero gravity (gravidade zero).
Zero gravity, zero companhia, porque as pessoas que eu desafiava…
Pois… Foi a primeira e única portuguesa que fez esta experiência neste space camp.
Fui. Não arranjei ninguém para vir comigo e resolvi ir. “Não vou estar à espera de pessoas para virem comigo para fazer isto que quero tanto fazer”. E decidi ir sozinha para a Rússia. Confesso que fui com um bocadinho de borboletas no estômago, sem saber o que é que ia encontrar, porque era uma agência online. Uma pessoa fica sempre um bocadinho desconfiada das agências online. Mas informei-me e pareceu credível e lá estava uma pessoa à minha espera no aeroporto de Moscovo.
Que alívio (risos).
Foi mesmo um alívio muito grande. Passámos dois dias na star city, que é a cidade onde tudo se passa. Menos os lançamentos, que são no Cazaquistão. Mas é nesta cidade que está a tecnologia, os engenheiros, os astronautas… Tudo o que é preciso de staff à volta de um programa destes. E nós estivemos lá dois dias.
Ou seja, uma espécie de formação.
Não, formação não foi precisa muita, não. Foi darem-nos a conhecer um bocadinho aquilo que têm. E o que fizeram para trás. Eu já posso dizer que estive dentro de uma das cápsulas que veio do espaço e voltou… Aquelas que antigamente se viam na televisão que caíam com um pára-quedas no meio do mar e de que os astronautas saíam lá dentro Estive dentro dessas cápsulas. Dentro da réplica exata da Mir, que se desintegrou. Estive lá dentro a experimentar as coisas todas e, depois, no dia seguinte foi o voo — que foi extraordinário.
Ou seja, no dia seguinte vestiu-se de astronauta e teve a experiência total.
De gravidade zero. Beber água…
Como é que se bebe água?
A garrafa é de baixo para cima e espreme-se e sai uma bolha de água que nós tentamos apanhar com a boca (risos).
E uma pessoa não fica engasgada, não acontece nada?
Aquilo é tão divertido que não dá para pensar. E, se engasgar, paciência (risos).
E uma pessoa querer encontrar um objeto ou se há qualquer coisa que nos escapa da mão?
É engraçado, porque é a nossa inclinação do corpo que dá a orientação da trajetória.
Mas o que nos acontece é como os balões de hélio, não é? Se não fizer nada, de repente fica-se colada ao teto.
Eles faziam soar um “pam” e nós começávamos a subir, a subir, a subir. Estávamos lá em cima encostados ao teto do avião, que era uma coisa enorme, e é o avião onde os astronautas fazem o treino.
E o que é que uma pessoa sente? Sente-se atordoada, sente-se enjoada, não sente nada, sente-se levíssima? Sente-se o quê?
Até o próprio cérebro deixa de ter gravidade. As conexões são todas diferentes, aquilo quase que não sente nada. É mesmo um vazio: a gravidade é um vazio de tudo. Quando o avião fazia a trajetória ao contrário, era a gravidade 2G’s. Então estávamos colados ao fundo do avião e não nos conseguíamos mexer. Aí, eu punha-me a pensar: “Uau, o que é que eu senti?”.
Mas quando está num momento de gravidade zero uma pessoa sente os dentes, sente os olhos, sente as mãos, sente o seu corpo? Quer dizer, sente muita leveza intra-craniana.
Não se sente o corpo (risos).
Qualquer pessoa gostaria de fazer essa experiência…
Agora gostava de ir à Lua, mas essa já não é para mim.
Às tantas… sabe-se lá.
Sabe-se lá.
E depois quando voltou, não houve sequelas?
Não, não houve sequelas nenhumas. Estive ligeiramente enjoada porque as cambalhotas no ar foram imensas e fizemos imensas coisas, imensas… lá em cima no ar.
Também já foi ao Irão.
Fui ao Irão e deixo aqui dito para todas as pessoas que me ouvem, que é o povo mais fabuloso que conheci até hoje.
Em que sentido? Fabuloso do ponto de vista cultural, certamente.
Do ponto de vista cultural, o próprio país é uma cultura, tem um legado cultural extraordinário. O povo é tão acolhedor, tão… Senti-me protegida por baixo dos braços deles. Eles sorriem, mas sorriem sem serem falsos. Eles ajudam, prontificam-se.
Um povo afável no contacto.
Muito afável no contacto. Eles querem receber-nos e querem contactar connosco. Adorei o Irão como povo, não foi certamente a viagem que mais adorei. No caminho até aqui vinha a pensar quais é que tinham sido as minhas viagens fantásticas, para além desta que passou pela experiência do espaço.
E quais é que foram?
O meu encontro com o gorila Silverback.
Adora animais. Sei que já esteve sozinha com gorilas e que havia macacos e gorilas que iam de mão dada consigo.
Não, não, não, isso são os chimpanzés.
Chimpanzés! Isto é de quem não percebe nada de animais e capaz de confundir gorilas com chimpanzés. Então vamos por partes: primeiro os gorilas e depois os chimpanzés.
Estive na selva no Uganda a fazer um encounter, um encontro com os gorilas. Consegui levar a minha família toda para vermos os gorilas ao pé de nós. Foram sete horas a caminhar numa floresta virgem. Até que encontrámos a família dos dezassete gorilas e estivemos uma hora com eles.
É tudo aos dezassete! Os dezassete funcionários do hostel, os dezassete gorilas (risos).
Pois, também estava a pensar nessa coincidência! Foi extraordinário, foi realmente qualquer coisa de extraordinário. Aquele silêncio… Porque os animais, como não falam, impõe-se um silêncio muito grande para podermos estar com eles. Foi ótimo.
E como é que vocês fizeram para eles não se sentirem ameaçados?
Vamos com uns guardas. São eles que contactam esta família de gorilas diariamente. Sabem acalmá-los através de sons. Não me senti nada insegura.
E quando vocês chegaram, qual foi o comportamento que tiveram que adotar? Até onde se pode ir?
Não podemos estar a menos de um metro de distância deles, não nos podemos rir. E depois é tudo uma questão de bom senso. Não podemos dar uma gargalhada, não podemos fazer barulho, não podemos fazer gestos bruscos para eles não interpretarem isso como uma ameaça.
Mas rir para eles é uma ameaça?
Sim, rir é mostrar os dentes. Porque quando eles mostram os dentes não é no sentido de sorrir, mas ameaçar. Foi uma coisa… Não tem descrição.
Feito em família, com o seu marido e os seus filhos.
Não, o meu marido não quis ir. Mas fui com os meus filhos e a minha irmã. Fomos os cinco.
E em relação aos chimpanzés, como é que foi essa experiência?
A caminho dos gorilas tínhamos ido ver chimpanzés. Voltei passado uns anos para tentar ser tratadora de chimpanzés na ilha patrocinada pela Jane Goodall, onde ela alberga os chimpanzés que são recolhidos por maus tratos. E estive a fazer de tratadora dos chimpanzés.
E quando uma chimpanzé que se afeiçoa a si, há outras que têm ciúmes?
Não. Houve um episódio muito giro, aí sim, com o meu marido, em que deixei passar uma chimpanzé à frente. E a Sarah — que era como se chamava a chimpanzé com quem ia — desceu do meu colo, pegou-me na mão e correu para a frente do outro como quem diz: “Eu é que sou a líder, eu é que vou à frente”. Fizemos essa experiência duas vezes.
Ou seja, estrategicamente passou para trás para ver se ela repetia a proeza.
Repetia sempre: descia o meu colo, dava-me a mão, puxava-me para a frente e tornava a subir para o meu colo. E pronto, continuávamos assim. Foi giríssimo. O encontro com os animais é qualquer coisa de extraordinário. Eles têm tanto para nos ensinar!
Já falámos de cavalos, já falámos de gorilas, de chimpanzés. Que outros animais é que a encantam e com quem sente afinidade?
Com os cães, claro. Tenho dois cães que adoro… Há outra experiência que gostava de contar. Os dez dias que passei na Mongólia, a cavalo e a dormir com os locais, a comer carneiro, a ver luta de iaques. Andávamos de cavalo, andávamos de família em família. Não é um hotel de cinco estrelas, é um hotel de cinco milhões de estrelas, porque dormíamos quase ao relento, tomávamos banho no rio e cozinhávamos com lenha. Sem internet, sem eletricidade, sem água corrente.
No nothing (nada de nada).
No nothing, só carneiro e batatas (risos).
E céu.
E céu. Milhões de estrelas, a via láctea como nunca tinha visto na minha vida. É uma sensação extraordinária uma pessoa deitar-se com as mãos atrás da cabeça e olhar para aquelas estrelas e ouvir o barulho dos animais ao fundo. Não há mais nada, não há os “cri-cris” porque aquilo é tão frio que não há grilos, portanto, só se ouvia os iaques a lutar e as vacas…
E ouvem-se os chifres, ouvem-se os cornos?
Sim, sim, ouve-se, ouve-se, ouve-se. É muito assustador e intrigante também. Foi uma experiência maravilhosa.
Como é que se chega à Mongólia? Que tipo de endurance (resistência) é preciso ter? Primeiro é preciso saber montar bem a cavalo, depois é preciso não ter medo da natureza e dos animais, dos bichos, não é?
Dos bichos sim, porque dormíamos com os bichos à nossa.
E que tipo de bichos? Ali não há escorpiões?
Não, são iaques, uma coisa enorme. E à noite se queríamos ir à casa de banho era lá fora. Porque não havia casas de banho.
E pode vir um iaque.
Pode aparecer um iaque.
E se aparecer, o que é que uma pessoa faz? Quais são as normas de segurança?
Para um iaque não há problema nenhum, eles não nos atacam, nós não somos ameaças para eles. Basicamente, é só encostar a mão e afastar.
E o povo na Mongólia? Já que a condição humana, a natureza, os animais são de facto o seu ADN.
A experiência com o povo local é o que gosto de uma viagem. Não é propriamente ver os monumentos, museus, não é isso que me entusiasma: é a experiência com o povo local. E nós na Mongólia tivemo-la. Dormimos com eles, cozinhámos com eles, aprendemos com eles. Não havia comunicação linguística porque eles não sabem nada de inglês. Ainda estão muito, muito, muito sob a influência russa.
Mas para eles um sorriso é um sorriso.
Sim. Nós fomos à Arménia também e consegui com uma arménia, ela sem falar uma palavra de inglês e eu sem falar uma palavra da língua dela, perceber que tinha oito netos, o mais velho tinha quatro anos, que tinha três rapazes, cinco raparigas… E na Mongólia o primeiro passeio a cavalo que fiz sozinha com a dona dos cavalos — porque era do grupo todo a que sabia montar melhor — e fui com ela buscar o gado, começámos por mostrar como se dizia cavalo, cabeça, braço. Acho que acabámos nos palavrões.
Já falámos em várias viagens high cost, high high level, e que tal falarmos aqui de viagens mais tangíveis para pessoas comuns?
Não gosto de viajar por viajar. Tenho um projeto, também posso viajar para mais perto. Por exemplo, fiquei fascinada com a homenagem ao soldado da II Guerra Mundial em Washington (EUA). Todos os cargos profissionais de um exército estão reproduzidos em bronze à escala natural, com todo o pormenor. Há aquele exército dos guerreiros de terracota da China, mas ainda não me propus a ir à China, qualquer dia vou. Mas soube que havia em Londres uma exposição com esse tema e fui lá. Meti-me no avião e fui a Londres ver a exposição. Por isso, para mim, viajar é ir com um objetivo. Não é ir só por ir.
Como contava a Joana Carneiro aqui há pouco tempo, o avô dela dizia: a vida é sempre para a frente.
Pois, é lutar e ter um objetivo. Esta viagem do espaço há dez anos que estava a pensar nela. E há dez anos que dizia: “Tenho que ir, tenho que ir”. Mas tem que se esperar.
No limite, podemos poupar durante anos para fazer uma viagem, que é a viagem da nossa vida.
Durante anos. É uma questão de se lutar um bocadinho e ter objetivos. Sobretudo ter objetivos para lutar por isso.
Não está a fazer uma exibição das viagens que fez. Mas sim das viagens que consegui “fazer com o propósito”.
Claro. Esta de Londres fui numa low cost, cheguei lá, dormi num airbnb e voltei. Não têm que ser viagens caras: têm que ser viagens que me tragam qualquer coisa. Só que cultura do mundo é uma cultura que me entusiasma tanto e que me desperta tanta curiosidade que é por isso que vou para longe.
A vida familiar e o “regresso à escola”
Também por isso é que depois consegue voltar e gerir o hostel?
Ajuda-me imenso porque conheço as culturas. Não só pelas viagens, mas também um bocadinho por aquele curso que estou a fazer há cinco anos…
Podemos falar um bocadinho desse curso…
Estas duas coisas juntas — o curso e as viagens — ajudam-me a perceber que as culturas são todas diferentes. Há sempre uma matriz comum cultural diferente de país para país, uma razão para se entender porque é que as pessoas são assim. Por exemplo, um hóspede chinês, um viajante chinês é uma pessoa muito egoísta e uma pessoa que não sabe partilhar. Porque eles não têm irmãos… Os chineses são pessoas muito individualistas. Já o os indianos não têm muita noção de privacidade. Aprendo tanta coisa a viajar que me faz entender estas coisas. E passo essas mensagens ao staff. Porque há povos que reclamam mais do que outros. Porque há povos mais contemporizadores. Nós lidamos com culturas de todo o mundo.
O que é que não tolera nos outros?
A injustiça. Falta de tolerância. A palavra “eu acho”. Quando não foi perguntado o que acha, as pessoas não têm que achar.
Explique lá isso melhor. É o “achismo”, estamos a falar do “achismo”? Toda a gente acha qualquer coisa?
Do achismo, toda a gente acha qualquer coisa sobre uma determinada circunstância, ou sobre uma determinada situação, quase que a condenar: “Eu acho que não deve ser assim”.
É um “eu acho” “julgamentoso”.
Exatamente. Não tolero, porque nunca o faço.
Mas somos humanos (risos).
A situação com a qual mais dificilmente lido é com a falta de tolerância que as pessoas têm com a evolução e com a diferença e com a maneira de estar e de pensar diferente.
E o que é que mais gosta, mais admira e a encanta nas pessoas?
Não consigo dar uma definição do que é que me encanta. Tem de haver uma química, porque tenho amigas que se as definir como pessoas, se calhar são o oposto daquilo que poderia definir como o que gosto nas pessoas. No entanto, sou amiga delas e gosto delas.
Não tem que se identificar com elas, é isso?
Não tenho que me identificar com elas. Não têm de pensar da mesma maneira que eu porque as pessoas pensam todas diferente.
Além de tudo aquilo que faz, de tudo o que viaja, de tudo o que gere, também está a estudar. Que curso é esse?
É um misto de ciência política internacional, história e liderança. É uma coisa que adoro fazer.
Quem é que dá esse curso?
Não sei se posso dizer. É uma comunicadora extraordinária, uma pessoa que tem uma cultura enorme.
Porque é que não se pode dizer? Porque, tanto quanto sei, esse curso está com listas de espera brutais e…
Exatamente, para não as aumentar.
São quantos, trinta pessoas?
É um bocadinho mais. Na minha aula sei que são uns quinze. Quinze privilegiados que nos aventurámos há quatro ou cinco anos. Vamos entrar agora para o quinto ano. E o que é extraordinário é que são pessoas — há duas pessoas mais novas que eu –, que estamos todas numa faixa etária bastante mais velha e ninguém desistiu.
E têm que estudar?
Temos que ler, digamos assim. Não é estudar para uma escola para fazer testes.
O que é que estão a ler agora, o que é que estão a estudar?
Este ano vamos dar a história entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, mas começámos por dar a volta ao mundo no primeiro ano. O segundo ano estivemos a falar sobre as grandes lideranças inseridas no contexto histórico. Portanto, dávamos o contexto histórico e o líder que estávamos a estudar…
Estamos a falar de um Churchill…
Golda Meir, Churchill, Sun Tzu…
Mandela?
O Mandela por acaso não demos, mas pode ser que qualquer dia isso vá acontecer.
E o terceiro ano?
No terceiro ano demos os impérios. No quarto ano foi os austro-húngaros, os Habsurguers, digamos assim, que acabou no império austro-húngaro.
No meio disto tudo, há os três filhos, já crescidos, já fora de casa. E há duas netas, não é? Uma recém nascida e outra com três anos. Como é que é a sua relação também com as crianças, num tempo que hoje em dia os avós trabalham…
Arranja-se. A minha filha não vive em Lisboa, vive no Alentejo, e tento sempre todas as semanas ir lá de manhã. Saio às sete da manhã de casa, vou até lá, passo a manhã toda com elas, com as netas. E, depois almoço, volto e venho para o curso (risos). É uma relação maravilhosa.
Se a sua neta tem um dedo do pé magoado…
Eu estou lá. Quero construir uma relação de avó-neta, quero mesmo. Estou mesmo empenhada nisso, em construir uma relação muito grande com as minhas netas. Tentar dar-lhe um bocadinho daquilo que consegui, daquilo que sei… Abrir-lhe essas experiências. A minha neta com três anos todos os dias me diz que quando tiver dez anos vai nadar com os golfinhos comigo.
Vai nadar com os golfinhos. Depois, se calhar, um dia vai voar.
Talvez.
Quer dizer, voar vai de certeza absoluta. No sentido metafórico voa de certeza, através das suas viagens.
Sim, vai voar. Com as minhas viagens e tudo o que lhe vou contando, vou mostrando que o mundo é extraordinário e maravilhoso.
E ela, com três anos, tem uma relação boa com os animais?
Sim, sim. Ela não nasceu em África, mas com dois meses foi para África. Viveu no meio do mato, no meio de Moçambique, onde não havia nada e os dois companheiros de brincadeira eram dois cães (risos).
A sua filha diz que uma gravidez não são nove meses, são doze. Que há três meses para ter o bebé muito ao colo e muito próximo do que é a pele…
É a filosofia africana, a maneira como os africanos lidam com os bebés. Eles estão nove meses dentro da barriga e não os podemos separar de um momento para o outro do nosso corpo. E então os últimos três meses dessa gravidez de um ano, o bebé tem de estar ao colo, agarrado a nós à frente, atrás, de lado, deitado, em pé. Seja como for, mas é a maneira como eles estão tranquilos.
Enrolado nos panos.
Nos panos. Os africanos têm aqueles planos, agora no mundo ocidental há assim umas coisas um bocadinho mais sofisticadas.
E vê na sua neta que ela é mais tranquila…
É impressionante a tranquilidade dela, porque não deixam chorar. As minhas netas nunca choram, porque mal começam a ficar irrequietas vão para o colo.
Não deixam chorar no sentido de ficarem stressadas. São tranquilizadas ao colo.
Sempre tranquilizadas ao colo. E, se for preciso, trabalha-se com elas ao colo, com um pano. Os africanos fazem-no assim.
O que é que disse o senhor que recebeu a sua filha?
Ah, o Raimundo, que era o empregado da minha filha…
Só para acabarmos em grande.
A minha filha chegou lá, pôs o bebé com dois meses numa alcofa e ele virou-se para ela e disse: “Dona Margarida, esse bebé aí não pode dormir nessa cama, tem de dormir com a mãe”. E foi assim.
Ao colo, enrolado nos panos.
Exatamente.