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Faltam menos de dois minutos para a hora marcada do discurso quando Boris Johnson aparece, esbaforido. Pega num papel, faz algumas perguntas aos membros da organização e rabisca umas frases. Segue para o palco, com o cabelo desalinhado. Perante os presentes, declara em voz alta: “Senhoras e senhores, bem-vindos ao… Errrr….”, gagueja, antes de se virar para trás para confirmar o nome do evento em que participava. “Aos prémios internacionais de securitização de 2006!” A multidão, achando que é uma piada, rebenta em gargalhadas.
Segue-se um discurso cheio de imagens fortes: as ovelhas que o avô não podia enterrar de imediato por causa das regulações da UE, o amigo do tio em cujo nome ele não acerta (“Mick? Não, era Jim. Não, era Margaret, afinal!”), o respeito pelo autarca do filme O Tubarão porque mantinha as praias abertas ao público… As analogias estão tão bem costuradas e as frases são tão bem atiradas que a multidão aplaude de pé no final. Jeremy Vine, o homem da BBC que vai entrar em palco a seguir naquele evento da indústria financeira, fica embasbacado: “Percebi que estava na presença de um génio”, recordaria mais tarde num artigo que escreveu para a Spectator — a revista que foi em tempos dirigida precisamente por Boris Johnson.
Até que, 18 meses mais tarde, o apresentador foi a outro evento onde o, à altura, deputado era mais uma vez orador. E aquilo a que assistiu deixou-o de boca aberta: Boris Johnson repetiu o mesmo número, ponto por ponto. O atraso, a folha rabiscada e o facto de, aparentemente, não saber em que evento estava aconteceram uma vez mais. As referências às ovelhas, a Margaret e ao autarca d’O Tubarão também. E até o aplauso de pé da audiência, no final, se repetiu. “Ele é capaz de um bom espetáculo, lá isso é”, comentaria Charles Moore, antigo diretor de Boris no jornal Daily Telegraph, quando questionado pelo Observador sobre a personalidade do primeiro-ministro britânico.
A capacidade de parecer altamente impreparado para, afinal, ter tudo sob controlo é uma tática que este inconfundível tory sempre adotou ao longo da vida, como o próprio confessou em 2013 ao documentário da BBC Boris: The Irresistible Rise (Boris: A Ascensão Irresistível): “Muitas vezes é útil dar a ligeira impressão de que se está propositadamente a fingir que não se sabe o que se está a passar. Porque, se de facto for esse o caso, as pessoas não serão capazes de perceber a diferença”, confessou, sorrindo.
Aqueles que conhecem Boris pensam, contudo, que se trata de mais do que uma simples manobra de deflexão. Ele pode bem chegar atrasado, aparecer com o cabelo despenteado e a camisa desfraldada e adaptar umas larachas ao momento em questão. Durante toda a vida foi assim: Boris Johnson entregava os trabalhos de casa tarde e a más horas, aparecia mal vestido nos briefings da Comissão Europeia, quando era correspondente em Bruxelas, e foi pontuando o seu mandato como presidente da Câmara de Londres com piadas.
Mas aqueles que acham que Boris Johnson não pensa meticulosamente no que vai dizer, nem ensaia o tom, estão errados: “Há um soneto maravilhoso de Shakespeare que diz que o melhor poema é aquele que é o mais trabalhado”, resumia em 2019 ao Observador Paul Goodman, que trabalhou lado a lado com Boris nos jornais e, mais tarde, na bancada parlamentar dos conservadores, aquando da sua eleição para a liderança do Partido Conservador. “Ele é assim: um homem do mundo espetáculo, sem dúvida. Mas um homem do mundo do espetáculo que se prepara.”
Agora, três anos mais tarde, fica claro que Johnson não se preparou o suficiente para lidar com o cargo mais difícil da sua vida: o de primeiro-ministro. Perante as câmaras, anunciou esta quinta-feira que abandonará o posto quando um novo líder do partido for eleito, no outono. “Them’s the breaks”, disse o primeiro-ministro. A expressão britânica vem do bilhar e diz respeito ao facto de cada atleta ter de jogar com a distribuição das bolas que resultar da primeira tacada — quando todas as esferas estão juntas no triângulo. Equivale, em português, a uma expressão de resignação: “É o que é”.
Um anúncio que só chegou depois de a pressão vinda de dentro das fileiras dos tories se ter acentuado a um nível nunca visto. Só depois de mais de 60 demissões de membros do governo e de deputados, uma reunião com colegas do governo e o aviso direto do dirigente partidário Graham Brady é que Boris decidiu sair. Uma posição que contrasta com as sentenças que ditou sobre outros primeiros-ministros no passado, como quando disse que Gordon Brown parecia preso ao lugar como “um colono ilegal no deserto do Sinai a amarrar-se a um aquecedor”.
“É um facto maravilhoso e necessário da biologia política que nunca sabemos quando é que o nosso tempo acabou”, decretou profeticamente em 2006, sobre Tony Blair. Depois de uma vida a ultrapassar todas as crises, o tempo político de Boris Johnson acabou agora.
A infância de Boris. Um “Rei do mundo” tímido e vulnerável
Alexander Boris de Pfeffel Johnson nasceu a 19 de junho de 1964, em Nova Iorque, cidade onde os seus pais, os britânicos Stanley e Charlotte, viviam na altura. O pai estava a estudar Economia na Universidade de Columbia e a mãe interrompera os estudos de Inglês em Oxford para acompanhar o marido até aos Estados Unidos. Stanley viria a tornar-se consultor ambientalista e eurodeputado pelo Partido Conservador, enquanto Charlotte acabaria por se tornar artista, conhecida pelos retratos que pinta.
Ao contrário do que a persona pública indica, Boris era uma criança “sossegada e tímida”, diz ao Observador Andrew Gimson, autor da biografia Boris: The Rise of Boris Johnson (sem edição em português, poderia ser traduzida como Boris: A Ascensão de Boris Johnson). “Diria que ele só se tornou um performer por volta dos 16 anos”, acrescenta o biógrafo, a mesma altura em que passou a preferir ser tratado por Boris em vez de Al, como era costume em casa. Nem o nascimento dos três irmãos mais novos (Rachel, Leo e Jo) alterou o panorama: Boris dava-se com eles, sim, mas não tinha muitos amigos — um fator potenciado pelas mudanças constantes da família, que passou de Nova Iorque para Oxford, Washington D.C., Exmoor, Londres e, mais tarde, Bruxelas.
Calado, apanhado frequentemente a ler um livro e retratado com ar sério nas fotografias. É assim que aqueles que conheceram Boris em criança o recordam. O facto de ter tido um problema de audição durante a infância pode ter contribuído para só se ter tornado um miúdo sociável mais tarde. Os reveses da vida também não ajudaram: a mãe, Charlotte, teve um esgotamento nervoso que a deixou internada, longe dos quatro filhos, durante vários meses. Mais tarde, já na adolescência de Boris, Stanley e Charlotte acabariam por se divorciar.
A irmã, Rachel Johnson, gosta de contar como era habitual Boris responder à pergunta “O que queres ser quando fores grande?” com a expressão “Rei do mundo”. A frase ganhou contornos de parábola sobre a ambição de Boris. Contudo, ganha um significado diferente quando colocada ao lado de uma infância mais marcada pela introversão e pelo acanhamento do que pela expansão. “Sempre pensei que a sua frase sobre ser ‘o Rei do mundo’ representava um desejo de se tornar invencível, de que não pudesse ser magoado, de que pudesse estar protegido das dores da vida”, refleteria, anos mais tarde, a mãe Charlotte. “As dores de ter a mãe desaparecida durante oito meses. As dores de ver os pais a separarem-se.”
Essa vulnerabilidade coexistia, porém, com um feroz instinto competitivo: “Aprendi a ler antes dele e isso irritava-o imenso”, contou também a irmã Rachel. “Sempre foi um competidor, desde os 14 meses. Sabe que a vida é uma competição e quer sempre ser o primeiro.” Em Eton, o colégio interno para rapazes onde estudaram 19 primeiros-ministros britânicos e vários membros da realeza, Boris floresceria e daria azo a esse lado de competidor implacável — de tal forma que partiu o nariz quatro vezes a jogar rugby na escola.
Ali, no liceu, tornou-se popular. Para além do rugby, destacava-se em Eton de outras formas: aos 17 anos, por exemplo, conseguiu entrar no Pop, um grupo que funcionava como uma espécie de clube seleto do colégio, cujos membros tinham privilégios, como uma sala privada com um leitor de cassetes de vídeo. Foi também durante este período que despertaram em si as qualidades de performer, aliadas a uma certa displicência para com as obrigações, que eram sempre resolvidas com capacidade de improviso e vivacidade. O antigo professor Eric Anderson recordou ao biógrafo Gimson um episódio que ilustra isso mesmo, a propósito de um evento de teatro ao ar livre, na escola: “Estavam a interpretar cenas de Ricardo III, com Boris a fazer de Rei. Ele não tinha tido tempo de aprender as falas, por isso colou-as em vários pilares. O espetáculo inteiro consistiu nele a correr de um lado do palco para o outro e a não conseguir ler as falas como deve ser.”
Os relatórios escolares eram claros: Boris era inteligente, capaz de acabar os seus exercícios de Latim ao pequeno-almoço, mas achava-se acima de algumas das obrigações que eram exigidas aos alunos. “Os professores ficavam chateados”, resume o biógrafo Gimson. “Ele era ótimo a Latim e a Grego, mas não se esforçava. Tinha a capacidade de vir a tornar-se um classicista profissional, mas não queria. Acho que ele adora estas línguas antigas, mas Boris não é um académico. É um homem de ação.”
Oxford. A ascensão política do “camaleão” e os tempos loucos do Bullingdon Club
Eton plantaria no adolescente o gosto pelos Clássicos, que viriam mais tarde a ser amplamente citados por Boris em artigos ou ações de campanha. O gosto não era apenas pela complexidade das gramáticas, mas também pelo heroísmo das histórias, pelo sistema claro de hierarquias, pela apreciação das artes. De tal forma que Boris Johnson acabaria por entrar com uma bolsa em Oxford, para estudar os Clássicos na Balliol College. O padrão de comportamento para com os professores e os estudos manter-se-ia igual ao de Eton. A relação com o desejo de ser popular e integrado também.
Os treinos e jogos de rugby continuaram, enquanto Boris procurava voos mais altos. Com 20 anos, decidiu candidatar-se à presidência da Oxford Union, a sociedade de debate da Universidade que sempre foi um viveiro de figuras influentes na sociedade, desde futuros ministros, jornalistas, líderes partidários e até figuras de topo, como a primeira-ministra indiana Benazir Bhutto. Ser presidente da Oxford Union sempre foi “o primeiro passo para se ser primeiro-ministro” britânico, chegou mesmo a dizer o antigo deputado conservador Michael Heseltine.
Essa campanha de 1984, contudo, viria a revelar-se uma dura lição para Boris que, pela primeira vez na sua vida escolar, não conseguiu encantar com recurso ao humor, ao charme e às suas credenciais brilhantes de Eton. Perdeu a eleição para Neil Sherlock, um jovem de origens mais modestas que se viria a tornar analista de empresas como a PwC e conselheiro dos Liberais-Democratas. “A primeira versão do Boris era a de um tory muito convencional, claramente à direita, que tinha aquilo a que eu chamo um sentimento de propriedade dado pela velha Eton: ‘Eu tenho direito ao cargo mais alto, porque me estou a candidatar a ele’”, resumiria Sherlock ao Financial Times.
Mas Boris aprendeu a lição. Dois anos depois, candidatar-se-ia novamente ao cargo e, desta vez, não se apresentou como um típico conservador, cortejando o apoio dos sociais-democratas, um grupo crescente na Oxford dos anos 80. “O SDP estava à procura de um candidato e é justo dizer que nunca me identifiquei como sendo um apoiante dos sociais-democratas, mas, ao ser questionado sobre se queria o apoio deles, disse que não o rejeitava”, resumiu o próprio Boris em The Irresistible Rise. Frank Luntz, aluno norte-americano que viria a tornar-se analista político do outro lado do Atlântico, teve uma interpretação diferente dessa campanha: “Ele abandonou os tories para ser eleito e, depois de ter sido eleito, voltou a dizer que era um tory”, contaria Luntz 20 anos mais tarde.
O biógrafo Gimson não tem dúvidas sobre em qual das versões acredita mais: “Ele fingiu que era um social-democrata quando não era”, concede. “Boris é uma espécie de camaleão, é capaz de mudar as suas cores até certo ponto. Acho que no fundo é leal aos tories, mas… É preciso não esquecer que meios como Oxford — e, mais à frente, o jornalismo —, não premeiam a honestidade.”
A par e passo com a presidência da Union, Boris acentuava a sua popularidade integrando o Bullingdon Club, um outro grupo exclusivo, à semelhança do Pop. Mas enquanto que em Eton os privilégios consistiam no acesso a uma sala privada ou em horários alargados no bar da escola, o Bullingdon não se ficava por prazeres tão pueris. Conhecido pelos seus eventos regados a álcool, o clube tinha membros peritos em vandalizar bares e outros locais, pagando os prejuízos com dinheiro vivo no final.
Uma das noites que ficou para a história do Bullingdon contou com a presença de Boris — e também do, então, futuro primeiro-ministro David Cameron, contemporâneo de Boris em Oxford e no Bullingdon. No final de um jantar bem regado, os membros do clube decidiram atirar um vaso pela janela de um restaurante, partindo-a. Fugiram de seguida da polícia, escondendo-se perto do Jardim Botânico. Alguns foram apanhados e passaram a noite numa cela.
“Boris afirma que é um desses, que passou a noite na prisão, antes de serem libertados sem acusação. Outros, que estiveram mesmo detidos, insistem que ele tenta só inflacionar o seu passado rebelde e que, na verdade, nunca esteve detido”, pode ler-se na biografia Just Boris: The Irresistible Rise Of A Political Celebrity (sem edição em português, o título poderia ser traduzido como Simplesmente Boris: A Ascensão Irresistível de uma Celebridade Política), de Sonia Purnell. “David Cameron, por exemplo, tenta esconder o facto de ter sido membro do Bullingdon. O Boris não faz isso”, aponta Andrew Gimson. “Ele não tenta desvalorizar essa parte da sua vida. É algo que o diverte, algo que ele considera fazer parte da forma de ser inglês, da mesma maneira que o rugby faz.”
É verdade que Boris ainda guarda o fato que os membros do clube vestiam nesses tempos e também é verdade que, por vezes, ainda recorre ao grito “Buller! Buller! Buller” quando se cruza com outro antigo membro do Bullingdon. Mas quem achar que Boris rebenta de orgulho por um alegado percurso de jovem privilegiado, que gostava de se embriagar até perder os sentidos, engana-se. Como Sonia Purnell aponta na sua biografia, o que não falta são antigos conhecidos que destacam como o antigo colega “não gostava de perder o controlo”.
Um contemporâneo do Bullingdon confessou à biógrafa que Boris “não ia assim tão frequentemente a eventos” do clube e que não gostava das bebedeiras. Outro recorda que, embora tenha experimentado um ou outro charro, o presidente da Union não gostava de dar mais do que um ou dois bafos: “Ele nunca queria ficar pedrado. Na verdade, não queria ficar afetado por aquilo de todo.” O próprio confessaria, anos mais tarde, ter sentimentos contraditórios no que diz respeito aos tempos de descontrolo do Bullingdon: “À altura era muito divertido”, admitiu. “Mas a terrível verdade é que, embora nos sentíssemos muito sofisticados, lembro-me de que os jantares eram horrivelmente bêbados e… O sentimento dominante era de uma profunda aversão por nós próprios.”
A chegada ao jornalismo. Das citações inventadas aos artigos coloridos em Bruxelas
Em 1987, Boris era um jovem licenciado de Oxford, recém-casado com Allegra Mostyn-Owen, colega da Universidade e filha de um milionário. Allegra era inteligente e uma das jovens mais bonitas de Oxford, ao ponto de ter feito várias capas de revista como modelo. A relação entre os dois, contudo, não viria a durar muitos anos: o dia do casamento, no qual Boris se esqueceu das alianças, pareceu mais assinalar “o fim da relação do que o seu início”, confessaria Allegra, anos mais tarde.
Também o primeiro emprego de Boris Johnson durou pouco: esteve uma semana numa consultora, até que se despediu por não gostar da experiência. Seguiu-se a entrada no jornalismo, como estagiário no The Times. Não tardaria até que o jovem se apoiasse no seu excesso de confiança para resolver um problema: para dar cor e autoridade a um artigo sobre uma descoberta arqueológica, decidiu incluir uma citação de um famoso professor de História que era também seu padrinho, Colin Lucas. O problema? Lucas nunca tinha dito tal coisa. Como se não bastasse, a frase em si era historicamente errada. Boris tentou escrever um segundo artigo onde incluía nova citação de Lucas a corrigir a frase errada. Mas, mais uma vez, a citação era inventada.
A embrulhada foi de tal forma grave que Boris foi prontamente despedido, não sem antes deixar uma ponta da sua ironia e auto-confiança habituais numa reunião com o diretor, Charlie Wilson, como recordou Gimson na sua biografia: “Segundo [o jornalista] Frank Johnson, ocorreu o seguinte diálogo:
“Wilson: ‘As citações são todas inventadas.’
Boris: ‘Como são quase todas as citações no seu jornal.’
Como Frank notou mais tarde, ‘isto era inteiramente verdade, mas não era a resposta certa a dar.’”
A sorte, contudo, sorriu ao audaz Boris. Pediu novo emprego no jornalismo ao diretor do Daily Telegraph, Max Hastings, e este, que tinha conhecido Boris numa visita a Oxford alguns anos antes, decidiu dar-lhe uma oportunidade. Não tardou a que, com apenas 24 anos, o britânico fosse enviado para Bruxelas para ser correspondente do jornal na capital europeia. De regresso a uma das cidades onde cresceu, Boris chegou pronto para dar uso ao seu francês impecável.
Seguiram-se cinco anos que seriam fulcrais para criar a marca Boris. Ao contrário dos restantes jornalistas em Bruxelas, que mantinham um tom neutro e sério, Boris aproveitou para dar nas vistas. Destacava-se nos briefings à imprensa, como conta a biógrafa Sonia Purnell — que trabalhou precisamente com ele em Bruxelas: “Ele esperava que os outros jornalistas se sentassem precisamente ao meio-dia — com os britânicos geralmente sentados nas filas do meio — para fazer a sua entrada que roubava as atenções. Quando não estava vestido como se fosse para uma festa na praia em Malibu, gostava de usar casacos sujos e mal-cheirosos, com os bolsos rasgados e calças com as bainhas a descoserem-se. Isto numa cidade onde onde a farda de trabalho era de elegância e estilo europeus e sóbrios. Uma vez, uma senhora conhecida e impecavelmente bem-vestida do grupo de jornalistas franceses inclinou-se para o sofisticado Michael Binyon e perguntou, ‘Qui est ce monstre?’ [Quem é este monstro?]”.
Em vez de se incomodar com isso, Boris tinha gozo em destacar-se do rebanho, fazendo o mesmo com o seu jornalismo. Os títulos eram de encher o olho: “Os caracóis são peixe, diz a UE” ou “Salsichas britânicas ameaçadas”. Nos anais do jornalismo europeu ficou um artigo sobre a uniformização do tamanho dos preservativos, com Boris a contar que a Comissão Europeia e Itália não se entendiam quanto aos centímetros ideais. As peças que escrevia não eram exatamente mentira, mas eram geralmente exageros face ao ponto de partida, com laivos de sensacionalismo. Contudo, deixavam marca pelo tom bem-humorado e pelo refinamento da escrita.
O euroceticismo, esse, deixaria outro tipo de marca. Boris cedo percebeu que aquilo que escrevia tinha algum eco nos círculos mais anti-europeus do Partido Conservador e compreendeu a influência que o seu jornalismo poderia ter. Um desses momentos ocorreu em Portugal, numa cimeira europeia em Guimarães, onde Boris “andou muito entusiasmado”, de acordo com Gimson. Em causa estava uma sugestão de Jacques Delors de acabar com a presidência rotativa e de limitar o direito de veto dos países. O jornalista não hesitou no ataque: “O Plano de Delors para Governar a Europa”, era o título do seu artigo, publicado em vésperas de um referendo ao Tratado de Maastricht na Dinamarca. O tratado acabaria por ser rejeitado nas urnas e Boris passou a considerar que tinha contribuído para esse “Nej” dinamarquês. No Reino Unido, o efeito dos seus artigos na perceção que os britânicos iam formando sobre a UE era ainda mais avassalador.
Uma década mais tarde, numa entrevista ao programa de rádio Desert Island Discs da BBC, o então deputado abordaria esse período da sua vida: “Era como se estivesse a atirar pedras por cima do muro do jardim e conseguisse ouvir os vidros da estufa em Inglaterra a partirem-se. Tudo o que escrevi em Bruxelas tinha este efeito incrível e explosivo nos tories. E deu-me esta espécie de estranha sensação de poder.”
Em 1994, Boris deixou Bruxelas. Pelo meio, tinha-se separado e voltado a casar — desta vez com uma amiga de infância, Marina Wheeler — e tinha consolidado a sua imagem como jornalista fora-da-caixa e influente. Mas para alguns, sobretudo dentro do meio, essa fama era manchada pela falta de rigor que imprimia no trabalho. Na festa de despedida dos restantes correspondentes, James Landale, do Times, aproveitou para lhe ler um pequeno poema que dizia o seguinte:
“Boris told such dreadful lies (O Boris contava mentiras tão horrorosas)/
It made one gasp and stretch one’s eyes (Que provocavam falta de ar e arregalavam os olhos)/
His desk, which from its earliest youth (A sua secção, que desde os primeiros tempos)/
Had kept a strict regard for truth (Mantinha uma ligação rígida com a verdade)/
Attempted to believe each scoop (Tentava acreditar em cada cacha)/
Until they landed in the soup (Até meterem água)/”
O poema de várias estrofes rematava com a seguinte ideia:
“The moral is, it is indeed (A moral é esta, é mesmo esta)/
It might be wrong but it’s a damn fine read (Pode estar errado, mas é uma bela leitura).”
Boris, conta-se em Just Boris, limitou-se a escrever uma nota de agradecimento pelo poema a Landale, dias mais tarde. E partiu, deixando Bruxelas para trás das costas.
A entrada na política. Um deputado preguiçoso e abalado pelo escândalo
De regresso ao Telegraph, em Londres, Boris passou a dedicar-se quase em exclusivo às suas colunas de análise política. Charles Moore, diretor do jornal à altura, voltava a reencontrar-se com ele, pela primeira vez desde aquele dia em que tinha sido convidado como orador da Oxford Union e conheceu o seu jovem presidente. “Ele impressionou-me muito”, conta ao Observador, mais de 30 anos depois desse momento. “Às vezes eu ia à Union falar e os presidentes eram tão aborrecidos… Todos eles querem vir a ser deputados e, por isso, são uma espécie de políticos-bebés. O Boris era muito mais divertido e inteligente. Lembro-me que tivemos uma conversa sobre o criacionismo!”
Agora, dez anos depois, voltavam a encontrar-se, desta vez numa redação. Embora, como recorda Moore, “ele raramente lá estivesse”. O padrão era o mesmo: Boris não aparecia, chegava tarde às reuniões, entregava os seus artigos tarde e a más horas — mas todos o perdoavam. “Era sempre impossível encontrá-lo e estava sempre atrasado. Mas tinha ideias brilhantes e sabia escrever como ninguém”, recorda Moore. Também Paul Goodman, que editou Boris Johnson no Telegraph durante alguns anos, partilha da mesma análise: “Se eu perguntasse a qualquer outro jornalista qual o tema da sua coluna para aquele dia, ele saberia explicá-lo. Se perguntasse o mesmo ao Boris, ele não era capaz de responder”, ilustra ao Observador. “É como pedir a um artista que explique a sua pintura. O Boris entregava sempre o texto atrasado, mas, quando chegava, vinha perfeito. Não tinha de mudar uma única vírgula.”
É neste período que o seu estilo desbragado se consolida, incluindo nas suas colunas termos como a palavra “piccaninnies” ou a expressão “sorrisos de melancia”, ambos termos racistas do inglês norte-americano, para se referir a negros. A polémica acompanhá-lo-ia nestas matérias ao longo da vida, como na vez em que criticou Barack Obama por retirar uma estátua de Churchill da Casa Branca, chamando-lhe “o Presidente meio-queniano”, ou quando comparou mulheres de burqa a marcos de correio.
Em todos estes momentos, contudo, a polémica ficou refém de uma outra perceção do público: a de que Johnson fala sem rodeios, de que é um homem divertido e de que diz o que muitos querem dizer, mas têm medo de o fazer. Da mesma forma, até o momento mais crítico da vida pública de Boris Johnson até chegar ao governo acabou por não o afetar como afetaria a maioria dos políticos: o chamado Guppygate, a divulgação de uma cassete com a gravação de um telefonema com o seu amigo de Oxford (e condenado por fraude) Darius Guppy. Na conversa, Guppy pedia a Boris o contacto de um jornalista para se vingar de uma investigação de que estava a ser alvo. “Garanto-te que ele não vai ficar magoado a sério”, prometia Guppy, passando a elaborar: “Não vai ficar com um braço partido, nem internado nos cuidados intensivos, nem nada do género. Provavelmente fica só com os olhos negros e uma costela rachada ou algo do género.”
Boris nunca chegou a dar-lhe a morada do dito jornalista. Na gravação, contudo, também não chama o amigo à razão. O acontecimento poderia ditar o fim da carreira política de Boris ainda antes de esta começar e, no entanto, não foi isso que aconteceu. Anos mais tarde, aquela chamada ainda era encarada com humor, até no programa Have I Got News for You?, cuja participação de Boris foi tão bem sucedida que este se tornou um convidado recorrente. “Às vezes, os críticos de Boris são tão duros com ele que isso se torna uma vantagem para o próprio”, analisa Andrew Gimson. “O público começa a dizer que foi um erro e que toda a gente os comete.” E Boris, à semelhança do que acontecia com os seus professores e os seus editores, vai sendo perdoado.
Divertido, por vezes chocante, mas nunca aborrecido. Este Boris Johnson, também reconhecido pelos que o liam como extremamente inteligente, começa a equacionar a entrada na política. A decisão, crê Charles Moore, foi em parte decidida pela popularidade: “Ele sempre teve ambição, mas não parecia daquelas pessoas que usavam o jornalismo para se tornarem deputados. Só que ele era tão popular entre os leitores e, como ele próprio vinha desse meio (o pai foi eurodeputado, por exemplo), percebeu que tinha ali uma hipótese.”
O problema é que essa decisão colidia de frente com a promessa que Boris fez a Conrad Black, dono da conhecida revista conservadora Spectator, que, em 1999, convidou o jornalista para a dirigir, a troco de uma promessa: nunca entrar na política. Boris, contudo, estava cada vez mais determinado em tornar-se deputado pelo Partido Conservador e matutava sobre como se justificar a Black. Foi num desses momentos de dúvida que telefonou a Moore. “Ele ligou-me para pedir um conselho”, conta o jornalista ao Observador. “Mas a mim pareceu-me que ele já tinha decidido, que ia quebrar a promessa que tinha feito ao Conrad e que queria apenas o meu apoio, e isso irritou-me. Por isso, perguntei-lhe em tom desafiador: ‘Mas o que é que tu queres afinal?’. E ele respondeu-me: ‘quero ter o bolo e comê-lo’”, disse, usando a expressão britânica que se assemelha à ideia de conseguir ficar com os dois pássaros na mão.
Assim foi. De tal forma que, quando Boris Johnson foi eleito deputado pelo círculo eleitoral de Henley, dois anos mais tarde, Conrad Black não só não o despediu, como lançou uma festa em sua homenagem. Como explicar tal decisão? “Boris é um fenómeno”, terá dito o empresário.
A entrada de Boris na Câmara dos Comuns foi, no entanto, muito menos bem sucedida do que o britânico estava habituado. Os colegas, mesmo aqueles que eram do mesmo partido, não gostavam dele. “Nunca o vemos”, comentaria um ao biógrafo Gimson. Outro destacaria um começo coxo: “Quando entrou, foi posto num comité [sobre legislação contra branqueamento de capitais] para o partido testar a sua capacidade de escrutinar um projeto de lei de uma matéria grande e complicada. Ele não foi capaz de criar a reputação que poderia ter criado, porque não fazia o básico. Havia uma certa preguiça.”
“Eles não gostavam muito dele”, reconhece Charles Moore sobre esses tempos. Mas porquê? “Boris estava habituado a ser uma estrela. E não é possível ser-se uma estrela quando se está a dar os primeiros passos na Câmara dos Comuns”, sentencia o antigo diretor do Telegraph. Para Quentin Letts, antigo colega de Boris no mesmo jornal, tudo se resume a falta de convicções: “O Boris não se irrita e é preciso ficar irritado: enquanto deputado, é preciso sentir as coisas, mas ele não tem alma, não tem crenças. A maioria das pessoas não entra pela política por vaidade, mas talvez tenha sido o caso dele”, declarou com acidez à biógrafa Sonia Purnell. “Na Câmara dos Comuns, uma certa gravidade é incontornável e ele não a tinha.”
Boris foi, assim, arrastando-se no Parlamento, sem rasgo nem atividade digna de nota. Os únicos momentos em que deu nas vistas foi quando se desviou da linha do partido, votando favoravelmente temas relacionados com direitos LGBT. Sobre o tema mais polémico daquela legislatura, a entrada do Reino Unido na guerra do Iraque, Boris apoiou-a. Anos depois, dir-se-ia arrependido e viria a criticar fortemente George W. Bush.
Perto do final do mandato, contudo, surgiria uma bomba que deixaria Boris Johnson muito mal visto dentro do partido. Os tabloides noticiaram que o deputado e diretor da Spectator tinha um caso com Petronella Wyatt, colunista da revista, e que esta teria feito um aborto a pedido de Boris. A imprensa perseguiu o tory, perguntando-lhe se era verdade. Este respondeu que tudo não passava de “uma pirâmide invertida de baboseiras”. Esse foi o seu grande erro, diz Gimson: “A negação clara do caso, à qual ele acrescentou aquele embelezamento sobre a pirâmide invertida, deu aos tabloides a desculpa perfeita para se intrometerem na sua vida privada. A partir daí, podiam embarcar numa missão presunçosa para provar que Boris era um mentiroso.” É que a história era mesmo verdade e tinha sido divulgada aos jornais pela mãe da própria Petronella. O líder dos conservadores, Michael Howard, pediu a Boris que se demitisse das funções de vice-presidente do partido e de ministro-sombra para as Artes. Boris recusou — e foi retirado à força.
O caso — e, pior ainda, o encobrimento — não impediram, contudo, a reeleição de Boris, em 2005. Mas deixaram claro, à semelhança do que já tinha acontecido com o Guppygate, que a vida privada de Boris Johnson poderia vir a ser um problema no seu futuro como político. Foi precisamente por isso que, anos mais tarde, o seu antigo chefe Max Hastings lhe deixou como único conselho na sua campanha para a autarquia de Londres que mantivesse “a sua pilinha guardada” nas calças.
Boris nunca teve grandes vícios ou segredos sórdidos do seu passado, mas a relação que mantinha com as mulheres tornou-se matéria de lenda ao longo dos anos, como as do tempo de Oxford, contadas por antigos colegas a Sonia Purnell, garantindo que não faltavam raparigas interessadas no presidente da Oxford Union. Isto apesar do seu estilo descuidado, do cabelo despenteado e da gravata virada: o seu estilo, diria um conhecido à biógrafa, “é também uma forma de vaidade. Uma vaidade que diz ‘tenho um magnetismo tão extraordinário que nem interessa como me visto’”.
O poder de atração de Boris vai muito para lá do aspeto físico, como garantem todos aqueles que se cruzam no seu caminho. Isso vale para os casos amorosos que pode ter acumulado ao longo da vida, é certo, mas também vai para lá da sua vida privada: na política, são muitos os eleitores hipnotizados pelo estilo de Boris, que lhe perdoam todas as falhas. “Ele é muito diferente de Donald Trump, mas há um ponto onde eles são parecidos: ambos são muito bons a vincarem-se na mente dos eleitores. É impossível não reparar neles”, resume Charles Moore. Boris Johnson pode não ter encantado na Câmara dos Comuns, mas é um homem capaz de encantar os eleitores. E isso ficaria provado no seu desafio seguinte: a candidatura a mayor de Londres.
A Câmara de Londres. Quando uma rivalidade (com Cameron) redunda em golpe de sorte
“Ser um deputado das filas de trás é muito menos popular do que ser presidente da Câmara. Por isso, Boris teve sorte. O que teria acontecido se nunca se tivesse tornado mayor?” A questão é colocada ao Observador por Paul Goodman, que não só acompanhou Boris no jornalismo, como também na Câmara dos Comuns — ambos foram eleitos pela primeira vez em 2001, pelo Partido Conservador. Goodman abandonou a política de cargos e dedica-se a editar o site ConservativeHome, mas recorda-se dos tempos em que David Cameron chegou à liderança do partido e do ponto em que Boris Johnson estava: “Ele era um político pouco comum, não respeitava as convenções. Com a liderança de Cameron, ficou um pouco encurralado.”
A situação era particularmente penosa para Boris porque David Cameron era um antigo colega por quem não tinha particular apreço. “É claro que há uma rivalidade entre eles”, resume o biógrafo Gimson. “O Boris é mais velho e o Cameron era quase um desconhecido em Eton e Oxford. E, à medida que o Boris se tornou um jornalista e uma personalidade televisiva conhecida, o David estava como que à espera, nas sombras. Creio que o Boris é mais talentoso do que Cameron; mas também é o mais mal comportado dos dois.”
Essa rivalidade acompanhá-los-ia ao longo da vida e seria evidente em episódios caricatos como o de uma reunião entre os dois, quando Cameron já era primeiro-ministro e Boris mayor, em que ambos terão lutado fisicamente pelo documento em papel do Tesouro onde estava inscrito o orçamento de Londres. “Cada um deles garantiu-me que tinha vencido essa luta”, conta ao Observador Andrew Gimson, entre gargalhadas. “É uma espécie de piada, mas ilustra bem a relação que eles têm.” O facto de Cameron ter chegado à liderança dos tories primeiro é uma espinha encravada na garganta de Boris: “É um dos traumas da minha vida”, diria o próprio, em tom de piada (ou talvez nem por isso).
Contudo, se há alguém a quem Boris deve o cargo de mayor e a popularidade que este lhe trouxe, é ao próprio David Cameron, que apoiou a escolha do deputado como candidato do partido a presidente da Câmara da capital. Boris chegou, viu e venceu. Contra o veterano Ken Livingstone, ficou à frente na corrida e conseguiu dar a gestão de uma cidade tradicionalmente trabalhista como Londres aos tories.
Os resultados de oito anos à frente daquela Câmara são mistos. Por um lado, Boris deixou um legado de megalomania, com construções como a ArcelorMittal Orbit e o desejo de criar um novo aeroporto, informalmente apelidado de Boris Island. O autarca não gostava do escrutínio, quer por parte da oposição (a cujas perguntas chegou a chamar de “tortura medieval”), quer por parte dos jornalistas (recusando as entrevistas mais difíceis). Quando os motins de 2011 abalaram a cidade, Boris estava de férias no Canadá e não demonstrou grande vontade de regressar.
Por outro lado, Boris manteve a cidade dentro dos eixos: o seu esquema de bicicletas urbanas foi um sucesso, foi atraído investimento estrangeiro para Londres, os níveis de criminalidade geral desceram ao longo desses anos e a habitação social foi reforçada. E, para além disso, Boris teve a sorte de ser presidente da Câmara na altura em que se realizaram em Londres os Jogos Olímpicos, uma ferramenta de soft power que ajudou a promover a imagem da cidade — e do próprio Boris. Até aquilo que poderia ter sido um acontecimento embaraçoso durante a promoção desses Jogos — quando o mayor ficou, literalmente, preso por arames, no ar, com um capacete azul enfiado na cabeça e duas bandeirinhas do Reino Unido nas mãos — se tornou um trunfo. “Para qualquer outro político, em qualquer lugar no mundo, ficar preso num arame seria desastroso. Para o Boris, foi um triunfo completo. Ele desafia todas as leis da gravidade”, comentaria David Cameron.
O que pensa mesmo Boris sobre o Brexit? O mistério que lhe trouxe a liderança
Chegados ao fim dois mandatos à frente da Câmara de Londres, Boris não quis fazer qualquer pausa e decidiu regressar à Câmara dos Comuns, muito embora essa esteja longe de ser a casa onde foi mais feliz. Para muitos, esse foi o sinal de que a sua ambição era desmedida e que sonhava um dia substituir David Cameron na liderança dos conservadores — e, possivelmente, como primeiro-ministro. Boris nunca o negou, preferindo sempre responder à pergunta — que, inevitavelmente, surgia em cada entrevista — dizendo que a situação não se colocava, porque Cameron estava para durar.
O que teria acontecido se Cameron tivesse cumprido o seu mandato até ao fim e Boris tivesse sido sujeito a mais alguns anos de estagnação nos Comuns? Ninguém sabe a resposta a essa pergunta, porque um terramoto chamado Brexit aconteceu e veio alterar todas as regras do jogo. Com a marcação do referendo, Boris tomou algum tempo para pensar e decidiu posicionar-se. Através da sua coluna no Telegraph, anunciou que iria fazer campanha pela saída.
Se essa é uma matéria de convicção ou de conveniência é um dos mistérios em torno de Boris Johnson, para o qual talvez nunca venha a haver resposta. A impressão de alguns dos antigos correspondentes em Bruxelas que foram contemporâneos do jornalista, como Charles Grant (The Economist), é que o sentimento anti-UE que transpirava nos seus artigos não era fruto da convicção, mas sim o resultado de um jogo de estratégia promocional, com Boris a compreender que se destacaria como repórter se seguisse aquela linha. Anos depois, estaria a acontecer o mesmo, agora na política? A dúvida adensava-se, ainda para mais com a divulgação de que Boris tinha escrito duas versões daquele artigo para o Telegraph, antes de se decidir: um a favor da permanência na UE, outro contra.
Paul Goodman, que conhece Boris pessoalmente, considera que ele seria incapaz de tal nível de dissimulação: “Teria sido tão difícil para ele fazer campanha por algo em que não acredita…”, diz ao Observador. Como explicar então a defesa da saída por um político que nunca antes tinha afirmado abertamente tal coisa? “Ele, como muitos outros no Partido Conservador, teve uma trajetória específica nesta matéria. O posicionamento anti-UE não era habitual na política britânica e tornou-se algo comum. Para além disso, acho que ele foi muito influenciado pelas ideias da sua mulher, Marina”, ilustra Goodman, referindo-se à segunda mulher de Johnson (de quem se separou entretanto para se juntar a Carrie Symonds), conhecida pelas suas posições de esquerda, mas anti-europeístas.
Já o biógrafo Gimson tem um entendimento totalmente diferente: “Ele sempre achou a UE pretensiosa, mas reconhecia que havia bons argumentos dos dois lados. Acho que ele queria ficar na UE, mas não queria ser um subordinado da campanha de David Cameron. Para Boris seria insuportável ser apenas mais uma peça na máquina de Cameron. Ele pensou bastante sobre o assunto e… decidiu fazer a coisa mais arriscada.”
O Leave (Sair) venceu no referendo, muito graças ao seu apoio. E nem o facto de Boris ter dado o beneplácito a táticas de campanha enganadoras, como a da afirmação mentirosa de que 350 mil libras semanais dadas à UE poderiam ser aplicadas no Sistema Nacional de Saúde, o prejudicou. Embalado pelo resultado do referendo, Boris considerou a candidatura à liderança dos tories, assim que David Cameron anunciou a demissão. O colega pró- Michael Gove, contudo, passar-lhe-ia a perna e anunciaria a sua candidatura, numa traição que Boris provavelmente nunca perdoará.
O período que se seguiu foi de travessia no deserto. Boris tornou-se ministro dos Negócios Estrangeiros de Theresa May e protagonizou uma série de gaffes desastrosas, que ajudaram a consolidar uma imagem de anedota nos meios diplomáticos e não só — “as pessoas gostam do Boris, mas não o respeitam”, chegou mesmo a comentar um embaixador em funções. A decisão de bater com a porta no governo de May, a propósito do plano de Chequers, e de passar a conspirar na sombra cimentou ainda mais a ideia de que Boris estava desesperado pelo lugar de líder dos conservadores. Mas não foi preciso esperar muito: apenas três anos depois do referendo, Boris Johnson tornou-se o favorito à substituição de May e conseguiu criar as condições para que essa mesma substituição ocorresse ainda antes do tempo. A 23 de julho de 2019, era eleito como novo líder do Partido Conservador. No dia seguinte, tomava posse por inerência como primeiro-ministro.
Tudo graças a um fenómeno chamado Brexit e a uma decisão — quer seja por convicção, quer por conveniência — que era arriscada e que compensou. E graças também a um estilo inconfundível, que não agrada a todos, mas que era eficaz.
Um primeiro-ministro nas nuvens. Uma eleição histórica e um Brexit alcançado
À altura, os elogios a Boris vindos de dentro do Partido Conservador repetiam-se: “Boris é uma espécie de pós-modernista”, afirmava Charles Moore. “Não precisa de seguir as convenções, é alguém que compreende esta era multimédia. Mesmo sendo uma pessoa que estudou os Clássicos.” Paul Goodman resume tudo com outra ideia: “Ele não se leva a sério e as pessoas gostam disso. E não tem medo de cometer erros.” O que não significa, porém, que tudo seja feito em cima do joelho: “Isso faz parte do show de Boris: ele parece estar a improvisar, mas, na verdade, tem sempre um plano.”
Três anos mais tarde, a situação é bem diferente. Gimson, Moore e Goodman não estiveram disponíveis para comentar a demissão anunciada do primeiro-ministro, esta quinta-feira, ao Observador. Outros, porém, não tiveram pudor em pronunciar-se sobre os três anos de governação de Boris Johnson, que se revelaram menos promissores do que muitos previam em 2019.
Eleito líder do partido com o lema “conseguir o Brexit” (Get Brexit Done), Boris Johnson teve um percurso atribulado desde cedo à frente dos destinos do Reino Unido. Em agosto de 2019, deixou a Rainha numa posição delicada, ao pedir-lhe uma prorrogação (suspensão) do Parlamento maior do que o habitual — decisão que viria a ser classificada como ilegal pelo Supremo Tribunal mais tarde.
Brexit. Boris Johnson declarou guerra ao Parlamento — e a Rainha é só um peão
Tratava-se de uma estratégia para conseguir ter o número de votos necessários para aprovar o adiamento da saída da União Europeia. Pouco importava que Johnson tenha dito que preferia “morrer numa valeta” a adiar o Brexit — quando a necessidade se impôs, o primeiro-ministro recorreu a todas as estratégias necessárias, afastando do partido todos os que se lhe opuseram na Câmara dos Comuns (incluindo o neto de Winston Churchill, Nicholas Soames, e o antigo ministro das Finanças Philip Hammond).
Polémicas rapidamente esquecidas por um fator que eclipsou todas as dúvidas que alguns conservadores ainda alimentavam sobre Boris: a vitória retumbante nas eleições de dezembro de 2019, convocadas antecipadamente pelo próprio primeiro-ministro para reforçar a sua maioria. Foi uma vitória que deu uma maioria de 80 deputados face à oposição, o melhor resultado para o Partido Conservador desde 1987, com Margaret Thatcher — algo que o próprio iria fazer questão de lembrar no seu discurso de saída.
À altura, em Londres, o biógrafo Andrew Gimson disse ao Observador que a vitória se devia a dois fatores: o foco no Brexit, tema que “mobilizou as pessoas”, e as próprias características de Boris Johnson como político. “As pessoas sentem que podiam tomar um copo com ele no bar se o encontrassem e também sentem que ele se ri das pessoas que merecem que a gente se ria delas”, descreveu.
Andrew Gimson, biógrafo de Johnson. “As pessoas sentem que podiam tomar um copo com Boris no bar”
Uma avaliação que, ainda hoje, se mantém, até da parte dos críticos. “Boris Johnson era um político incrivelmente popular, um político que se ligava às pessoas de uma maneira que muitos desejam, mas poucos conseguem”, admite ao Observador Peter Cardwell, antigo conselheiro de David Cameron e Theresa May. “O slogan dele à altura era ‘Conseguir o Brexit’ e toda a gente se lembra disso. O que as pessoas não se lembram é que a segunda parte do slogan era ‘Despertar o potencial do Reino Unido’ e isso é muito mais difícil. Ele é excelente a fazer campanha — mas não é tão bom a governar.”
Chris Wilkins, que também foi conselheiro de May, tem uma visão semelhante. “Ele foi muito bem sucedido naquele final de 2019, quando o Brexit parecia encravado. O país estava farto da paralisia e ele, de facto, acabou por conseguir o Brexit. Foi muito bom a apresentar-se como a resposta [aos problemas]”, reconhece o assessor. “Mas esta ideia de que ele é extremamente popular é um mito. Em 2019, ele ganhou por pouco mais votos do que Theresa May tinha ganho. Só teve aquele número de deputados porque roubou os votos aos trabalhistas em certas zonas fulcrais”, afirma, referindo-se à Red Wall do nordeste de Inglaterra que pertencia aos trabalhistas há décadas e que foi conquistada por Johnson graças ao Brexit.
No Norte de Inglaterra, Boris Johnson pode derrubar a “muralha vermelha”
“Quando o partido o elegeu, sabia o que estava a fazer. Foi um casamento de conveniência: escolheram-no porque sabiam que ele era capaz de vencer uma eleição e ele venceu. Mas o partido nunca o adorou, porque nunca achou que ele era um verdadeiro conservador”, acrescenta o ex-conselheiro.
A 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido saiu oficialmente da UE. O primeiro-ministro anunciou na televisão que a medida iria ressuscitar “o poder do pensamento e ação independentes do Reino Unido”. O país estava dividido entre os que rejubilavam e os que, mesmo que tristes, respiravam de alívio pelo fim do impasse. Boris Johnson cumpriu a sua promessa: o Brexit foi conseguido.
A queda. Festas, mentiras e uma moção de censura
Desde então, porém, não houve muito mais pontos altos para o primeiro-ministro britânico. Destacam-se duas exceções: o programa de vacinação contra a Covid-19, um dos mais rápidos e eficazes do mundo; e a posição do primeiro-ministro sobre a guerra na Ucrânia, que lhe garantiu muitas fotografias ao lado do herói do momento, Volodymyr Zelensky.
O número de crises, contudo, foi sempre superior. Boris esteve debaixo de fogo por ter usado donativos do partido para renovar o apartamento em Downing Street, por exemplo. Segurou o polémico conselheiro Dominic Cummings depois de este ter quebrado as regras de isolamento para a Covid-19. Defendeu até ao fim Owen Patterson, deputado conservador que quebrou as regras de lobbying, contra a opinião da maioria da sua bancada. E fez um discurso tão balbuciante perante empresários que invocou a Peppa Pig para justificar o sucesso inglês, ao mesmo tempo que parecia perdido a ler as folhas do discurso que trouxe.
Dentro da sua equipa, surgiam divisões e tricas. Não tanto a nível ministerial, já que Johnson parecia ter escolhido para o governo os mais leais, como a ministra da Cultura, Nadine Dorries, e o ministro dos Assuntos Parlamentares, Jacob Rees-Mogg. Uma decisão também ela criticável para alguns: “Não eram os mais brilhantes, nem os melhores, do partido”, acusa Chris Wilkins.
Mas se a lealdade estava aparentemente assegurada ao nível do Conselho de Ministros, uma guerra surda noutra área da sua equipa ia acabar por revelar-se mais danosa. O conselheiro Dominic Cummings e a mulher do primeiro-ministro, Carrie Johnson, lutavam por influência junto de Boris. Cummings acabaria afastado — e contribuiria para o maior escândalo da liderança de Johnson: o Partygate.
Boris Johnson cada vez mais na corda bamba. E Dominic Cummings vai fazer tudo para que caia
As notícias foram surgindo a conta-gotas e escalaram rapidamente. Relatos de festas em Downing Street como uma intitulada Bring Your Own Booze (Traga a sua própria bebida), numa altura em que os britânicos não podiam conviver ou ir sequer a funerais por causa da pandemia, chocaram os eleitores. A certa altura, surgiu nos jornais uma foto do primeiro-ministro a beber vinho e a comer queijo no jardim da sua residência, com membros da equipa. Boris Johnson garantia que não eram festas, mas sim eventos de trabalho. Dominic Cummings entrou em cena para assegurar que não.
“É a pior crise de sempre” deste governo, admitiria ao Observador o biógrafo Andrew Gimson, em dezembro de 2021, altura em que cresciam os rumores de que os próprios tories poderiam convocar uma moção de censura ao primeiro-ministro. Tudo isto à medida que a taxa de popularidade de Boris Johnson descia a pique.
Uma investigação policial e o relatório de investigação da funcionária pública Sue Gray dariam conta da dimensão do problema. 83 pessoas foram multadas por violar as regras do confinamento, incluindo o próprio primeiro-ministro. E o relatório de Gray revelar-se-ia ainda mais desfavorável a Boris: uma festa até às 4h da manhã no dia do funeral do Príncipe Filipe, uma máquina de karaoke, manchas de vinho na parede, brigas entre os participantes. “Falhas de liderança e de julgamento no gabinete do primeiro-ministro”, declarou Sue Gray sobre o escândalo. A Câmara dos Comuns abriu uma investigação ao próprio primeiro-ministro por suspeitas de ter mentido no Parlamento. Os pedidos de demissão acumulavam-se.
Steven Fielding, professor de História Política da Universidade de Nottingham, ilustra bem a dimensão do Partygate: “Foi a primeira vez que um primeiro-ministro foi multado por ter quebrado a lei. Foi a primeira vez que um primeiro-ministro foi investigado pela Câmara dos Comuns por ter mentido”, diz ao Observador, lembrando que este último processo ainda decorre. “Não há precedentes para isto”.
Desde então, a vida do primeiro-ministro nunca mais voltou a ser tranquila. Mas Boris Johnson manteve o padrão de toda uma vida: encolher os ombros e seguir em frente, na esperança de ser perdoado. Se resultava com os TPC, porque não poderia resultar como primeiro-ministro? A experiência ia-lhe dando razão. No início de junho, foi sujeita a votação uma moção de censura interna dentro do Partido Conservador; Boris, uma vez mais, convenceu os deputados e sobreviveu.
O fim. Três dias e dezenas de demissões depois, Boris sai de cena
O clima de guerra civil dentro do partido, no entanto, não desapareceu. E os escândalos também não: Chris Pincher, whip do governo, demitiu-se na semana passada, depois de ter assediado sexualmente alguns membros do partido numa festa — um comportamento que já não era novidade, como se veio a saber mais tarde. Boris Johnson disse que não sabia desse passado quando nomeou Pincher para o cargo, mas foi desmentido por funcionários do governo. Alguns relatos deram conta de que teria até comentado em tom de gozo “Pincher by name, Pincher by nature” (um jogo de palavras que em português significaria “Pincher de nome, beliscador por natureza”). Os anos passam, mas Boris continua a ser Boris, mesmo no cargo de primeiro-ministro.
O líder do governo acabou por reconhecer que estava a par do historial de Pincher e que cometeu “um erro”, recusando-se a confirmar ou desmentir que teria dito tal frase sobre beliscões. Minutos depois, os ministros das Finanças e da Saúde, Rishi Sunak e Sajid Javid, anunciavam a sua demissão — e davam início ao processo que culminaria com a demissão de Boris.
O caso de Pincher não é, contudo, o motivo da crise política. É antes a gota de água, como aponta Chris Willkins: “O verdadeiro dano foi provocado pelo Partygate, não tanto pelas festas em si, mas pela reação dele. Se Boris Johnson tivesse sido honesto, admitido tudo e pedido desculpas desde início, não teria chegado a esta situação. Mentiu, continuou a mentir e foi apanhado”, diz este antigo operativo de Downing Street. “Com o caso de Pincher, foi igual. E o que isto revelou foram as suas falhas de caráter. O Partido Conservador é um partido que valoriza as instituições, o respeito pelo cargo de primeiro-ministro. Aceitar alguém com este caráter seria prejudicial para a própria instituição e foi isto que decretou o seu fim”, vaticina.
A própria evolução da crise política foi em tudo atípica. Perante a demissão de dois dos seus ministros mais importantes, Boris Johnson manteve-se firme e assegurou que não se demitiria. A atmosfera dentro do Partido Conservador tornou-se febril: à medida que a semana avançava, aumentavam os pedidos de demissão de membros do governo. Só na quarta-feira, mais de 50 entregaram as cartas a pedir para sair, algo que não acontecia desde a década de 1930, segundo a revista Spectator. Ao todo, mais de 100 pessoas abandonaram os seus cargos executivos em apenas dois dias.
Nos corredores do partido, ardia uma fúria silenciosa contra Boris Johnson. O experiente jornalista Andrew Marr diz “nunca ter ouvido tanta raiva — nem sequer contra Tony Blair no rescaldo da Guerra do Iraque ou contra Margaret Thatcher durante a sua saída”. O caso de Thatcher é ilustrador de como o partido acaba por ter a palavra final no que a primeiros-ministros diz respeito: nas últimas horas no cargo, a primeira-ministra recebeu os seus ministros um a um, com quase todos a dizerem-lhe que devia demitir-se. Não houve moção de censura, porque não foi preciso — sem a confiança dos seus ministros, Thatcher sentiu que não tinha outro remédio a não ser sair. “Demasiado boa para aquele bando”, titulava o Daily Mail no dia seguinte. “O que foram eles fazer?”, perguntava o Daily Express.
A perceção de que a primeira-ministra histórica tinha sido traída pelos seus tornou-se matéria de lenda política. E, agora, Boris parecia acreditar que ele próprio estava a ser vítima de um complô, como Thatcher, apontou o antigo diretor de Comunicação de David Cameron no The Times. Por isso, continuava a resistir à demissão. “Durou demasiado e isso prejudicou a imagem do próprio país. Assim que Rishi Sunak se demitiu, era claro que ele ia ter de sair. Isto atingiu níveis de farsa”, lamenta Peter Cardwell.
A visita de Graham Brady, presidente do Comité 1922 que regula o partido, terá sido a estocada final. Boris Johnson dormiu sobre o assunto e, na manhã desta quinta-feira, anunciou a saída — mas apenas no outono, quando o partido já tiver eleito um novo líder. No discurso, não houve contrição, mas antes agradecimentos aos eleitores por lhe terem dado uma maioria histórica em 2019 e um ataque ao “rebanho” político que decretou o seu fim.
Ninguém sabe o que dirão os livros de História sobre Boris Johnson, nem sobre o seu legado do Brexit — a maior e talvez única conquista política de relevo que deixa. Certo é que a resistência em abandonar o cargo, após uma série de escândalos onde se destaca o Partygate, não abona a favor de um político que sempre foi diferente dos outros. Dentro do Partido Conservador, a sensação é a de que foi divertido ver Johnson em ação, mas chegou a um ponto em que as trapalhadas já não são vistas como enternecedoras, mas sim como perigosas. “Este é um tipo que fez a sua carreira a quebrar as regras e a dizer aquilo que os outros não eram capazes de dizer. Durante algum tipo, isso jogou a favor dele. Agora, foi precisamente isto que o deitou abaixo”, resume o assessor Chris Willkins.
Fora do partido, há quem tenha palavras ainda mais duras.“Ele faz este número de que é diferente e afável, de que gagueja, de que é ligeiramente caótico, mas autêntico. Mas é a figura política mais fria que existe. A sua ambição de se tornar primeiro-ministro orientou tudo o que fez ao longo da vida”, afirma o historiador Steven Fielding. “Ele é possivelmente o pior primeiro-ministro britânico dos tempos modernos — e isso é dizer muito. Tinha uma maioria de 80 lugares e não chegou sequer a meio do mandato por culpa própria.”
Boris Johnson, o homem do espetáculo, é um membro da elite que fez parte dos clubes mais seletos e que passou a falar pelo homem comum. É um estudioso dos Clássicos que sabe pensar fora da caixa. É um ilusionista, cujo maior truque é fingir que não se leva a sério — truque esse que lhe pode ter trazido a liderança dos destinos do Reino Unido. Mas o encanto esgotou-se para os britânicos e para os tories. A 7 de julho de 2022, Boris Johnson anunciou a saída de cena ao fim de 1.079 dias como primeiro-ministro, com uma taxa de rejeição acima dos 70%.
Talvez se tenha mesmo cumprido a profecia de um seu antigo tutor de Latim que, ao ser perguntado por um jornalista sobre a hipótese de Boris Johnson chegar a primeiro-ministro no passado, soltou a enigmática frase “Capax imperii nisi imperasset”. Dita originalmente pelo historiador Tácito, a expressão referia-se ao imperador Galba, cujo reinado durou apenas sete meses. A sentença é dura: “Visto como capaz de governar; exceto quando começou a fazê-lo.”
[Artigo publicado originalmente a 23 de julho 2019. Atualizado com a análise do período como primeiro-ministro]