A variante brasileira P.1 já era preocupação suficiente no Brasil, por ter a mutação E484K que, aparentemente, potencia a reinfeção com o coronavírus SARS-CoV-2. Agora, surge também o primeiro caso confirmado da variante sul-africana, que tem a mesma mutação e é responsável pela segunda vaga na África do Sul. E, como se não bastasse, foi identificada uma potencial nova variante com muitas semelhanças com a variante sul-africana. Tudo isto num momento em que o Brasil atravessa a pior fase da pandemia até ao momento: ultrapassou os 97.500 novos casos num dia a 25 de março e, duas semanas depois, registou um máximo de mais de 4.200 mortes em 24 horas.
A informação, ainda que preliminar e, por vezes, escassa permite encontrar sinais de como a transmissão descontrolada do vírus pode potenciar o aparecimento de mutações e como a falta de controlo nas fronteiras, nas viagens internas ou mesmo nos contactos sociais, permitem que as variantes entrem e saiam do país com facilidade. Que o digam os países vizinhos, como Peru ou Uruguai, onde a frequência da P.1 (ou B.1.1.28.1) tem aumentado.
A variante P.1 de Manaus está presente em, pelo menos, 36 países, incluindo vários países europeus, Japão, América do Norte e, naturalmente, América do Sul. “Em mais lado nenhum as novas infeções [em geral] são tão preocupantes como na América do Sul, onde os casos estão a aumentar em quase todos os países”, disse Carissa Etienne, diretora da Organização Pan-Americana de Saúde. Em muitos destes países, a variante P.1 tem contribuído para este aumento.
O Brasil é assim apontado como o centro da epidemia global, uma “ameaça” como é referido por alguma imprensa internacional. Mas Anthony Fauci, líder da task force de combate à pandemia de Covid-19 nos Estados Unidos, disse à BBC que não quer usar essa expressão “ameaça”. Prefere dizer: “O Brasil está numa situação grave que se está a espalhar para outros países da América do Sul. O que é lamentável”.
Neste momento, o Brasil é o país com o maior número de casos de infeção registados (quase 13,3 milhões), a seguir aos Estados Unidos (com mais de 31,7 milhões), e a pouca distância da Índia (com 13,2 milhões). Em relação ao número de mortes, o Brasil regista mais de 345 mil, sendo ultrapassado apenas pelos Estados Unidos com mais de 574 mil (dados do Worldometer, a 9 de abril).
Transmissão descontrolada do vírus não conhece fronteiras
A América do Sul tem 13 países e o Brasil faz fronteira com 10, incluindo a Argentina, Colômbia, Chile e Venezuela, que já detetaram casos da variante P.1. Em muitos destas fronteiras, especialmente na região da Amazónia onde a variante terá surgido, é fácil passar de um país para o outro a pé ou de barco e as famílias vivem de um e de outro lado da fronteira.
No final de março, a P.1 já representava 40% dos casos analisados em Lima e estaria disseminada um pouco por todo o Peru — país que faz fronteira com o Brasil e, em particular, com o estado do Amazonas, onde a variante terá surgido. César Salomé, médico no Hospital Mongrut na capital, disse ao The Washingthon Post que os doentes chegam aos hospitais com doença mais grave, com os pulmões mais afetados e que morrem em pouco tempo. Nem o facto de serem mais jovens os parece proteger.
[Número de casos total por milhão de habitantes em 12 países da América do Sul (não está representada a Guiana Francesa).]
No Uruguai, que faz fronteira com o estado de Rio Grande do Sul, são cerca de 30% dos casos analisados e, no Paraguai, metade dos casos junto à fronteira com o estado do Mato Grosso do Sul, reportou o jornal The Washinghton Post. O Uruguai, considerado um caso de sucesso na primeira vaga, poderá estar prestes a enfrentar a falência do sistema de Saúde e o Paraguai enfrenta uma situação ainda pior segundo uma especialista ouvida pelo jornal americano.
Covid-19. Uruguai, que ainda está na 1ª vaga, fecha fronteiras com Brasil e Argentina
“Perante o colapso do sistema de saúde, medicamentos cronicamente esgotados, deteção precoce deficiente, rastreamento de contatos inexistente, doentes às espera que imploram por tratamento nas redes sociais, vacinação insuficiente para profissionais de saúde e incerteza sobre quando as populações em geral e os mais vulneráveis serão vacinadas, o cenário no Paraguai é sombrio”, disse Elena Candia Florentín, presidente da Sociedade Paraguaia de Doenças Infecciosas.
[Número de mortes total por milhão de habitantes em 12 países da América do Sul (não está representada a Guiana Francesa).]
A única solução para os países sul-americanos, com sistemas de saúde frágeis e sobrelotados e fraca capacidade de implementar medidas restritivas, na generalidade dos países ou regiões, poderá ser a vacina contra a Covid-19 — se e quando chegar. O Chile, o país que está mais avançado na campanha de vacinação na América do Sul (com quase 40% da população com a primeira dose tomada), enfrenta, ainda assim, a pior fase da pandemia — resultado do relaxamento precoce das medidas.
A mobilidade tem aumentado em várias regiões da América Latina, referiu Carissa Etienne, diretora da Organização Pan-Americana de Saúde, em comunicado de imprensa. “Independentemente da fadiga pandémica, não podemos aliviar as medidas de saúde pública e as intervenções sociais sem bons dados e justificação”, disse, apelando a que as pessoas fiquei em cada e se protejam.
Chile. Como um dos países com maior taxa de vacinação volta ao confinamento
Outros países, por sua vez, têm tido dificuldades no acesso às vacinas. Não só porque enfrentam os mesmos problemas que a Europa resultado nas falhas de produção, mas porque, ao contrário do que aconteceu na União Europeia ou na União Africana, os países da América do Sul não se juntaram, como costumavam fazer, para negociarem em conjunto a compra das vacinas. O resultado é que países com um poder de compra não muito alto estão a pagar muito mais pelas vacinas do que outros países que conseguiram fazer melhores negócios.
“Isso tem sido prejudicial para estes países, e para todo o mundo, para conseguirem deter o vírus”, disse Felipe López-Calva, diretor regional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da América Latina e o Caribe, ao WP. “Porque nunca foi mais claro que ninguém estará protegido até que todos estejam protegidos.”
Antes da imunidade de grupo vem o risco de novas mutações
A P.1 é, por enquanto, a variante brasileira que causa maior preocupação, não só no Brasil como em vários países do mundo, mas também é aquela que se conhece melhor. A variante de Sorocaba agora descoberta, partilha 15 mutações com a variante sul-africana (B.1.351), tem seis mutações em falta quando comparada com a B.1.351, mas tem nove mutações novas. A análise genética dos vírus permitiu perceber que a variante terá tido origem na África do Sul, mas viajou pela Europa antes de chegar ao Brasil. Sobre o risco que ela representa, ainda não existem dados suficientes.
Esta é mais uma das 92 variantes do SARS-CoV-2 identificadas no Brasil, mas tirando a P.1 (variante de preocupação) e a P.2 (variante de interesse), as outras não têm causado muita preocupação. As mutações dos vírus fazem parte do processo natural: quando um vírus se replica no organismo humano pode sofrer mutações. Isto é o mesmo que dizer que quando copiamos um texto, podemos esquecer-nos de palavras, acrescentar outras ou escrever algumas com erros.
Muitos destes erros na cópia tornam o texto totalmente ilegível, que é o mesmo que dizer que o vírus não sobrevive e a mutação desaparece com ele. Outros erros, não afetam muito a leitura e mantém-se ao longo do tempo. Mas existem outras alterações que tornam o texto melhor — no caso do vírus quer dizer que se tornou mais bem adaptado e que essa alteração se vai transmitir às gerações futuras.
Com a ampla disseminação do vírus e a transmissão comunitária sem controlo (ou com pouco controlo), o vírus terá oportunidade de infetar mais pessoas. Quanto mais pessoas infetar, mais se vai multiplicar e por cada multiplicação podem acontecer novos erros nas cópias, que originam mutações. Assim, aumenta-se a probabilidade de surgirem novas variantes.
Por outro lado, quando mais tempo estiver no organismo de uma pessoa, mais hipótese tem o vírus de se multiplicar e, claro, originar mutações. É o que pode acontecer nas pessoas que demoram muito tempo a recuperar, como as que têm problemas no sistema imunitário. Neste caso, alguns dos vírus vão sendo eliminados, mas nem o organismo, nem os tratamentos conseguem eliminá-los a todos. Os que ficam serão cada vez mais resistentes à resposta imunitária.
O mesmo acontece quando o ritmo de vacinação é muito lento num país em que o vírus circula livremente — o Brasil tem mais de um milhão de casos ativos desde o início de março. A pessoa que receber a primeira dose da vacina, especialmente se tiver acontecido há pouco tempo, ainda pode ser infetada e mesmo que o organismo já tenha começado a produzir anticorpos, mas não uma resposta totalmente eficaz, significa que o sistema imune vai ser capaz de matar alguns exemplares do vírus, mas outros podem sofrer mutações que lhes permitam escapar a estes anticorpos. Esta pessoa pode então transmitir um vírus mais resistente a outras pessoas.
[Percentagem de pessoas que já recebeu pelo menos uma dose da vacina contra a Covid-19, em 12 países da América do Sul (não está representada a Guiana Francesa).]
É por isso que os especialistas pedem que, mesmo depois de vacinadas, as pessoas mantenham as medidas de prevenção como usar máscara e distância física. “Se há uma replicação descontrolada do vírus, ou seja, transmissão num ambiente sem regras de distanciamento social, confinamento e uso de máscaras, as pessoas suscetíveis vão misturar-se com as vacinadas. Sem barreiras, o vírus pode transmitir-se de uma população para a outra, potencialmente gerando variantes que escapam à vacina“, disse Julian Tang, da Universidade de Leicester (Reino Unido), a BBC Brasil.
O Presidente Jair Bolsonaro recusa totalmente a hipótese de confinamento e não fez a devida aposta na compra de vacinas. O problema é que, sem controlar a disseminação do vírus, em particular da a variante P.1, a situação no Brasil pode estar longe da resolução. A variante P.1 que terá surgido no estado do Amazonas, em novembro de 2020, representava 73% dos casos na capital, Manaus, e já estava presente em pelo menos 10 estados brasileiros, segundo a BBC.
A frequência da variante no país ou a existência de outras variantes de preocupação é desconhecida. A fraca aposta na sequenciação genética do vírus (leitura dos genes) não permite ter uma imagem fidedigna da situação no país. Foi isso que motivou o estabelecimento de uma rede de cooperação entre laboratórios brasileiros para aumentar a quantidade de genes sequenciados. Graças a esta rede, a equipa liderada pelo Instituto Butantan identificou o primeiro caso da variante sul-africana e uma variante aproximada na cidade de Sorocaba.