Benjamin Moser tinha chegado finalmente ao fim da promoção de Porquê Este Mundo — Uma Biografia de Clarice Lispector quando recebeu um email de Nova Iorque a informá-lo que tinha sido escolhido para escrever a biografia autorizada de Susan Sontag. “Bom, acabaram as férias.” Entrou numa livraria, comprou a obra de Sontag (em português, porque não havia em inglês) e meteu-se no primeiro avião para os Estados Unidos da América para discutir os termos de um contrato que o levaria numa viagem elétrica, à descoberta da figura “mais emblemática do século XX norte-americano”.
Com acesso total ao Arquivo Sontag e a pessoas que conheceram e privaram de perto com a escritora e ativista, Moser construiu aquela que é considerada a biografia definitiva de Sontag, personalidade polémica, contraditória, adorada e odiada, mas que, na opinião do escritor, representa como nenhuma outra a sua época. “Há essas vidas que vão além da própria vida e que se tornam um símbolo”, defendeu Benjamin Moser em entrevista ao Observador. “Não é por nada que o grande tema dela é a metáfora, o simbolismo, porque ela própria experimentou isso, consciente e inconscientemente. Ela sabia o que era ser um símbolo.”
A biografia de Moser, Sontag: vida e obra foi publicada em 2019, nos Estados Unidos. Um ano depois, foi distinguida com o Prémio Pulitzer de Não-Ficção. Este mês de março, chega a Portugal, numa edição da Objectiva, mote para uma conversa, à distância, com o escritor, atualmente a pedir em Amesterdão, nos Países Baixos.
Foi escolhido pelos representantes de Susan Sontag para escrever a sua biografia. Como é que isso aconteceu?
Estava no Rio [de Janeiro] fazendo algum evento para Clarice Lispector. Era a última coisa que ia fazer e ia ficar livre. Na verdade, ainda não estou, estou fazendo as traduções e tudo isso. São 20 anos disso. Pensei que ia tirar umas férias no Brasil, o que nunca faço. O Brasil, para mim, sempre foi trabalho. Fui conhecer um museu que não conhecia e estava nesse museu quando recebi um email de uma pessoa que conhecia em Nova Iorque. Tinha falado com várias pessoas — o agente, o filho e o editor de Susan Sontag — e disse-me que tinham considerado várias pessoas para escrever a biografia autorizada e que tinham acabado por me escolher. Bom, acabaram as férias [risos]. Tive de ir a uma livraria procurar os livros dela, que não tinha comigo. Comprei tudo em português, porque não havia em inglês, só para não estar ignorante. Fui do Rio para Nova Iorque e me reuni com essas pessoas. Correu tudo muito bem. Tinha feito uma biografia de uma mulher intelectual internacional, no caso a Clarice, e eles acharam que podia escrever sobre a Susan também. Foi o que fiz. Tive muito medo também, porque sei o que é uma biografia. É uma batalha, porque há muitas versões, muita inveja, muitas histórias… É como entrar numa campanha política — há vários partidos. Apesar de ter passado muitos anos na Europa, sou americano, então sei quais são os partidos políticos nessa campanha. Sei, por exemplo, que sempre houve uma luta muito feia entre o filho dela [David Rieff] e a esposa dela [a fotógrafa Annie Leibovitz]. Sabia que estava a entrar num terreno minado, mas fiquei muito entusiasmado também. No Clarice, tentei utilizar a história dela para contar a história do Brasil no século XX. A história da arte brasileira, da literatura… Achei que podia fazer isso com o meu país. Podia contar o panorama. Gosto de fazer esses panoramas grandes. Enfim, foi a oportunidade que surgiu e aceitei.
Foi isso que o motivou a aceitar a proposta? A possibilidade de construir esse panorama mais alargado?
Existem sempre pessoas emblemáticas, uma pessoa que de alguma forma se torna a encarnação daquele momento. A Susan é isso. Pensei muito nessa questão: será que há pessoa que seja mais emblemática no século XX americano? Talvez haja na política, mas na arte, intelectualidade, filosofia, cultura, ao nos aproximarmos de Susan, nos aproximamos da cultura como panorama, como todo.
Porque é que ela é essa figura tão emblemática?
Isso é um mistério! É fascinante, porque podia ter sido outra pessoa, que escreveu as mesmas coisas, que usava as mesmas roupas, que andava pela mesma rua, mas que não tinha esse magnetismo que faz com que ela seja um reflexo de toda essa época, mas também um reflexo nos outros, porque as pessoas projetam coisas nela. Isso se deu quando ela era muito jovem. Ela foi amada e atacada com muito fervor quando tinha 28 anos. Ela não era ninguém. Era uma estudante que tinha estado na Europa, que se tinha casado, separado, tinha um filho… Nada no passado dela indica esse curso. Essa pessoa é a chave do teatro americano, do cinema, da política, da sexualidade, da doença… Porquê? Acho muito misterioso. Mas a verdade é que há essas vidas que vão além da própria vida e que se tornam um símbolo. Não é por nada que o grande tema dela é a metáfora, o simbolismo, porque ela própria experimentou isso, consciente e inconscientemente. Ela sabia o que era ser um símbolo.
Aos 30 anos, já era uma vedeta.
Já era famosa! É um mistério. Eu também fiz uma pós-graduação, várias pessoas fizeram… Ela não tinha feito, que eu saiba, alguma coisa diferente. Estou a falar da minha geração, mas suponho que era igual na dela. Havia dez mil estudantes inteligentes na pós-graduação em Nova Iorque, porquê ela? Algumas pessoas nascem com carisma. Acredito muito no carisma, que certas pessoas têm alguma coisa. É como a beleza. É muito difícil definir beleza, mas as pessoas respondem a ela, sentem-na, veneram-na, sentem raiva dela. Uma coisa que a pessoa nem fez! Pode dar-se um jeito nas sobrancelhas, mas não é isso — é uma coisa que vai além disso. A gente entra nesse mistério, que é o mistério do destino. Porque é que uma pessoa igual a outra tem um destino tão diferente? Acho fascinante. Escrevi também sobre isso na biografia da Clarice. Porquê ela, que era uma uma pobre coitada, órfã de pai e mãe, sem dinheiro ou conexões? Nem falava português direito. E tornou-se o grande génio do Brasil. Ninguém teria pensado nisso.
O que é curioso, porque sempre existiu nela uma luta entre corpo e mente, que retrata na sua biografia.
Quando aceitei este desafio, fiz um contrato com o Espólio Sontag para ter acesso ao arquivo dela, que fica na Califórnia. Várias partes estavam fechadas há 30, 40 anos, mas tive acesso a tudo. São 100 volumes de diários. Fiquei admirado pela distância entre a Sontag famosa — forte, poderosa, a mulher que sabia tudo porque não tinha dúvidas, que tinha lido todos os livros, que tinha ido para a cama com metade do mundo, celebridades e políticos — e a menina que estava nos diários. É uma coisa muito chocante. Quando você está mergulhado nos diários, você está com a menina, consegue entendê-la. “Ah coitada, a namorada não lhe ligou.” Sei lá, essas coisas pelas quais toda gente passa na vida. Essas coisas banais. Você se esquece que há essa outra Susan, que toda a gente via. Aos 50 anos, era uma das pessoas mais famosas do mundo, certamente na área cultural. A Jacqueline Kennedy era mais famosa, claro. Também foi interessante descobrir que ela era amiga da Jackie Kennedy e de tantas outras celebridades. Essas pessoas também tinham esse carisma. Sentiam isso nela e se aproximavam dela.
Tinha personagens como protagonistas e antagonistas do meu livro. Não é que a Susan seja duas pessoas — não é, é uma pessoa –, mas acho que todos entendemos que quem somos profissionalmente é diferente de quem somos sexualmente, por exemplo. E quem somos sexualmente é diferente de quem somos na nossa família; e quem somos na nossa família é diferente de quem somos com os nossos filhos ou politicamente. Todos temos essa divergências dentro de nós, mas a Susan é um caso muito extremo disso. Ficamos fascinados por essa distância. Acho que muita gente que não tem a força dela não é capaz de sobreviver porque, afinal, temos de ser consistentes na nossa vida.
Essa personagem que ela construiu não foi uma forma de se proteger? Os diários mostram uma pessoa muito frágil.
Muito vulnerável, muito sensível, muito magoada. Ela precisava dessa máscara. Acho que todos precisamos de uma máscara. Não posso ir ao supermercado e ficar a chorar em frente ao leite porque estou com problemas financeiros. Não dá, temos de nos forçar. Enquanto estou a falar consigo, estou a pensar na Ucrânia, mas não posso. Se pensar na Ucrânia, não sou capaz de falar consigo. Temos de ter essas proteções para levar adiante a nossa vida.
Era uma pessoa muito carente, também. Procurava atenção.
A raiz disso está no facto de o pai ter morrido quando ela tinha cinco anos, na China. Ela quase não se lembrava dele. Tinha algumas fotos, que são a base da sua fascinação com a fotografia, porque a fotografia nos deixa chegar muito perto, mas não é a realidade. Não pode tocar seu pai na foto. Pode vê-lo, mas nunca alcançá-lo. E a mãe dela tinha sido alcoólica, por vários motivos: tristeza, viuvez… Tenho essa mesma história na minha família — como muita gente tem –, de alcoolismo. Sei o que é ter uma mãe, um pai, que um dia é muito carinhoso, muito maravilhoso, e que no minuto seguinte fica outra pessoa — zangado, violento. Ausente, também. A criança não sabe como se adaptar a esse tipo de pai ou de mãe, presente/ausente, simpático/antipático, carinhoso/violento. Eu me incluo nisso, entendo essa carência. Sou muito sensível da mesma forma. Acho que se não tivesse tido ajuda com isso, se não tivesse feito terapia, que não estava acessível naquele mundo freudiano e moralístico em que ela vivia, a minha vida teria sido mais difícil. Muita gente achou que a estava a criticar por isso, que estava colocando um rótulo, mas a realidade é que existem muitos milhões de pessoas que têm um passado com o vício.
Os filhos de alcoólicos ou de pessoas com um vício são obrigados a tornarem-se adultos mais cedo, porque têm de tomar conta dos pais. Isso também aconteceu com ela. Teve de se tornar mãe da mãe. Isso marcou-a profundamente.
Isso é muito comum, justamente. Ela tinha de cuidar da mãe, que ou estava fora de casa ou fora na cama. Ela era muito madura, muito adulta, muito séria quando era muito menina. Nos primeiros diários, que são de quando tinha 11 ou 12 anos, ela era tão séria. Era uma menina que tinha lido Schopenhauer, Freud, Nietzsche e não sei que mais. Ela mantinha listas do que andava lendo e são incríveis. Sempre li muito e fiquei sufocado vendo isso, intimidado por uma menina de 13 anos [risos]. Mas o que muitas vezes acontece com essas pessoas é que, quando são adultas, a infância que não tiveram se vinga. Vemos isso nas relações amorosas da Susan. Ficava tão doida com as namoradas que é muito difícil imaginar essa pessoa tão forte, tão inteligente, tão impressionante, mas é justamente esse dualismo que dá tensão à sua vida. Espero que quem leia o meu livro sinta que ela teve uma vida muito excitada, no sentido bom e no sentido ruim da palavra. Com muito movimento, com muito ying e yang. Era uma vida elétrica. Uma vida sossegada é ideal para uma pessoa, mas para um biógrafo… [risos]. É mais interessante quando há instabilidade. Cada capítulo é diferente. A pessoa nos surpreende. Isso foi um presente, porque, caso contrário, o que é que contava? Uma pessoa que fica em casa, que é super simpática, que cuida dos filhos e vai ao supermercado não dá uma biografia. Há pessoas assim, há grandes escritores assim, mas a Susan vivia absolutamente na sociedade, no mundo político, cultural, não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro. É incrível.
Conta que ela chegou ao ponto de tomar anfetaminas para dormir menos e conseguir fazer mais coisas.
Ela já fazia tudo, mas queria mais. Ela tinha um apetite pela vida. Ela via três filmes, depois ia à ópera, a um jantar com oito pessoas, a uma discoteca, depois ia ver outro filme, lia três livros… Quando digo que fico sufocado, é porque me parece infernal. Fico exausto só de olhar para uma página do diário dela. E nem disse que ela escrevia livros, não era só uma pessoa social. Não tenho inveja disso. O que admiro mesmo é a fome de conhecimento. De experiências, de sexo, de literatura, de arte. Acho que é por isso que ela é muito inspiradora para pessoas que têm a ambição de ter uma vida mais do que a vida que Deus nos deu, aparentemente; para pessoas que querem mais, que querem ser melhores. Mas ela pagou um preço muito alto, porque isso não foi de graça.
Quando tinha 19 anos, Susan Sontag casou com Philip Rieff, uma figura que parece não ter nada a ver com ela. Como é que isso aconteceu?
Passei uma semana em Philadelphia, uma cidade que já foi importante, mas que agora é um pouco esquisita. O marido da Susan tinha sido professor na universidade de Philadelphia e eu entrevistei colegas, gente que o conhecia, para ter uma ideia mais nítida dele. Nunca ouvi tanta história ruim na minha vida como nessa semana. Todo o mundo odiava aquele homem. Mas tinha sido um homem muito impressionante quando era muito jovem. Veio de uma família quase miserável, de imigrantes muito pobres, e se reinventou como um tipo de lorde inglês, com um sotaque muito esquisito. As fotos travestido de mordomo… Muito esquisito esse homem! Mas era brilhante, aparentemente. Ela ficou noiva dele sete dias depois de o conhecer. Qualquer um teria falado “calma!”, como se diz no Brasil, mas ela queria ser adulta e também não queria ser lésbica. Ele era atraente pela cabeça. Foi predestinado — o destino não quis que ela ficasse com ele. Foi um casamento que acabou extremamente mal. Acabou nos jornais, na justiça, com um divórcio não só no sentido jurídico, mas no sentido total. Nunca mais se viram.
Esse casamento foi o primeiro desastre de uma série de outros desastres amorosos.
Isso é muito interessante visto de fora. Ela foi para a cama com uma série de pessoas muito famosas, mas acabou tudo muito depressa. Para o biógrafo, é muito interessante, porque tem essa parte mexeriqueira que as pessoas gostam. Terminar uma relação amorosa é uma coisa que marca e ela fazia isso quase mensalmente, diria. Ficava apaixonada, apaixonada, mas vinha logo a raiva, o rancor, o ódio, as discussões. É uma coisa muito triste de imaginar.
Disse que Philip Rieff era uma pessoa muito inteligente, mas seria mesmo? A sua grande obra, Freud: The Mind of the Moralist, foi escrita pela Susan Sontag.
Diziam que era inteligente nos livros e burro na vida. Acho que era isso. Tinha essa inteligência, que também não conseguiu traduzir nos livros. Ele não conseguiu ser a pessoa que queria ser, então tornou-se essa caricatura. Essa coisa de que ela escreveu o livro dele — há 50 anos que toda a gente sabia disso em Nova Iorque, nos círculos culturais, porque ela dizia isso. Acho que era verdade. Isso saiu no The Guardian como uma enorme revelação, que o primeiro livro da Susan Sontag tinha sido publicado sob um outro nome. Foi uma coisa muito forte no Twitter. Todo o mundo ficou ultrajado. As mulheres que conheci me ligaram e me disseram que todas fizeram isso, que era normal. Todos os maridos roubavam os trabalhos das mulheres, porque elas não tinham lugar no mundo académico, jornalístico ou da edição. Era muito comum. Ela disse nas cartas que escreveu para a família que era ótimo, que ia ler livros para ele criticar e escrever a crítica, que depois era publicada com o nome dele. Ela achou que era um emprego fantástico [risos]. É importante nos lembrarmos que estamos a falar de há 70 anos. O mundo era diferente. Ela depois achou que não era normal, por isso é que se queixou o resto da vida. Quando se divorciou dele, foi o preço que teve de pagar para ficar com o filho. Ela tinha tido um caso com uma mulher e, naquela época, era comum que quem fosse estampado como homossexual perdesse os filhos. Ela pagou o filho com esse livro.
Os meios em que ela circulavam eram dominados por homens — o mundo académico, editorial e jornalístico. Ela não foi pioneira nisso também?
Totalmente. É muito difícil de imaginar. Sou 43 anos mais novo do que ela e toda a minha vida escolar e profissional foi dominada por mulheres. Sempre tive professoras. Entrei na edição e no jornalismo quando era muito jovem e eram meios essencialmente dominados por mulheres. Tive também essa experiência com a Clarice. A Clarice Lispector foi a primeira mulher jornalista no Brasil. E não estamos a falar de 1600. Estamos a falar de um tempo relativamente recente, a época das nossas mães, das nossas avós. A minha avó, por exemplo, foi para a faculdade, o que era muito raro nessa geração. A mulher tinha de saber ler, escrever, cozinhar. [Ir para a faculdade] era excecional ainda. O mundo mudou muito. Nova Iorque era uma favela naquela época. Agora toda a gente adora, porque pode ir fazer compras, mas era uma coisa perigosa e horrível. Havia bandidos em cada esquina, como no Rio de Janeiro. Há bairros onde as pessoas não iam de dia e onde hoje o metro quadrado custa 80 mil dólares. Acho que uma biografia é um bom momento para parar e observar não só uma vida e uma obra, mas também uma época histórica. Para ver o quanto mudou, para o bem e para o mal.
Qual foi a importância de Nova Iorque, essa cidade que parecia uma favela, na vida de Susan Sontag?
Quando digo que Nova Iorque era uma favela, digo-o porque era uma cidade um pouco à brasileiro. Tinha um enorme luxo, porque sempre foi a nossa capital financeira e cultural, mas ao mesmo tempo havia esse outro lado. Qualquer pessoa, de qualquer província, podia ir morar para lá, pagar oito dólares por mês de renda e se dar ao luxo de ser criativa, de criar. Quando leio essas coisas, e quando escrevo sobre a criatividade que havia naquela época, fico com saudades. Cheguei a Nova Iorque quando já estava tudo limpinho, perfeito, muito caro, muito moderninho e um pouco estéril, também. Em Contra a Interpretação, que é de 1964, ela publicou o ensaio “Trinta Anos Depois”, em que olha para trás e diz que achava normal que houvesse uma nova obra-prima todas as semanas. Fico com ciúmes, com um pouco de raiva por não ter assistido a essa energia e a esse fervilhar, que foi o que produziu a arte do século XX. Não era uma arte de dinheiro, como é hoje. Hoje, o valor da obra é literalmente o valor da obra. Se custa 80 mil dólares, é porque deve ser bom. Naquela época, tudo era anti-capitalista. Por exemplo, as performances e os happenings, uma palavra que já não se usa. Eram coisas que não se podiam comprar ou colocar no Facebook. Eram experiências físicas. O cinema era muito experimental, se confundia com o sexo muitas vezes. Uma das origens da pornografia americana está na arte mais avançada daquela época. Essa ideia se perdeu, que o cinema pode ser radical e revolucionário. É um mundo que me estimula muito e, através da Susan, entramos nesse mundo. Vemos as possibilidades que perdemos. Devíamos ser mais loucos, mais radicais, mas como?
Ao prestar atenção a essas novas formas artísticas, Susan Sontag abalou a crítica norte-americana, que era ainda muito conservadora.
Exatamente. Ela teve uma perfeita formação clássica. Tinha um conhecimento muito profundo de tudo o que diríamos “clássico” — música, cinema, livros, pintura. Tinha a capacidade de ver o radicalismo da nova arte de uma forma que uma pessoa que não tivesse essa formação não teria, porque é preciso conhecer as raízes para ver o que é interessante naquilo que é novo. Lamentavelmente, o que aconteceu nos Estados Unidos, foi que jogaram no lixo toda a arte plástica. A coisa mais importante era a arte nova. Por isso é que é muito engraçado, um pouco trágico também, que, no final da vida, ela tenha ficado conhecida como reacionária, quase, porque insistia no valor de ler Shakespeare e Dante. Isso ficou tão fora de moda que acho que nunca mais vai voltar a estar na moda, a ideia de uma cultura que tenha uma base comum e que a partir dessa base comum vá em todas as direções. Hoje vai em todas as direções, ninguém tem essa base. Foi muito penoso para ela ver isso.
Os ensaios de Susan Sontag foram sempre muito polémicos, sobretudo “Notas sobre Camp”. Porque é que esse texto foi recebido com tanto escândalo?
Acho que todos os escritores têm o sonho de provocar um escândalo com um ensaio [risos]. Acho [“Notas sobre Camp”] um ensaio muito bom, muito engraçado, muito inteligente. Não achei escandaloso, até chegar ao arquivo e ver como as pessoas ficaram chocadas. Havia uma sugestão muito forte de valorização do gosto homossexual, que é basicamente o que é o “camp”. As pessoas que reagiram negativamente disseram literalmente que era o fim da nação se o ensaio fosse aceite. É o meu sonho escrever algo que seja o fim da nação. Seria ótimo, mas não é por aí que as nações terminam. As hierarquias de homens sobre mulheres, de brancos sobre negros, de heterossexuais sobre homossexuais, de adultos sobre crianças, que são a base da política e da sociedade, estavam a ser atacadas. Era o que os movimentos feministas estavam a atacar, que os movimentos negros e gays estavam a atacar. Mas o que foi mais forte nesse ensaio foi a sua força libertadora. Muita gente gay disse que foi a primeira vez que aquela sensibilidade tinha sido descrita e valorizada.
Estou a pensar em como posso ajudar a Ucrânia, que foi onde a Clarice Lispector nasceu. É um país que conheço bastante bem. Podemos publicar um artigo no jornal, fazer uma coisa na televisão, enviar dinheiro para uma organização de refugiados na Polónia, mas não sentimos que isso possa afetar nada. Acho que a Susan mostra que pode sim, que temos de procurar maneiras de utilizar a nossa voz, o nosso pensamento, para acabar com estas coisas ruins. O Putin não vai desaparecer, mas vimos nos últimos dias que a opinião pública tem uma enorme força na Europa. E a opinião pública nasce muitas vezes das palavras, do que as pessoas leem e veem. Fico inspirado pela Susan. Estive na Jugoslávia, na Sérvia, na Bósnia, vendo o que ela fez. Parece pouca coisa encenar uma peça de teatro [À Espera de Godot em Sarajevo] com oito atores e sem eletricidade, mas, para os atores e para as pessoas que estavam no público, foi uma maneira de dizer “não somos escravos, somos seres humanos”. Essa coisa foi muito heroica justamente por isso, porque mudou a opinião pública [sobre a Guerra da Bósnia].
Tenho andado a pensar muito nisso porque estou a pensar em como posso ajudar a Ucrânia… O que é que posso fazer? — foi a pergunta que ela se colocou a vida inteira. Por isso é que o livro termina mais ou menos com esse episódio de Sarajevo, porque foi a apoteose de Susan Sontag, de tudo tudo o que ela sonhava. As frustrações que tinha, que eram muitas, tinham a ver com ser obrigada a ter uma vida burguesa, um pouco pacata, enquanto tinha esse fervor de quem quer mudar o mundo.
Quando era mais nova, não se interessava muito por política. Como é que deu o salto para o ativismo?
Ela não entendia a política. Ela escrevia muitas coisas doidas. Conseguimos perceber que não captava a coisa. A revolução, como para toda a geração a que ela pertencia, a geração dos americanos vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, foi a Guerra do Vietname. Foi o momento em que foram obrigados a enfrentar a outra cara do império americano e em que viram como essa cara é feia, cruel e anti-democrática. Ela ficou radicalizada nesse momento. Uma coisa é ser radical fazendo uma instalação numa galeria em Nova Iorque — isso é um radicalismo estético –, mas ela também achava que o radicalismo estético tinha a ver com a política e que não se podia separar as coisas. A partir daí, ela encontrou a voz.
Quando falámos do casamento com Philip Rieff, disse que ela não queria ser lésbica. E ela de facto afirmava que era bissexual. Susan Sontag conseguiu em algum momento aceitar a sua própria homossexualidade?
Ela de facto fazia sexo com vários homens, mas todas as relações emotivas foram como mulheres. Isso é também um mistério, porque toda a gente sabia que ela era gay. Ela era a lésbica mais famosa do país. Toda a gente sabia da relação dela com Annie Leibovitz, que era outra lésbica famosa. Mas ela não podia falar isso, por motivos que tento explicar no livro. Apesar de ser essa figura libertadora, Susan Sontag também tinha herdado os preconceitos e a cultura de onde veio, que era altamente homofóbica, como todas as outras. Ela não se aceitou, e isso foi motivo de muita dor, discordância e relações quebradas. Foi o grande motor da sua vida — positivamente. Foi o que fez daquela menina meio isolada a Susan Sontag, com essa curiosidade, essa fome, esse vigor. Podemos olhar para trás e pensar na sorte que temos hoje. Claro que ainda existe homofobia, mas não a esse nível — a homofobia que vira a pessoa contra si, que faz a pessoa se odiar.
Isso poderá explicar o facto de todas as suas relações terem sido relações fracassadas?
Para mim isso é muito claro. Muita gente que tem escrito sobre esse fenómeno de auto-ódio, como essa homofobia interna que vira a pessoa contra si e que faz com que não possa ficar feliz, sossegada numa relação romântica. Para voltar à mãe: é muito comum essas pessoas [filhos de alcoólicos] se apaixonarem muito, sem freios, sem pensar, e depois caírem na real, como se diz no Brasil. De repente acordam e percebem que não é o sonho dourado que esperavam. E aí surge o conflito da realidade com a imagem, que é justamente o tema de toda a obra de Susan Sontag. Ensaios Sobre a Fotografia é sobre isso — sobre o conflito entre a realidade visceral, física, do mundo, e a imagem dessa realidade, que é a fotografia, que dá a ilusão de conhecermos, de chegarmos perto, mas que no fim acaba por dececionar. No meu livro, tento mostrar como essas coisas talvez um pouco teóricas têm uma base emocional, uma base da vida real vivida por essa pessoa.
Isso significa que os temas tratados por ela não eram apenas um interesse académico, mas coisas que lhe diziam pessoalmente muito?
Esse é o erro de quem quer separar as coisas. Se não existir um desejo, uma questão muito urgente, o livro torna-se chato. Por exemplo, em Doença Como Metáfora, ela nunca diz que tem cancro. Ela fala de uma maneira bastante abstrata de cancro e linguagem. Porque é que esse livro se tornou um clássico? Porque detrás disso há justamente a emoção, de que ela não fala, mas que está presente, que é palpitante. É uma questão que ela coloca em termos intelectuais, mas a base é eletricamente pessoal. É isso que dá força à obra dela, eu acho. Não é que ela se esteja exibindo dessa forma, como hoje fazemos. Não era o estilo daquela geração, daquela época, mas havia outras maneiras que as pessoas encontraram para se exprimir. E ela foi uma maestra nisso. Esse livro é fantástico por isso.
Foi fácil entrar na cabeça de uma pessoa assim, tão complexa?
Entrar na cabeça dela é muito difícil. Um homem que conheci me contou que ele foi no psiquiatra dele, se colocou no sofá e falou: “Ai, Susan Sontag!”. O psiquiatra começou a rir e falou: “Se soubesse quantas pessoas se colocaram nesse sofá para falar da Susan Sontag!”. Psicologicamente, ela era muito esquisita, muito misteriosa. As pessoas queriam chegar perto dela, queriam entendê-la. Eu também queria entendê-la. Havia coisas que realmente não entendia. Depois, falando com uma pessoa ou vendo uma carta, ficava a entender. Esses momentos foram muito lindos para mim, porque queria entender a ligação dessa pessoa com essa obra. É preciso uma chave, então ofereço essa chave, que é a minha chave. Pode ter enganos, erros, outra pessoa pode não estar de acordo, mas é a chave que encontrei. Este livro é uma série de chaves para várias questões. De novo, não prometo que tenha razão, mas são as minhas interpretações dessa interpretadora.
A biografia de Clarice Lispector despertou o interesse de muitos leitores para a obra da escritora brasileira. Gostava que isso acontecesse com Susan Sontag?
Está acontecendo! Fico muito feliz. O livro já saiu em vários países. Aqui, nos Países Baixos, a obra foi retraduzida e reeditada; em França, estão fazendo novas edições; em Espanha também e no Brasil. Uma biografia é muito boa para chamar a atenção para uma obra. Com Clarice, foi o meu grande orgulho. Consegui fazer com que traduzissem a Clarice pelo mundo e que fosse lida, até na Ucrânia, onde nasceu. É uma oportunidade para nos focarmos um pouco numa obra. Se não houver esse trabalho, a obra acaba sendo esquecida. Se não for ensinada, criticada, mantida viva. Essa é sempre a minha meta.