Sempre que há um sismo como aquele que houve em Portugal em agosto, José Galamba de Oliveira diz não ter mãos a medir com tantos convites para “falar para as televisões e para as rádios”. Porém, “passado umas semanas, o tema já desapareceu do radar”, lamenta o presidente da Associação Portuguesa de Seguradores (APS). Há anos que “a APS batalha” para aumentar a cobertura de risco sísmico nas casas em Portugal, que é muito baixa, mas as alterações climáticas estão a levar o setor a preocupar-se também com outro tipo de calamidades – como, por exemplo, as recentes inundações em Valência. Na Europa, a cobertura desses riscos não vai além de um quarto do que seria necessário – e em Portugal, esse “protection gap” é ainda maior.
Esse “fosso de proteção” (protection gap), onde Portugal aparece em situação ainda mais preocupante do que a média dos países europeus, foi dissecado nesta terça-feira na conferência anual da entidade que supervisiona a atividade das seguradoras no país, a ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões). O conceito diz respeito, em termos simples, à diferença entre as perdas económicas totais causadas por uma catástrofe natural, por exemplo, e, por outro lado, os valores que estavam protegidos através de seguros.
Quanto maior for esse “fosso” menos resilientes as sociedades e as economias serão se ocorrerem catástrofes naturais ou outros riscos. Mais lenta, também, será a recuperação dessas calamidades e maior pressão irá ser colocada sobre os Estados que, “no final do dia, podem ter de fazer o bailout de muitas destas perdas”, apontou o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, no discurso de abertura da conferência da ASF. Ou seja, nessas situações-limite o Estado, com os seus meios limitados, é obrigado a aparecer como prestamista de último recurso.
O ministro das Finanças salientou que “o Governo tem acompanhado” a discussão sobre os riscos de catástrofes naturais, com os sismos à cabeça, e “aguarda com expectativa o trabalho” que está a ser desenvolvido pela ASF e que está atrasado em relação ao prazo inicialmente definido. A presidente do regulador, Margarida Corrêa de Aguiar, respondeu, depois, que se “perspetiva para breve” a entrega ao Governo de um “primeiro documento com propostas concretas” sobre como se devem acautelar riscos desta natureza, envolvendo o setor público e o setor privado.
“A criação de um sistema nacional de cobertura do risco sísmico, que incluirá um fundo especificamente dedicado, pode representar um primeiro passo para a extensão posterior do sistema à cobertura de riscos climáticos”, afirmou a presidente da ASF, acrescentando que, “sem prejuízo dos estudos técnicos que será ainda necessário realizar, a ASF irá apontar nesse sentido, no relatório que entregará ao Governo, designadamente ao nível da proposta de modelo institucional de governação do fundo sísmico, de modo a permitir uma futura gestão alargada a outros riscos de natureza catastrófica”.
Momentos antes, o ministro das Finanças tinha dito que “nas últimas décadas, os efeitos das alterações climáticas têm sido particularmente visíveis na maior frequência e severidade de fenómenos externos, como catástrofes naturais”. “Calamidades como a que assistimos recentemente em Valência vêm evidenciar a importância de ter mecanismos robustos de prevenção e gestão de catástrofes mas, também, a urgência de formar e sensibilizar as populações e os agentes económicos para a necessidade de terem sistemas de proteção adequados”, afirmou Miranda Sarmento, salientando que, “pela sua localização geográfica, Portugal encontra-se particularmente exposto a riscos físicos, nomeadamente eventos sísmicos”.
“Só com uma forte complementaridade entre os agentes públicos e privados poderemos reforçar os mecanismos de prevenção e gestão dos riscos que são cada vez mais exigentes e necessários para todos”, concluiu Miranda Sarmento.
Risco climático e catástrofes. “Protection gap” de Portugal pode chegar aos 96%
A Swiss Re, uma das maiores resseguradoras do mundo (empresas cujo negócio é comprar parte do risco a que estão expostas as seguradoras que, essas sim, vendem seguros a clientes), divulgou recentemente um estudo de âmbito global no qual revelou que, só em 2023, as perdas económicas globais associadas a desastres naturais atingiram 280 mil milhões de dólares, das quais apenas 38% se encontravam cobertas por seguros. Ou seja, o protection gap excedeu os 60%.
“As catástrofes naturais como furacões, terramotos, inundações e tempestades tornaram-se mais intensas e frequentes nos últimos anos, representando uma ameaça tanto para as pessoas como para as economias de todo o mundo”, diz a Swiss Re, num estudo várias vezes citado na conferência. “O encargo financeiro de tais eventos é enorme, mas apesar desta ameaça muitas pessoas e empresas continuam sem seguro, deixando-as vulneráveis quando ocorre uma catástrofe natural”, alerta o estudo.
Uma das participantes na conferência, Pamela Schuermans, da EIOPA (regulador europeu do setor), salientou que “as catástrofes naturais estão a tornar-se mais frequentes e as perdas económicas são cada vez maiores”. A Europa não está numa situação especialmente favorável nesta matéria, já que o protection gap se aproxima dos 75%, em média – ou seja, a Europa está pior do que o resto do mundo, em média, quando se compara com os valores calculados pela Swiss Re (para 2023).
E qual é o protection gap em Portugal? José Galamba de Oliveira, presidente da APS e representante das empresas seguradoras, diz que “não conseguimos chegar a números tão finos, falta-nos informação e dados fidedignos“. “A nossa grande dificuldade”, acrescentou Galamba de Oliveira, é “perceber qual é o valor das perdas económicas em Portugal, porque em relação aos eventos nós vamos conseguindo apanhar alguns valores”.
Ainda assim, o responsável argumentou que “temos uma tendência, em Portugal, de aumento da frequência destes eventos extremos da natureza”. “Desde 2010 houve mais de 800 milhões de euros de perdas cobertas por apólices de seguros em eventos extremos da natureza”, o que contrasta com um “valor de mais de 15 mil milhões de euros em perdas económicas [totais] no mesmo período”. Galamba de Oliveira reconheceu que este último valor é um cálculo “grosseiro”, que pode ser maior ou menor, mas serve para dar uma ideia da pequena fração de perdas económicas que foram ressarcidas pelos seguros.
A pedido da ASF, a Nova School of Business and Economics fez, em 2022, um relatório técnico onde identificou as principais áreas onde se verificam gaps de cobertura seguradora no mercado nacional. E a conclusão ilustrou a posição comparativamente pior de Portugal nesta matéria.
“O protection gap relativo ao risco climático e de catástrofes naturais observado em Portugal entre 1980 e 2020 foi de 96%, que compara com 78% para os 27 países da União Europeia“, revelou o relatório. “Com perdas totais em consequência de catástrofes naturais a rondar os 13,5 mil milhões de euros no período referido, Portugal é o décimo país da UE com o maior registo de perdas por quilómetro quadrado”, acrescenta o estudo que está disponível no site da ASF.
“Casas são principal património das famílias” e estão “desprotegidas”, diz a APS
O supervisor europeu do setor, a EIOPA, estima que, por exemplo na área dos incêndios florestais, o grau de proteção em Portugal não vai além dos 5%. E na área da habitação, afirmou José Galamba de Oliveira, “temos um gap elevadíssimo: temos mais de 6 milhões de habitações em Portugal e 47% têm cobertura de seguro mas, frequentemente, a cobertura de seguro é apenas a de incêndio, que é a obrigatória para a propriedade horizontal”.
Relativamente aos seguros para risco sísmico, em 2022 o grau de cobertura nas casas correspondia a 19%, apenas mais dois pontos percentuais do que aquilo que foi calculado cinco anos antes, em 2017. Ou seja, apenas uma em cada cinco casas têm algum tipo de proteção contra risco sísmico.
“As habitações são, para grande parte das famílias portuguesas, o seu principal património, é aí que está acumulada a sua poupança, e não deixa de ser surpreendente que esse património não tenha uma proteção na maioria dos casos”, afirmou José Galamba de Oliveira.
Outro problema, acrescentou, está relacionado com a “literacia” dos tomadores de seguro, como se viu nas inundações de final de 2022 em várias cidades portuguesas (incluindo na região de Lisboa). “Quando houve as inundações, visitámos algumas autarquias mais afetadas e vimos que as pessoas até tinham seguros mas não tinham cobertura de fenómenos da natureza, ou seja, as pessoas acham que têm um seguro e acham que o seguro vai cobrir mas só têm a cobertura mínima obrigatória”, referiu o presidente da APS.
A associação considera que, da mesma forma que há várias décadas é obrigatório seguro contra incêndios (em prédios), “chegou a hora de ver se não faria sentido alargar a outro tipo de fenómenos como os fenómenos da natureza“. José Galamba de Oliveira pede que seja, finalmente, criado um “sistema nacional de proteção de riscos catastróficos: “Eu acho que este é um tema onde temos de avançar rapidamente em Portugal, andamos a discuti-lo há 25 anos e continuamos numa situação de desproteção face ao risco sísmico”, rematou.