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Cardeal Peter Turkson: "Separar o Estado e a Igreja é esquizofrénico"

Peter Turkson foi um dos nomes mais falados para suceder a Bento XVI em 2013 e é hoje peça central na reforma da Igreja de Francisco. Em entrevista ao Observador, critica quem separa Estado e Igreja.

O cardeal ganês Peter Turkson é um dos pesos pesados do Vaticano. Atual prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral — instituição que resultou da fusão de quatro outros conselhos pontifícios, por iniciativa do Papa Francisco –, Turkson é um dos mais diretos colaboradores do Papa, um dos mais importantes “ministros” do governo da Igreja e um símbolo da reforma que Francisco está a levar a cabo, de dentro para fora, a começar pela cúpula de poder do Vaticano.

Em 2013, foi apontado como um dos mais prováveis sucessores de Bento XVI, após a resignação do Papa alemão. Seria o primeiro Papa africano em mais de 1500 anos, um filho de um mineiro, que tinha passado a adolescência a trabalhar num matadouro, numa pequena aldeia do Gana, e a juventude a tocar baixo numa banda de Afrobeat, antes de se tornar padre. Acabou por ser eleito o argentino Jorge Mario Bergoglio, mas o efeito foi semelhante: o primeiro Papa não europeu, em mais de mil anos. Numa entrevista ao Observador, em Fátima, onde esteve na semana passada como orador num encontro internacional do movimento Equipas de Nossa Senhora, Turkson desvalorizou o favoritismo de há cinco anos e disse que tudo não passou de um conjunto de apostas e da pressão dos meios de comunicação social.

Empenhado no desenvolvimento humano “em todas as dimensões da humanidade”, o cardeal ganês critica duramente aqueles que “insistem numa clara separação entre a Igreja e o Estado”, dizendo que tal separação é “artificial”. Questionado sobre a atuação da Igreja na sociedade — incluindo na questão dos refugiados, assunto que tutela no Vaticano –, destaca que o Vaticano não é um governo e que, por isso, a sua atuação baseia-se, sobretudo, no convite para o diálogo, mas desafia todos os cristãos que têm responsabilidades políticas a terem em conta a sua fé nas decisões que tomam.

O cardeal Peter Turkson é um dos principais "ministros" do Vaticano e uma peça fundamental na reforma da Igreja que o Papa Francisco está a fazer (VINCENZO PINTO/AFP/Getty Images)

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No ano passado começou a trabalhar como prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral. O que é que o Papa Francisco lhe disse quando o convidou para este lugar de grande responsabilidade na reforma da Igreja?
Antes do conclave em que o Papa Francisco foi eleito — e normalmente é o que acontece antes de todos os conclaves — os cardeais tiveram uma série de reuniões. Durante essas reuniões, sem saberem exatamente quem iria ser eleito Papa, os cardeais tentam discutir a situação da Igreja no mundo, nesse momento. Tentam pintar uma imagem do que a Igreja e o mundo são naquele momento, quais os desafios, quais os problemas. Não sabem quem será o Papa, mas aconselham já quem se vai tornar Papa. É uma oportunidade para conhecerem o pensamento um dos outros, mas serve, sobretudo, para pensar: o que é a Igreja hoje?

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E qual foi a resposta a que chegaram em 2013?
Na altura, houve um apelo constante para uma reforma. Houve muita gente a alertar para a necessidade de reformar a Igreja. Para o Papa Francisco, esta reforma para a qual os cardeais alertaram é a continuação do Concílio Vaticano II. Quando ele foi eleito, ele tinha este pensamento de fazer a reforma da Igreja, mas não o queria fazer sozinho. Por isso, criou um grupo de nove cardeais, com quem se encontra para planear e pensar tudo isto. Uma das reformas era simplificar a estrutura da administração da Igreja, a Cúria. Simplificar essa estrutura, torná-la mais eficiente, torná-la mais criativa e mais inovadora. Esta simplificação tinha de ser guiada por uma certa filosofia, uma certa lógica, e, para o Papa Francisco, a lógica que guia a reforma é a lógica de uma Igreja que é pobre, uma Igreja que consegue ir às periferias, uma Igreja que consegue dar resposta às condições da humanidade dos dias de hoje. Por isso, para ele, o tema da pobreza, que se relaciona com a imagem de São Francisco, foi um assunto crucial.

Olhando ainda para 2013, qual era a tal imagem que os cardeais pintaram da Igreja? Era uma Igreja para o século XXI?
A Igreja tem diferentes imagens, dependendo do lugar onde se está. Tenho a certeza de que, na altura da eleição do Papa Francisco, em 2013, a Igreja na América Latina era ligeiramente diferente, nas suas experiências de vida, da Igreja na Europa ou noutro lugar qualquer. O movimento cristão começou aqui na Europa. Começou em Jerusalém, mas mudou-se para aqui para a Europa há muitos, muitos anos. Muitas pessoas costumam dizer que a cultura europeia se baseia em três coisas: a filosofia grega, o direito romano e a tradição cristã. Estas três dimensões juntam-se para criar uma cultura europeia. Mas, como sabemos agora, a Europa tem dificuldades com esta parte cristã. A esta situação, uns chamam secularização, outros laicização, dão-lhe nomes diferentes. O grande desafio é que a experiência cristã na Europa, agora, não é o que foi antes.

"Para o Papa Francisco, a lógica que guia a reforma é a lógica de uma Igreja que é pobre, uma Igreja que consegue ir às periferias, uma Igreja que consegue dar resposta às condições da humanidade dos dias de hoje"

A secularização é o maior desafio da Igreja Católica hoje em dia?
Não pode ser o maior, porque a Igreja não é apenas a Europa. A Igreja também é África, a Ásia, a América Latina. Não diria que em África o maior desafio é a secularização. Em África diria, antes, que a exuberância das religiões é uma questão importante. Temos o problema de todos estes movimentos pentecostais, evangélicos. Esse é um fenómeno em África, mas também na América Latina. Na Europa, as pessoas sentem que são maduras. Há um sentimento de maturidade, que significa acreditar mais em mim mesmo do que em qualquer coisa que venha de fora.

Em Deus?
Neste caso, em Deus. Acreditar em mim mesmo vem de um certo entendimento de quem eu sou. É suposto que toda agente acredite em si mesmo. Até o cristão. Mas o cristão acredita em si mesmo enquanto criatura de Deus. Alguém pode pensar em si mesmo apenas numa perspetiva evolutiva, por exemplo. Mas quando temos uma fé em nós mesmos, que não é aberta a nada de transcendente, isso tende a tornar-nos individualistas. Sou só eu. Eu sou o centro. Eu determino as regras. Isso magoa a vida da sociedade. Uma concentração tão grande de mim mesmo significa que não estamos abertos aos outros, à relação com os outros. Isso torna-se um grande desafio. O individualismo é algo contra o qual temos de lutar.

Combater o individualismo é um desafio não apenas para a Igreja, mas para toda a sociedade, ou não?
Sim. Mas aquilo de que falamos não é da Igreja, porque a Igreja existe na sociedade. Sem sociedade, não há Igreja. A Igreja é um movimento do Evangelho dentro da sociedade. A Igreja existe enquanto expressão de que a sociedade aceita e vive a mensagem do Evangelho. É aí que está o desafio. A mensagem do Evangelho convida-nos à abertura ao outro. A começar por Deus e depois aos outros com quem coexistimos. A Igreja, neste contexto, é muito relacional. Baseia-se nas relações.

“Há desigualdade na forma como gerimos os nossos recursos”

Falemos novamente da reforma da Igreja que o Papa Francisco está a levar a cabo e do seu papel nessa reforma. Qual foi a missão que o Papa lhe deu quando o colocou à frente deste departamento da Cúria?
Como eu estava a dizer, naquela reunião antes do conclave, a sugestão era a de que deveria haver uma reforma da Igreja. O Papa Francisco foi eleito e surgiu a questão: que tipo de reforma? O facto de ele ter escolhido o nome Francisco mostra que, para ele, a reforma era fazer com que a Igreja respondesse à sua natureza pobre. Uma Igreja que chega aos pobres. Quando a Igreja descobre o seu caminho para os pobres, torna-se mais autêntica. Isto significa que as estruturas da Igreja devem ser reconfiguradas, para podermos responder melhor a este desafio. Nesse sentido, a fusão de várias instituições neste nosso dicastério teve como missão responder a uma questão fundamental e essa questão é o desenvolvimento humano integral. O desenvolvimento da pessoa humana. O que, no nosso mundo, nos vários mundos que temos, significa chegar aos que são pobres. Hoje, falamos do dinheiro aos milhões. Ainda assim, há milhões que são pobres. Há desigualdade na forma como gerimos os nossos recursos.

Qual é o papel da Igreja Católica no sentido de reduzir estas desigualdades?
Para o Papa Francisco, isto torna-se uma agenda. Significa que temos de chegar aos que são excluídos. Há pessoas na nossa sociedade que estão excluídas e nós devemos trabalhar no sentido da inclusão. Trazer toda a gente para bordo, em vez de mantermos pessoas lá fora. Isso transformou-se na sua agenda. Quando ele decidiu fundir os quatro dicastérios, o nome que foi dado ao novo dicastério foi o do desenvolvimento humano integral. O desenvolvimento de cada pessoa e de todas as pessoas, incluindo até aqueles que virão no futuro.

E em todas as dimensões.
Em todas as dimensões da humanidade. Eu, nós os dois juntos, o resto da sociedade, incluindo aqueles que virão depois de nós. Temos de pensar no seu bem estar. Isto tornou-se a agenda do nosso dicastério e reconhecemos isso a partir dos departamentos que colocámos em funcionamento. Assuntos sociais, direitos humanos, guerra, paz, dignidade humana; a migração e os refugiados, tráfico humano, escravatura moderna; saúde, pobreza, ecologia. Quando falamos de ecologia, falamos de ecologia humana, natural e até social. O estilo de vida social… Por exemplo, hoje em dia diz-se que as pessoas não querem famílias grandes. Não são as pessoas que dizem que as pessoas não querem famílias grandes. Os arquitetos que desenham as nossas casas, por exemplo… O espaço que dão para a família, a sala de estar. Isso também controla o tamanho das famílias. Não são apenas as condições económicas da família, os rendimentos. Há também o contexto social, o espaço. É por isso que o Papa Bento XVI falava da ecologia social. Desenvolvemos um sistema social que também influencia o nosso modo de vida e tudo o que fazemos, e temos de prestar atenção a isso. A ecologia integral, que se tornou o centro do trabalho no nosso departamento, é muito abrangente. Tratamos da pobreza, tratamos dos cuidados de saúde… Quando tratamos dos cuidados de saúde, por exemplo, não estamos simplesmente a falar de doenças. Estamos a falar das pessoas que praticam a medicina. Os médicos, os enfermeiros… Eles também vivem grandes desafios em questões de consciência. Há países que legalizaram o suicídio assistido, a que podem recorrer os pacientes terminais. Alguns médicos dizem que isso vai contra a sua consciência, que é suposto ajudarem as pessoas a curarem-se, não a terminar com a vida delas.

Em Portugal debateu-se recentemente a legalização da eutanásia.
Pois, é isso. O que é a eutanásia? O que quer dizer “morrer bem”?

A Igreja Católica deve ter uma voz, deve interferir neste tipo de matérias?
Não é uma questão de dever ter. Já tem. Para a Igreja Católica, a vida humana é sagrada do início até ao final. Ajudar é ajudar uma pessoa a viver melhor a vida, a ultrapassar as dificuldades. Não é acabar com a vida das pessoas, porque a vida vem de Deus. Se eu lhe disser, por exemplo, como há quem diga, que a minha vida não tem sentido, que não vale a pena viver… isso é um choque. Alguém pode ter uma doença, dizer que está a sofrer muito e pedir para acabar com a vida. Isto, para nós, tem muitos desafios. Primeiro, quando alguém nos diz que a sua vida não tem sentido, o nosso trabalho enquanto Igreja e o trabalho dos médicos e dos cuidadores é ajudar a pessoa a perceber que a vida tem sentido, que contribui de alguma maneira para a sociedade. Temos na nossa sociedade pessoas a quem chamamos os trabalhadores do setor social. Psicólogos, e outros, que ajudam as pessoas a encontrar sentido na vida. Temos de lutar contra uma ideia que há hoje em dia na medicina que é a do arranjar, consertar. O objetivo é sempre consertar as coisas. Se não as conseguimos consertar, eliminamos. Quando esta ideologia domina a medicina, estamos mortos.

"Temos de lutar contra uma ideia que há hoje em dia na medicina que é a do arranjar, consertar. O objetivo é sempre consertar as coisas. Se não as conseguimos consertar, eliminamos. Quando esta ideologia domina a medicina, estamos mortos"

Qual deve ser a ideologia na medicina?
Não pode ser a do consertar as coisas. É estar com as pessoas. Os verdadeiros cuidados de saúde são estar com as pessoas, partilhar a situação com as pessoas, para lhes trazer consolação. Se for possível curar, é isso que se faz. Mas não é como se o seu relógio estiver avariado e o fosse arranjar e se não o conseguir arranjar, joga-o fora e compra outro. Não podemos trazer esta ideologia para a vida humana.

“A Igreja não é a ONU. A ONU, para falar de desenvolvimento, vai falar do PIB”

O dicastério que dirige, como percebemos, é muito abrangente e toca muitas dimensões da vida humana. Há quem lhe chame um super-ministério…
Alguns chamam-lhe assim, porque se juntaram quatro conselhos pontifícios. Quando eu estava só com a Justiça e Paz, éramos 22 pessoas. Agora somos 65.

A dimensão e importância do dicastério trazem uma grande responsabilidade? Sente-se uma parte significativa da reforma do Papa Francisco?
O documento em que o Papa Francisco pediu a fusão dos departamentos chama-se motu proprio, que significa uma iniciativa pessoal. Um motu proprio significa que a decisão vem do próprio Papa. É uma reflexão pessoal, uma ideia pessoal. Não é um documento que resulta de um sínodo, por exemplo. Nesse documento, vem referido que o Papa, enquanto sucessor de Pedro, está sempre a reformar a Igreja, de forma a fazê-la funcionar melhor. A nossa missão é reestruturar a organização da Cúria Romana, para permitir que o Papa possa fazer melhor o seu trabalho. Por isso, o desafio para nós é ver esta fusão como uma simplificação do sistema, torná-lo mais criativo e inovador.

A Cúria Romana era ineficiente, muito grande e burocrática antes? Precisava urgentemente de ser mudada a partir do interior?
Não é que fosse ineficiente. Quando temos um trabalho para fazer, temos uma visão e depois desenvolvemos um método, uma forma de fazer esse trabalho o melhor possível. O Papa Francisco viu a Igreja do ponto de vista dele e, a partir da visão dele, construiu uma missão. Parte dessa missão era permitir que a Igreja conseguisse responder melhor aos necessitados, aos excluídos. Apesar de o nome do nosso dicastério ser Desenvolvimento Humano Integral, reconhecemos que o nosso entendimento do desenvolvimento pode ser ligeiramente diferente daquele, por exemplo, de que se fala nas Nações Unidas.

Qual é a diferença?
Por exemplo, eu fui a Oslo participar numa conferência e o moderador perguntou-me: “Cardeal, estamos aqui a falar de ciência. Qual é o papel da religião aqui?”. Aquilo de que estamos a falar, em última análise, é de pessoas. No momento que começamos a falar de uma pessoa humana, há um lugar de religião. Depende daquilo que entendemos que é um ser humano. Para muitas instituições, desenvolvimento é fazer alguma coisa a alguém, para a tornar noutra coisa diferente. Como polir um sapato. Isso não é desenvolvimento. Desenvolvimento é uma vocação de cada um de nós, corresponde à nossa natureza. Um convite à transcendência. O que o desenvolvimento faz é facilitar, tornar esta experiência mais fácil e garantir as condições para isso aconteça.

Fala de desenvolvimento humano de uma forma muito bíblica, evangélica.
É por isso que nós somos a Igreja, não somos as Nações Unidas. As Nações Unidas, para falar de desenvolvimento, vão falar do PIB. Isso é muito económico. Para nós, não é isso que importa. Que tipo de acessos as pessoas têm à imprensa, à liberdade, ao desenvolvimento cultural, à religião, à educação? O acesso a tudo isto é o que faz uma pessoa desenvolver-se. Uma pessoa pode ter muito dinheiro e não poder abrir a boca. Não é livre.

O cardeal Peter Turkson falou ao Observador em Fátima, onde esteve, na semana passada, a participar no encontro internacional das Equipas de Nossa Senhora (JOANA BAPTISTA/EQUIPAS DE NOSSA SENHORA)

JOANA BAPTISTA/EQUIPAS DE NOSSA SENHORA

Deixe-me perguntar-lhe isto outra vez: qual é o papel específico, concreto, da Igreja Católica nestas situações de que fala?
Certamente não somos um governo. Tentamos dialogar com os governos sobre aquilo que acreditamos ser o desenvolvimento. Partilhamos, dialogamos com os Estados. Não impomos, mas falamos do nosso sentido de desenvolvimento, que é inspirado pelo Evangelho. Sabemos que nem toda a gente é cristã. O nosso objetivo não é impor aquilo que sabemos. Queremos entrar em diálogo, conversar juntos, perceber como podemos fazer isto melhor. Partilhamos as nossas reflexões com os estados e eles podem achar as nossas reflexões significativas. É assim que procedemos. Tudo o que fazemos é convidar para o diálogo. Papas anteriores, como Bento XVI, falam do diálogo entre a fé e a razão. A razão da economia, a razão da ciência, a razão de tudo. Mas conversemos. Dialoguemos com a fé. Os governos não devem ter medo da Igreja.

Há governos com medo da Igreja Católica?
Alguns têm medo da Igreja.

Quais?
Não quero nomear nenhum governo aqui (risos). Mas, por exemplo, quando as pessoas insistem numa clara separação entre a Igreja e o Estado, quando dizem que uma coisa é a Igreja e outra é o Estado, isso é artificial.

Não acha que as questões da Igreja devem estar separadas das questões do Estado?
É artificial. Quando falamos do Estado, quem são os sujeitos do Estado? A pessoa humana, certo? Quando falamos da Igreja, quem são os sujeitos da Igreja? A pessoa humana. A mesma pessoa, o mesmo sujeito, em duas condições diferentes, mas mantidos afastados. É artificial para a pessoa, torna a existência artificial para a pessoa. Por isso, as duas coisas deviam estar juntas. Para nós, elas pertencem-se mutuamente. É por isso que falamos do diálogo entre as duas e o levamos a várias dimensões. Convidamos empresários e dizemos-lhes: “Alguns de vocês são cristãos. Mas vivem os vossos negócios enquanto empresários e vão à Igreja enquanto pessoas de fé. Isso é artificial. Porque não levam a vossa fé para os vossos negócios? Sejam empresários enquanto pessoas de fé. Deixem a vossa fé inspirar o vosso trabalhar”. Separar os dois é esquizofrénico. Vive-se numa personalidade dividida.

Mas isso parece-lhe possível? Ainda há pouco falávamos da crescente secularização da sociedade.
O que é único na Europa do século XXI? O que mudou na Europa? A Europa ainda é a Europa.

Por exemplo, o facto de os jovens sentirem cada vez menos a necessidade de um vínculo religioso, ao contrário do que acontecia há várias década?
Isso também é resultado de um desenvolvimento. Há algum tempo, os pais que, eles próprios, não estavam muito interessados na Igreja, diziam que não deviam batizar os seus filhos, que deviam deixá-los crescer e tomar essa decisão por si próprios. Por isso há uma série de jovens que cresceram sem terem a mínima ideia sobre a Igreja. Podem viajar ao Vaticano para ver a Praça de São Pedro, mas para eles é um museu, uma atração turística. Não é com o mesmo sentimento. Isto criou esta geração. Mas há outros que cresceram a ouvir falar da Igreja. A nossa sociedade é mista, entre estes, aqueles e aqueles outros… Mas a ideia que é passada é a de que cada um é mestre de si próprio. Cada um controla a sua vida, cada um é responsável pela sua própria vida. Isso é verdade. Mas que vida? Se entendermos a nossa vida como algo que os nossos pais nos deram porque nos trouxeram à vida, percebemos que não nos criámos a nós próprios. Nascemos. E quando constatamos o facto de que nascemos, podemos pensar: “Porque é que os meus pais não me abortaram? Se o tivessem feito, não estaria vivo”. Por isso, de certa forma, se estamos vivos, é graças aos nossos pais que nos trouxeram ao mundo.

"Quando as pessoas insistem numa clara separação entre a Igreja e o Estado, quando dizem que uma coisa é a Igreja e outra é o Estado, isso é artificial"

Está a fazer aí uma comparação entre o nascimento biológico e o batismo?
O verdadeiro entendimento da vida é que ela é um dom. Um dom primeiro de Deus e depois dos nossos pais. Se somos o produto de um amor, produto de um dom dos outros, o natural seria dizer “obrigado”. É isso que as pessoas não estão a dizer. As pessoas dizem: “A minha vida é só minha”. Sim, a vida é nossa para a vivermos, mas não estamos na origem dela. Viemos de algum lado e é bom reconhecermos de onde viemos. As pessoas tentam fazê-lo de várias formas. E o que fazem? Vão à procura de formas diferentes de meditação, para tentar responder a este desafio que têm dentro de si. Viram-se para o Budismo, para o Hinduísmo, para o ioga. O ser humano é um ser relacional, e a forma como vivemos esta relação com Deus torna mais fácil descobrir como nos relacionar com as outras pessoas. Quantos casamentos acabam? Quantas crianças andam por aí sem um pai, criados apenas pela mãe? Por que é que as pessoas não ficam juntas? Porque as relações são difíceis de construir, porque já se negligenciou a primeira relação original, que é com Deus.

“A Igreja não é apenas a Europa”

Nos últimos consistórios, o Papa Francisco tem criado cardeais de vários países não europeus. Acabar com o domínio europeu, e sobretudo italiano, é um passo essencial na reforma da Igreja?
Podemos chamar-lhe parte da reforma, mas é uma tentativa de representar o facto de que a Igreja não é apenas a Europa. Todos nós acreditamos que a Igreja é universal. Na verdade, no Credo que rezamos, dizemos que cremos numa Igreja una, santa e católica, numa Igreja universal. Se esta Igreja é universal, então não é apenas a Europa. A Europa foi missionária, a maioria dos missionários vieram da Europa, no passado. Por isso, a Europa levou a Igreja a muitos outros lugares. Mas o facto de ter levado a Igreja a outros lugares é bom para se perceber onde é que a Igreja hoje existe. Passamos de uma Igreja eurocêntrica para uma Igreja mais universal. A Igreja era mais eurocêntrica na altura em que precisávamos de mais cardeais oriundos de países mais maduros e experientes. Agora o Papa Francisco diz que não, que temos de ter todos a bordo, ter toda a Igreja representada aqui no centro. Por isso, cria cardeais de todo o lado. Tonga, Fiji, República Centro-Africana. Tudo para dizer que todos pertencem à Igreja.

E como é que a Cúria Romana olha para estas nomeações?
Às vezes fala-se da Cúria Romana como se tivesse vida própria, mas de certa forma não tem. A Cúria Romana trabalha para o Papa.

Mas durante muitos anos os cardeais eram maioritariamente italianos.
Na verdade, a Cúria Romana não é onde estão a maioria dos cardeais. A Cúria Romana pode ser dominada por Itália porque está no centro de Itália e, quando precisamos de alguém para ajudar a arrumar a casa, olhamos à volta e é em Itália que os encontramos. É mais fácil encontrar italianos para o staff da Cúria Romana.

Ao contrário do colégio de cardeais.
No colégio dos cardeais, não necessariamente, porque o Papa pode nomear qualquer cardeal para Roma, se quiser. É com o Papa fazer nomeações de tal forma a que haja um equilíbrio.

"A Igreja era mais eurocêntrica na altura em que precisávamos de mais cardeais oriundos de países mais maduros e experientes. Agora, o Papa Francisco diz que não, que temos de ter todos a bordo, ter toda a Igreja representada aqui no centro. Por isso, cria cardeais de todo o lado. Tonga, Fiji, República Centro-Africana. Tudo para dizer que todos pertencem à Igreja"

O Papa Francisco está a inverter esse equilíbrio?
O equilíbrio de que estou a falar é um equilíbrio entre a Europa e a Igreja universal. Há cardeais europeus, mas também há cardeais não europeus. Quando falamos do staff em Roma… Há três cardeais africanos em Roma, um está reformado e dois estão no ativo. A Ásia ainda não tem ninguém. Temos gente da Argentina, da América Latina, dos Estados Unidos, mas a Ásia não está bem representada. Penso que isso será o próximo assunto em que o Papa vai pensar. Estou a tentar fazer o mesmo no meu dicastério, porque nós servimos a Igreja inteira. Os assuntos sociais com que lidamos não são apenas de Itália ou de Roma. São também das populações indígenas, por exemplo. Ontem, no Rio de Janeiro, pedi a um cardeal: “Pode enviar alguém do Brasil? Porque só temos uma irmã brasileira, e pedi se ele podia enviar mais alguém”. E ele disse que ia procurar alguém. Agora vou às Filipinas e vou pedir ao cardeal de lá se nos pode ajudar. De África, tenho falado com cardeais do Mali.

Nomear tantos cardeais de vários lugares do mundo que não a Europa é uma forma de o Papa Francisco garantir que a reforma vai continuar depois dele? Que teremos novamente um Papa não europeu?
É possível. Os cardeais que podem escolher o Papa juntam-se e podem escolher quem quiserem. Quando temos cardeais de vários lugares, então a possibilidade de o escolhido ser de outro lugar que não a Europa é maior. Mas não é automático. Na verdade, penso que todo o mundo está a ser desafiado, em especial a Igreja Católica. Temos de olhar para os assuntos centrais da nossa fé.

Em 2013, o seu nome foi um dos mais falados para suceder a Bento XVI como Papa.
Isso foram os media! Antes de mim, foi um cardeal da Nigéria, o cardeal Arinze, e antes ainda um cardeal do Benim, e começou a haver apostas. Numa coisa, eu acredito: quando chegar o momento de escolher um Papa, não devemos escolhê-lo como se escolhe um presidente ou um chefe de Estado. Não funciona assim. Sempre que um Papa morre, os meios de comunicação escrevem sobre quem é conservador, quem é moderno, quem é reformador, quem é isto ou aquilo. Essas são categorias que não se aplicam na Igreja.

Não diria que o Papa Francisco é um reformador?
Ele não foi escolhido por causa da reforma. A escolha do Papa Francisco foi arrasadora para os meios de comunicação. Quando o Papa morre, os jornais já têm informações sobre os cardeais de topo, para quando ele for eleito já terem alguma coisa. Com o Papa Francisco, ninguém sabia nada, ninguém estava à espera.

O primeiro Papa não europeu em mais de mil anos. O que aconteceu então? O que motivou a escolha?
Não foi o que motivou os cardeais. É o que Deus quer fazer com a sua Igreja. Quando o tempo de escolher o Papa chegar, devemos rezar mais do que especular. Isto não é como escolher um presidente ou um chefe de Estado. A Igreja existe porque é um grupo religioso e acredita que Jesus Cristo e o Espírito Santo a guiam. Para os que acreditam nisto, quando é o momento de escolher um líder, temos de rezar mais para que Deus nomeie a pessoa para o momento certo na história. Não pode ser uma questão de especulação. As pessoas podem especular, mas se esta Igreja é para continuar, tem de haver um líder adequado que a possa levar em frente.

Qual deve ser o próximo passo na reforma da Igreja?
Ele tem nove cardeais que o aconselham. Ele marca o passo e nós seguimos o passo que ele marca. Como ele tem os nove cardeais que o aconselham, está sempre a consultá-los. Três ou quatro vezes por ano, há uma reunião de todos os chefes dos dicastérios com o Papa, para conversarmos juntos, para dialogarmos sobre quais são os novos desafios. Cada um dos líderes faz uma apresentação. No último consistório, eu fiz uma apresentação sobre as migrações e discutimos o tópico das migrações e os desafios que envolve.

Em 2013, Turkson foi um dos nomes mais falados para suceder a Bento XVI na liderança da Igreja Católica (ALBERTO PIZZOLI/AFP/Getty Images)

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O dicastério que lidera é responsável pela abordagem da Igreja à questão das migrações e dos refugiados. A Europa, neste momento, ainda se vê a braços com uma crise de refugiados. Qual é o papel da Igreja Católica nesta crise?
O papel da Igreja já está presente. O Papa Francisco manifestou muito interesse no assunto das migrações e já há coisas concretas. Se pegarmos na Venezuela, as igrejas nos países à volta da Venezuela estão a montar centros de receção para receber os migrantes da Venezuela. Agora, algo semelhante está a acontecer na Guatemala. No Rio de Janeiro, onde estive há poucos dias, disseram-me que, no norte do Brasil, as igrejas já montaram centros de receção para refugiados, também. A Igreja está a fazer este papel sem fazer muito barulho.

Na Europa é mais difícil. O novo Governo italiano, por exemplo, pode ser um obstáculo.
Mas isso não quer dizer que a Igreja não possa ajudar os refugiados. Até o próprio Papa. No Vaticano, há centros onde refugiados e sem abrigo podem vir para tomar banho, cortar o cabelo, etc. Em vários lugares de Itália, as igrejas locais, mosteiros e conventos abriram as suas casas para receber refugiados, tomar conta deles e ajudá-los. A Igreja não é um governo…

Mas devia intervir mais na diplomacia mundial?
Não falemos de a Igreja intervir mais, falemos de os cristãos intervirem mais. Os membros da Igreja, que são os cristãos, são membros de governos, são políticos… Estes são os que não deviam apenas ir à missa, mas viver os princípios da fé e da Igreja no governo. Quando há cristãos que são parte de um governo e há uma discussão, não pode ser feita apenas do ponto de vista do governo. Alguns vão à missa e são voluntários na sopa dos pobres, mas depois quando vão para o Parlamento e discutem isto, também têm de discutir os assuntos a partir desse ponto de vista. Quem são os deputados? Quem são os governantes? São cidadãos. Alguns cristãos, outros não cristãos. Os cristãos têm de se fazer ouvir. Quando às vezes se fala da Igreja, parece que falamos de uma entidade diferente na sociedade. O Vaticano não vive onde estão os migrantes. Os migrantes estão nas igrejas locais, na Suíça, na Áustria, na Inglaterra, na Itália, na França, onde for. São os bispos locais, as igrejas locais, que lidam com este assunto. O Vaticano pode vir com linhas orientadoras, conselhos e apoio e o Papa Francisco tem feito isso. Mas é com os bispos locais, com os padres, a tarefa de serem capazes de pôr isto em prática.

 
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