O bispo de Viseu, D. António Luciano Costa, decidiu manter em funções um padre da sua diocese que está a ser investigado pelo Ministério Público por suspeitas de abuso sexual, em vez de o suspender preventivamente das suas tarefas pastorais enquanto decorre o inquérito judicial, como fizeram outros bispos portugueses. A existência de um inquérito aberto sobre o padre foi confirmada oficialmente ao Observador pela Procuradoria-Geral da República, que adiantou que o caso está a decorrer na comarca de Viseu. Este é um caso com contornos semelhantes ao que o Observador noticiou na última quarta-feira, referente ao bispo da Guarda.
O Observador sabe que o que está em causa é também um caso denunciado este ano à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, mas que antes disso já tinha chegado ao conhecimento do bispo de Viseu.
Por se tratar de um padre ainda no ativo, a comissão independente fez chegar o caso ao Ministério Público, que abriu um inquérito. De acordo com o último ponto de situação feito pela comissão, o organismo liderado por Pedro Strecht já recebeu 424 testemunhos de abuso, que dizem respeito a situações ocorridas entre 1950 e a atualidade no seio da Igreja Católica. Um total de 17 casos foram encaminhados para o Ministério Público, estando outros 30 a ser analisados para possível envio às autoridades civis. Após vários deles terem sido arquivados por diferentes motivos (incluindo a prescrição e a falta de provas), quatro inquéritos mantêm-se em aberto: é o caso desta situação que envolve um padre da diocese de Viseu.
Além dos casos denunciados pela Comissão Independente, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa, há ainda seis inquéritos abertos na sequência de três denúncias feitas por comissões diocesanas de proteção de menores e pessoas vulneráveis e duas outras investigações cujo alvo é o próprio bispo D. José Ornelas, que foi alvo de uma denúncia enviada ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, segundo o último balanço dos casos em que se investigam padres portugueses feito pela Procuradoria-Geral da República.
De acordo com informações recolhidas pelo Observador, neste caso que está a ser investigado em Viseu estão em causa factos que remontam à década de 1990, pelo que há a possibilidade de os eventuais crimes estarem prescritos. Essa avaliação, porém, ainda não terá sido feita pelo Ministério Público de Viseu, onde decorre o processo em questão, que está ainda em segredo de justiça, como confirmou a Procuradoria-Geral da República em resposta ao Observador.
Apesar de o sacerdote estar a ser investigado pelo Ministério Público e de o caso ser do conhecimento do bispo, D. António Luciano Costa não afastou o padre das suas funções pastorais. De acordo com uma consulta ao Anuário Católico e aos decretos de nomeação publicados no site da diocese de Viseu, o sacerdote em questão continua em funções num conjunto de paróquias situadas no distrito de Viseu.
O Observador contactou o bispo de Viseu sobre este caso em duas ocasiões. Inicialmente, em agosto deste ano, o Observador enviou um conjunto de perguntas detalhadas sobre o caso a D. António Luciano Costa, nomeadamente com o objetivo de saber o que tinha o bispo feito em relação ao caso quando teve conhecimento dele, se tinha sido aberto algum processo canónico e se o caso tinha sido entregue às autoridades civis pela Igreja em algum momento. Contudo, o bispo nunca chegou a responder às perguntas do Observador.
Mais recentemente, o Observador voltou a contactar o bispo de Viseu, já depois de obter a confirmação por parte do Ministério Público de que existia um inquérito judicial em curso relativamente ao padre, perguntando a D. António Luciano Costa se tinha conhecimento da investigação judicial, se tinha sido contactado pelas autoridades e porque não tinha adotado medidas cautelares em relação ao sacerdote — mas, novamente, D. António Luciano optou pelo silêncio, não respondendo às perguntas enviadas por escrito nem atendendo o telemóvel.
Padre foi questionado sobre “coisa muito antiga” e garante que denúncia é “mentira”
O Observador contactou o sacerdote visado neste processo, que disse estar “surpreendido” com a existência do inquérito e garantiu não ter sido notificado de nada, mas afirmou que qualquer pessoa que seja alvo de uma queixa anónima pode ser visada num processo.
Ainda assim, o padre confirmou que já foi chamado pelo bispo de Viseu por causa de uma “coisa muito antiga”, que classifica como “mentira”. Sobre essa situação, o sacerdote diz acreditar que o bispo possa ter enviado a informação para o Vaticano, mas revela que nunca foi informado de qualquer processo canónico — se houver, poderá estar em fase de averiguação prévia, durante a qual o visado não é informado.
“Das pessoas que me conhecem, ninguém podia pensar que eu tive qualquer coisa relacionada com abusos”, disse ainda o sacerdote ao Observador, acrescentando que considera muito importante o trabalho que está a ser desenvolvido pela comissão independente, mas lamentando que qualquer suspeita “transite logo em julgado na comunicação social”.
A atuação de D. António Luciano Costa neste caso assemelha-se à do bispo da Guarda, D. Manuel Felício, num caso noticiado quarta-feira pelo Observador. O bispo da Guarda também manteve em funções um padre sobre o qual recaem suspeitas de abuso sexual de menores que foram comunicadas à comissão independente — e, por esta, ao Ministério Público, que está a investigar a denúncia. O sacerdote da diocese da Guarda continua em funções num conjunto de paróquias apesar de ser alvo da investigação.
O bispo da Guarda recusou uma entrevista ao Observador e também não respondeu às perguntas enviadas. Mas já depois da notícia que dava conta de que mantinha um padre investigado por abusos em funções, D. Manuel Felício enviou um comunicado à agência Lusa a garantir que “sempre comunicou a quem de direito todas as denúncias, mesmo as anónimas, que lhe chegaram” por abusos sexuais. Sem pormenorizar como e a quem.
A postura destes dois bispos contrasta, por seu turno, com a que foi adotada por vários outros bispos portugueses nos últimos meses: na arquidiocese de Évora, o arcebispo D. Francisco Senra Coelho afastou preventivamente das suas tarefas pastorais o padre de Samora Correia, investigado pela Polícia Judiciária por suspeitas de ter encoberto alegados abusos cometidos por um acólito; o bispo de Vila Real, D. António Augusto Azevedo, também afastou preventivamente um padre denunciado por abusos alegadamente cometidos há mais de 30 anos, depois de ter recebido a queixa sobre o caso. Em Lisboa, nos últimos meses, pelo menos três padres foram suspensos como medida cautelar quando surgiram investigações de crimes sexuais: um em Massamá, outro num colégio católico e outro ainda na zona de Cascais, por suspeitas de violação.
No ano passado, bispo de Viseu afastou padre suspeito de enviar mensagens explícitas a menor
Na verdade, a atuação de D. António Luciano Costa neste caso contrasta também com a ação dele próprio noutro caso, vindo a público no ano passado, no qual o bispo suspendeu preventivamente um padre.
Este caso, inicialmente noticiado pelo Correio da Manhã em outubro de 2021, envolvia porém uma história bem mais recente: um padre da diocese de Viseu estava a ser investigado por suspeitas de ter enviado mensagens de cariz sexual a um adolescente de 14 anos. A investigação começou quando o menor mostrou as mensagens ao pai, que denunciou o caso ao Ministério Público. Na sequência da investigação, o padre, que na altura já tinha pedido uma licença sabática de um ano, foi afastado por D. António Luciano Costa de todos os serviços da diocese durante o período da investigação.
Num comunicado, a diocese de Viseu garantiu que cumpriu todos os procedimentos canónicos em vigor depois de ter recebido uma denúncia do caso através da sua Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis. Na sequência das notícias, o padre disse estar inocente e até prometeu apresentar queixa por difamação, mas a diocese enviou a situação para o Vaticano e constituiu um tribunal eclesiástico para julgar o caso — que envolve, além das mensagens sexualmente explícitas, também acusações de que o padre teria tentado beijar o menor e de que teria imagens de pornografia de menores no computador.
Padre de Viseu vai ser julgado por tentativa de coação sexual e aliciamento de menor
Em março deste ano, o padre foi formalmente acusado pelo Ministério Público dos crimes de coação sexual agravada e de aliciamento de menor para fins sexuais. Em maio, depois da fase de instrução, o tribunal pronunciou o padre por aqueles crimes, determinando que o caso seguisse para julgamento. O arranque do julgamento está marcado para o dia 20 de fevereiro de 2023. Até lá, o padre está em liberdade, mas sujeito a apresentações quinzenais às autoridades e proibido de contactar com menores de 18 anos.
Afastamento é medida prevista pela Igreja para proteger outras vítimas e evitar destruição de provas
Do ponto de vista estritamente formal, a atuação do bispo de Viseu não viola nem a lei civil portuguesa nem as normas canónicas atualmente em vigor na Igreja Católica — embora contraste com a atuação de outros bispos e com as recomendações internas da Igreja, documento no qual é sublinhado que, num caso destes, o afastamento de funções — não sendo uma pena nem significando a culpa do suspeito — é uma forma de evitar, entre outros, “o risco de ocultação das futuras provas” e as “ameaças” que possam “afastar a presumível vítima do exercício dos seus direitos”, bem como proteger “outras possíveis vítimas”.
Como o Observador explica no artigo sobre o caso da diocese da Guarda, a maioria dos bispos portugueses que foram recentemente confrontados com a existência de suspeitas ou investigações de abusos de menores a padres das suas dioceses optaram por suspender os sacerdotes preventivamente, pelo menos durante o período da investigação.
A adoção de medidas cautelares não é uma obrigação: fica ao critério do bispo ou superior religioso adotar ou não medidas desse tipo. Como se lê no número 1722 do Código de Direito Canónico: “Para evitar escândalos, defender a liberdade das testemunhas e garantir o curso da justiça, o Ordinário, ouvido o promotor da justiça e citado o próprio acusado, em qualquer fase do processo, pode afastar o acusado do ministério sagrado ou de qualquer ofício ou cargo eclesiástico, e impor-lhe ou proibir-lhe a residência em determinado lugar ou território, ou proibir-lhe a participação pública na santíssima Eucaristia.”
Este cânone da lei eclesiástica é citado no documento orientador emitido pelo Vaticano em 2020 com os procedimentos que devem ser seguidos pelos bispos e superiores religiosos perante uma denúncia de abusos de menores — que depois foi transposto para o documento interno da Conferência Episcopal Portuguesa que orienta a atuação dos bispos portugueses.
Nesse documento, é explicado que, quando existe uma suspeita contra um membro do clero, o bispo ou superior religioso “tem o direito” de decidir impor uma medida cautelar. O objetivo dessas medidas, elencadas no Código de Direito Canónico, é “a tutela da boa fama das pessoas envolvidas e a tutela do bem público”, além de evitar “a difusão do escândalo, o risco de ocultação das futuras provas, a ativação de ameaças ou outras condutas tendentes a afastar a presumível vítima do exercício dos seus direitos, a proteção de outras possíveis vítimas”.