É a estreia de Álvaro Magalhães como biógrafo, ao fim de mais de 40 anos de vida literária, e o assunto não lhe poderia ser mais caro: a vida e obra de Manuel António Pina (1943-2012), o jornalista e escritor que em 2011 recebeu o Prémio Camões, a mais importante distinção de Estado para autores do espaço lusófono.
“Não tive de fazer a investigação exaustiva que é própria dos biógrafos porque o meu principal interlocutor foi a memória”, disse esta semana ao Observador. “Mas tive de partir do zero absoluto para descobrir o tom e a ordem”, acrescentou, à margem da entrevista que agora se publica e através da qual revisita episódios da vida do amigo e conta como foi escrever durante os confinamentos da pandemia.
O livro intitula-se Para Quê Tudo Isto? e tem 480 páginas de texto, sem imagens, com o autor a falar diversas vezes na primeira pessoa. Constitui o quarto volume de uma coleção de biografias de figuras da cultura portuguesa que a editora Contraponto (grupo Bertrand/Círculo de Leitores) começou a publicar em fevereiro de 2019 — e onde já se incluem Agustina Bessa-Luís por Isabel Rio-Novo, Manoel de Oliveira por Paulo José Miranda, José Cardoso Pires por Bruno Vieira Amaral.
A organização é por ordem cronológica em seis partes, que correspondem mais ou menos a uma década cada. A infância errante de Pina, que nasceu no Sabugal (Guarda) e percorreu Castelo Branco, Sertã, Cernache do Bonjardim, Santarém, Oliveira do Bairro e Aveiro — o pai era funcionário das Finanças e tinha a obrigação de mudar de localidade com frequência — moldou-lhe a personalidade, narra o autor da biografia. O mesmo se diga das primeiras leituras, que incluíram Alice no País das Maravilhas ou também A Vida Sexual, de Egas Moniz, mais a passagem por uma escola militar, juntamente com o irmão.
A chegada ao Porto no início da década de 60, a proximidade à extrema-esquerda, a entrada para o Jornal de Notícias em 1971, os primeiros livros, o reconhecimento tardio ou a consagração com o Prémio Camões são algumas das fases que o autor observa em detalhe, adornando-os de episódios pitorescos ou simbólicos e muitas citações do próprio Pina, incluindo dos seus poemas.
Álvaro Magalhães tem 70 anos e conheceu Pina no início da década de 80. Mantiveram-se cúmplices até ao fim, tendo até traços biográficos em comum. Magalhães é autor de obra extensa de poesia, teatro, contos e crónicas, principalmente dirigida ao público infanto-juvenil. É dele a coleção de aventuras Triângulo Jota, que marcou a década de 90 e que chegou a ser adaptada pela RTP, e também a História Natural do Futebol, ensaio de 2004 que se tornou referência.
Agora que a biografia está pronta, quase nove anos depois da morte de Pina, o biógrafo admite que a escrita o fez descobrir novas facetas da personalidade e vida do amigo, como o fascínio pelo jogo ou a primeira paixão que por um triz não acabou em casamento.
Quem foi Manuel António Pina?
Foi uma pessoa que se destacou principalmente pela qualidade e elevação da sua obra literária, que inclui literatura infantil e poesia. Para ele, poesia e literatura infantil não eram coisas diferentes, tinham a mesma natureza, mas com modos de expressão diferentes. Cultivou as duas até ao fim da vida. Começou por editar um livro de poesia em 1965 e estreou-se na literatura infantil em 1974, ano em que também publicou um segundo livro de poesia. E por aí fora. Foi como se as duas modalidades se amparassem uma à outra e não pudessem avançar sem diálogo.
À partida é estranha a ideia de que poesia e literatura infantil sejam uma e a mesma coisa.
A literatura infantil, tal como ele a entendia e desenvolveu, era uma arte maior. Era um outro modo de fazer poesia. Ele dizia que quando começava um poema não sabia se aquilo ia ser um poema para adultos ou para crianças. A coisa torna-se mais complexa se pensarmos que os maiores admiradores da literatura infantil dele eram principalmente os adultos. Claro que os livros infantis do Pina eram lidos por crianças, e ainda hoje são, até com recomendação nos programas escolares, mas eram sobretudo os adultos os admiradores.
Concorda com ele na comparação?
Completamente. Ninguém se dignava olhar para a literatura infantil, que tinha má fama, era considerada um género menor. Ele abriu um caminho luminoso na literatura portuguesa, que foi seguido por mim e por muitos outros. Foi como se tivéssemos descoberto que havia vida em Marte. Mostrou-nos que a literatura infantil poderia ser um território fértil. Ele criou uma obra transcendente, que aliás ainda está por avaliar.
Por parte do público ou da academia?
De ambos. E será sempre assim. A sua poesia tinha uma zona de enigma e mistério, por isso é que é tão transcendente, e quanto mais penetramos nela mais nos perdemos. Quanto mais sabemos, mais desconhecemos. Penso que é uma poesia perfeitamente equipada para encantar os leitores do futuro e continua a interessar académicos. Enquanto escrevia a biografia tive de consultar vários estudos literários sobre a obra dele, não só de Portugal, também de Espanha e do Brasil, e constatei que todos juntos têm dificuldades em explicar a poesia dele. Ele próprio não a entendia completamente e só a aceitava se ela tivesse uma zona que o ultrapassasse. Os poemas em que era autoconsciente, normalmente punha-os de lado, rejeitava-os.
Manuel António Pina não corre o risco de ser esquecido?
Ele achava que seria esquecido. Dizia-me muitas vezes que “isto é tudo para esquecer” e dava-me exemplos: “Vê lá este poeta e aquele escritor, tão admirados que eram, mas morreram há pouco tempo e já ninguém fala deles.” O Pina achava que lhe aconteceria o mesmo, não acreditava na posteridade. Aliás, ridicularizava os poetas que acreditavam na posteridade e que trabalhavam para ela, via nisso uma atitude pretensiosa.
E ele não vai cair no esquecimento?
Não vai. Enganou-se rotundamente. Mas é bom dizer que a poesia dele viveu no anonimato, numa certa indiferença do grande público, desde que começou a publicar até ter quase 60 anos. Só no fim dos anos 90 é que começou a ser reconhecido, o que o pôs até preocupado, desconfiado. Não era conhecido do grande público, mas era um poeta de culto para uma geração culta. Dava-se bem nesse nicho. Só quando começou a publicar pela Assírio & Alvim, em 1999, é que passou a ser visto como poeta maior. O primeiro crítico que deu nota disso foi Eduardo Prado Coelho, que à época tinha uma coluna no jornal Público que era completamente referencial. Recomendava um disco que tinha ouvido e no dia seguinte as pessoas iam todas às lojas à procura do disco. As pessoas precisam de referências e Eduardo Prado Coelho dava-lhes referências. Foi ele o primeiro a dizer que estava ali um poeta maior, pelo qual ninguém tinha dado até então.
No Porto também aconteceu a descoberta tardia?
Sim, sim. Como digo, ele começou por ser lido por uma elite cultural, um nicho, mas só chegou ao grande público depois da Assírio & Alvim, uma editora muito respeitada, dirigida pelo Manuel Hermínio Monteiro, e que tinha no catálogo nomes como os de Herberto Helder ou Mário Cesariny. O livro de 1999 chamava-se Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, não tinha nada de especial em relação aos anteriores, repetia as suas obsessões temáticas, os seus tópicos, mas tornou-o conhecido. Conto isto na biografia: o próprio Óscar Lopes, autor da História da Literatura Portuguesa, que tinha descartado o Pina ao dizer que ele era um autor “intrigantemente monocórdico”, lhe telefonou depois a dizer que não se tinha apercebido da importância da obra e que iria retificar. Realmente, na edição seguinte da História da Literatura Portuguesa, a 17.ª, lá aparece o Pina como um dos nomes maiores da poesia contemporânea.
O que é que fica dele: o poeta, o autor de livros infantis que afinal também são para adultos, o renovador do jornalismo no Jornal de Notícias, o cronista…?
Fica-nos tudo isso e ainda bem que fala da faceta de cronista, que é muito importante. Há até quem pense que as crónicas dele fazem parte, por direito, da sua obra literária. É o caso do Sousa Dias, que organizou antologias das crónicas dele, e que cito na biografia. O Pina considerava as crónicas fora da literatura, dado o carácter transitório. As crónicas são filhas de Cronos, dependem do tempo, refletem o tempo, depois morrem. Claro que as circunstâncias se perdem, mas fica a construção verbal. As crónicas dele tinham grande fulgor literário, o que lhes dá distinção e duração e faz delas objetos literários. Ele tinha uma relação com a linguagem e as palavras que era um caso de amor. A biografia aliás segue o rasto da relação dele com as palavras, que vinha da infância. Tinha cinco, seis anos, e entre os brinquedos que tinha contavam-se as palavras. Ele brincava com as palavras. Criou uma intimidade e um amor com as palavras… A vida dele foi uma autêntica história de amor com palavras. Não foi só poeta, escritor e jornalista, fez mais coisas. Fez publicidade, guionismo televisivo. Todas essas atividades estavam relacionadas com as palavras. Aliás, quando foi para a tropa, no fim dos anos 60, em plena Guerra Colonial, em vez de lhe darem uma espingarda colocaram-no na divisão de ação psicológica, em que ele tinha de fazer uma espécie de propaganda. Ou seja, mais uma vez, as palavras.
Desse período da vida militar há uma pessoa que merece vários parágrafos na biografia: Alberto João Jardim, que foi camarada de armas de Pina. Fica-se com a ideia de que Jardim não era muito considerado por Pina e também não o será pelo biógrafo. É assim?
É verdade. Acho que a maioria das pessoas não tem muita simpatia pelo antigo presidente do Governo da Região Autónoma da Madeira. Nunca foi uma pessoa muito simpática nem brilhante do ponto de vista intelectual e político. O Pina dedicou-lhe várias crónicas muito depreciativas. O que se passou na tropa, tendo eles 20 e tal anos, é revelador do caráter do Jardim. Na biografia conto a história. Eram 10 cadetes e só o primeiro classificado não iria para o Ultramar, de maneira que a competição era grande. Para os avaliarem, os superiores resolveram fazer uma corrida de dez quilómetros, que contaria para a classificação final. Os cadetes, entre os quais estavam o Pina e o jardim, achavam que a prova era injusta, porque a especialidade deles não tinha nada que ver com aptidões físicas, e resolveram combinar a prova: chegariam à meta todos ao mesmo tempo, para que ninguém ficasse em vantagem. Ora, quando já estavam perto da meta, o Alberto João Jardim furou o acordo e tentou ganhar a corrida. Como era desajeitado, acabou por ser ultrapassado pelos outros, incluindo pelo Pina, que do ponto de vista físico também não era brilhante.
Teve especial preocupação em não revelar certos aspetos da vida íntima do biografado ou de evitar algumas referências a pessoas que estão vivas? São dois receios de muitos biógrafos.
Houve uma preocupação ética, embora fale de muitas pessoas e inclua episódios que não são abonatórios. É o caso do engenheiro José Sócrates, que, quando era primeiro-ministro, tentou aliciar o Pina, com a sedução que fazia junto de outros jornalistas influentes [enquanto primeiro-ministro convidou Pina para um almoço em São Bento, que se concretizou ao fim de várias tentativas]. Sócrates era um bocado obcecado com o controlo da comunicação social, como se sabe. Ainda assim, neste caso, como noutros, tive o cuidado de não dizer mais do que aquilo que o próprio Manuel António Pina já tinha dito publicamente. No caso de José Sócrates, até conto a história pela boca do Pina, tal como ele contou em entrevistas.
Mas haveria mais para contar sobre Sócrates?
Eu privava com ele, sabia muitas coisas, mas não revelei nada que ele não tivesse dito. Foi esse o meu princípio ético.
Diz-se que as biografias em Portugal tendem a sair prejudicadas pelo receio de não ferir suscetibilidades. Concorda?
Esse receio tem de ser contornado. Quando se escreve uma biografia está-se a tentar captar a verdade dos factos. Há limites éticos, claro. No meu caso, não quis relevar nada da intimidade, por exemplo. Nada que o Pina não gostasse que fosse revelado. É óbvio, quando se faz uma biografia corre-se o risco de se ser antipático. Se não se for um pouco antipático, para o próprio biografado ou para outras pessoas, não estamos a fazer bem o nosso trabalho.
Há algumas referências menos simpáticas de que o biografado pudesse não ter gostado?
Penso que não. Tudo o que disse, o Pina aprovaria. Tive essa preocupação e ainda outra: antes de aceitar escrever a biografia, assegurei-me de que havia material suficiente, em entrevistas, declarações, crónicas, que eu pudesse usar, para que em quase todos os assuntos ele aparecesse também a falar. São poucos os casos que não aparecem confirmados pelo próprio.
Há revelações no livro? Fala da ascendência judaica da família, de uma tentativa de suicídio por causa da primeira relação amorosa, mostra o Pina como praticante de uma arte marcial vietnamita. São factos inéditos?
Isso são tudo coisas novas, algumas delas até para mim. Achava que sabia quase tudo sobre ele, mas há sempre factos que nos escapam. Há outras coisas. Por exemplo, o Pina como adepto de futebol, o que é curioso, porque normalmente se acha que o futebol, vivido com a intensidade com que ele o vivia, é incompatível com uma vida intelectual.
Fala de um período nos anos 80 em que Pina era jogador de póquer…
Teve tendência para o póquer e para o jogo em geral. Rifas, lotaria, bingo.
E fala também de “tentações amorosas” que ele viveu nos anos 80, apesar de ser casado.
Isso não desenvolvi, não estava habilitado, nem queria fazê-lo. Apresento só a referência. Não me interessou desenvolver.
Diz-nos que ele chegava atrasado aos compromissos, que se esquecia de reuniões, almoços e até de homenagens. Esta parte era conhecida.
Era e ele não se importava. Era uma figura muito carismática e para isso contribuíam idiossincrasias que todos conheciam e que eram enternecedoras, toda a gente achava graça. Esquecia-se dos compromissos todos. Um amigo comum, Germano Silva, contou-me que uma vez estava com o Pina no café e entrou alguém que disse: “Pina, parece impossível, está lá o teatro cheio de gente à sua espera e você aqui.” Ao que ele respondeu: “Mas é hoje?”. Era uma homenagem que lhe tinham organizado e ele estava ausente. Sempre que chegava atrasado, dizia: “Não imaginam o que me aconteceu.” Ainda hoje, nós, os amigos dele, nos reunimos e há sempre alguém a olhar para a porta, como se esperasse que ele aparecesse, atrasado, claro, e dissesse: “Nem imaginam o que me aconteceu.”
Jornadas celebram 75 anos de Manuel António Pina e arrancam com “O Beco dos Gambozinos”
Como é que se conheceram?
Foi no início dos anos 80, por volta de 1982, quando publiquei o meu primeiro livro para crianças. Fui também o editor dele. Tive uma editora, a Gota de Água, e naquela época editei três livros dele. A partir daí, as nossas vidas caminharam a par e fizemos muitas coisas juntos. Nos anos 90 criámos centenas de guiões para televisão, o tal trabalho que ele dizia que era para ganhar a vida. E juntos também fizemos peças de teatro para a infância. Foi a partir dessa interioridade, desse conhecimento, até do modo como ele fazia os poemas — ele mostrava-me os poemas em construção e falava comigo das dificuldades, das dúvidas que tinha —, que fiz a biografia. Procurei que esse conhecimento não falasse excessivamente, aparece só quando é útil e produtivo.
Muitas vezes recorre à primeira pessoa.
Sim, sim. No início tentei esconder a proximidade, por pudor. Depois percebi que era impossível, de tal forma as nossas vidas estão misturadas. Percebi que a proximidade poderia ser um instrumento de rigor e precisão, além de um laço afetivo para a captura sentimental do leitor. Essa proximidade deu à biografia uma espécie de musculatura de verdade. Não digo o que fulano pensava dele, digo eu, há um conhecimento direto.
Ao mesmo tempo que o descreve como eterna criança, diz-nos que Pina foi eternamente triste. De onde lhe vinha a tristeza?
Fiz alguma reflexão sobre isso, mas só descrevi a maneira como essa tristeza se exprimia, aliás presente no título do livro, que era um lamento dele: “Para quê tudo isto?” Não sei dizer qual a raiz.
Escreve que o lado bondoso convivia com uma personalidade forte. Chama-lhe um “santo furioso”.
Furioso porque perdia a cabeça com alguma facilidade. A maior parte das pessoas, que não o conheceu muito bem, tem a imagem de um homem fleumático, muito controlado. Mas perdia a cabeça com alguma facilidade e graças a isso chegou a ver-se embrenhado em questiúnculas físicas. Chegou a ter cenas de porrada, como descrevo no livro.
Demorou quanto tempo a escrever?
Surpreendentemente, fui mais rápido do que esperava. Comecei a escrever no início da pandemia. Aliás, foi por isso que aceitei. Comecei a ver que teria de estar fechado em casa, até porque tenho um problema respiratório que me obriga a ter mais cuidado, e podia transformar isso numa coisa redentora. Apesar de ser escritor profissional há 30 ou 40 anos — não faço mais nada, vivo da escrita —, a pandemia deu-me condições de concentração e de tempo como nunca tive. Além disso, livrou-me de compromissos, porque não se podia ir a lado nenhum. Já tenho dito: será que o mundo está preparado para receber os livros todos que vão aparecer no fim da pandemia?
Alguns autores sentiram-se bloqueados, tiveram um período sem criatividade.
É curioso. Para mim, foi uma fase de grande produtividade. Até interrompi a escrita da biografia por causa de alguns compromissos que tinha relacionados com a literatura infantil. Quando acabei, ao fim de um ano, achei que estava a sonhar.
Como é que se faz uma biografia de fôlego? Começa-se por uma cronologia e depois vai-se desenvolvendo cada data?
Não consigo explicar. Fiz quase tudo intuitivamente, por tentativa-erro. Há um fio cronológico que ajuda, claro, mas depressa percebi que os períodos cronológicos não podiam ser prisões, porque os factos transitam livremente. Quando falo da infância, vou muitas vezes ao adulto, há ligações entre os factos. Ele como adulto não gostava muito de viajar e dizia que o melhor das viagens era o regresso, porque durante a infância viveu sempre uma errância forçada. O pai era funcionário das Finanças e era obrigado a mudar de terra com frequência. Foi assim até aos 17 anos, altura em que se estabeleceu no Porto.
A escrita fê-lo descobrir um novo Manuel António Pina?
Recuperei histórias e também descobri aspetos completamente novos. Por isso, sim, o Pina que hoje tenho na minha memória é mais completo, sem dúvida.