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“Capitalismo do KGB”. É este o termo que Catherine Belton usa para descrever todo o sistema montado por Vladimir Putin e os seus aliados na Rússia ao longo de mais de 20 anos no poder e que, diz, o ajudou a perpetuar-se nesse lugar. Uma mistura de desconfiança do Ocidente com a utilização dos seus instrumentos financeiros para enriquecimento pessoal e corrosão dos adversários ocidentais. Uma ideologia suis generis que rejeita a herança soviética ao mesmo tempo que promove uma “mentalidade de Guerra Fria”. Uma mentalidade que não tem pudor em eliminar antigos aliados quando deixam de se tornar convenientes.
É esta a principal tese de Os Homens de Putin (ed. Ideias de Ler — Porto Editora), a edição portuguesa da obra de Catherine Belton, que chegou a Portugal esta quinta-feira. Um livro que foi recebido com críticas altamente elogiosas no mundo anglo-saxónico — o The Times chamou-lhe mesmo “o livro mais importante sobre a Rússia moderna” —, mas que valeu à sua autora e à editora internacional um processo nos tribunais britânicos, movido por Roman Abramovich.
Apesar de ambas as partes terem entretanto chegado a acordo judicial, Belton continua a não poupar nas críticas que faz a Abramovich. Prova disso foi a conversa que teve com o Observador, a partir de Londres, onde não evitou o tema: “Tínhamos três antigos colegas de negócios dele a dizerem-me que Putin lhe pediu que comprasse o [Chelsea] para obter essa influência. Apresentei estas alegações ao porta-voz dele e incluímos o desmentido dele no livro. Por isso fiquei muito surpreendida quando fui processada por ele por causa disto. Para mim, a ligação dele a Putin é muito clara.”
Antiga correspondente do Financial Times e da Agência Reuters em Moscovo, Belton passou sete anos da sua vida a preparar este livro. Contactou com dezenas de fontes, incluindo o milionário russo caído em desgraça Sergei Pugachev, que em tempos jantava com Putin e os seus aliados e agora vive no exílio em Londres, temendo ter o mesmo destino que homens como o antigo espião Alexander Litvinenko (envenenado com polónio-210 no Reino Unido) ou o antigo magnata dos media Boris Berezovsky (encontrado misteriosamente morto em casa no mesmo país). “Quando olhamos para os russos exilados podemos pensar ‘Eles têm contas a ajustar, é claro que vão exagerar tudo’, mas não me parece que seja esse o caso”, reflete a jornalista na entrevista ao Observador. “Os exilados são aqueles que conseguem ver a verdadeira Rússia. Os oligarcas que ainda têm bens lá têm mais a perder e nunca contam toda a verdade.”
Ouça aqui a entrevista na íntegra e em inglês – conversa não dobrada.
Em tempos, para muitos, a ideia de que estes homens poderiam ter sido diretamente assassinados por ordem do Kremlin soava a teoria da conspiração. Mas Belton diz que a guerra na Ucrânia fez “cair a máscara” a Putin e revelou ao mundo do que ele é capaz. Dá como exemplo os atentados aos apartamentos de Moscovo em 1999, invocados por Putin como justificação para a segunda guerra na Chechénia, que ajudou a disparar a sua popularidade. Há anos que muitos (como Litvinenko e Berezovsky) têm alertado para a possibilidade de esses ataques não terem sido obra de terroristas chechenos, mas sim um trabalho dos próprios serviços secretos russos, o FSB.
Belton não defende abertamente esta tese, mas diz que há matéria para pensar duas vezes: “Apesar de todas as provas, muitos dentro da elite de Moscovo diziam ‘Isso não pode ser, Putin não iria matar os seus próprios cidadãos'”, aponta. “Mas olhem para o que se está a passar agora: ele está a bombardear abertamente os ‘irmãos’ ucranianos e a enviar o seu próprio povo para morrer e para servir de carne para canhão.”
A escalada do conflito na Ucrânia nos últimos dias, com a ordem de uma mobilização parcial, é para esta analista do Kremlin um sinal de que o Presidente russo está “encurralado”. Belton vaticina que a medida será impopular o que, combinado com a instabilidade interna e o estado atual da economia do país, tem potencial para agitar as águas dentro da elite russa. “Veremos nascer uma luta entre os que o querem substituir”, prevê. E diz que a ação pode vir inclusivamente de dentro do próprio FSB: “Provavelmente os serviços secretos russos olham agora para Putin como uma ameaça e não me surpreenderia se alguém o tentasse afastar.”
A importância da Ucrânia. “Eles acreditam que, sem a Ucrânia, a Rússia não consegue ser um império”
É impossível evitar as notícias recentes da mobilização anunciada pelo Kremlin. Parece que o conflito da Ucrânia é agora uma guerra total e já não é uma “operação militar”. O seu trabalho debruça-se sobre Vladimir Putin e o funcionamento interno do Kremlin ao longo do tempo. Ficou surpreendida com esta decisão?
Sim, acho que é surpreendente. Até o início da chamada “operação militar especial” foi surpreendente, porque até esse momento, mesmo quando estava a anexar a Crimeia ou a levar a cabo uma guerra híbrida no Donbass, Putin sempre o fez de uma forma em que mantinha um certo grau de negação plausível. É claro que em 2014 houve um crescendo das tropas perto das fronteiras na Ucrânia, mas depois foram retiradas. Foi-lhe dito que não tinha o apoio dos ucranianos e que a resposta ocidental seria muito forte, portanto, ele sempre manteve um certo pragmatismo nas suas ações e havia uma máscara. Tudo aquilo que ele fez contra a lei internacional, as violações flagrantes de direitos humanos e os assassínios, tudo isso foi feito com algum grau de negação. Nem sempre plausível, é claro, mas agiu de forma encoberta.
Em fevereiro ele deixou cair a máscara quando decidiu invadir e começar a matar milhares de civis inocentes perante todo o mundo. Isso foi surpreendente. Agora temo que estejamos a assistir a uma espécie de desfecho da situação, porque a Rússia perdeu milhares de soldados, muitos desertaram e Putin está encurralado. E ele acredita que não se pode dar ao luxo de perder, portanto, está a escalar e a enviar todos estes soldados russos, sem treino militar, das regiões mais pobres do país. Acho que neste momento ele só pode tentar manter o território que já conquistou, não acho que estes soldados destreinados e sem equipamento vão conseguir lançar novas ofensivas contra os ucranianos. Putin só está a aguentar, porque acha que não pode ter mais retiradas embaraçosas. Mas, na verdade, está só a cavar o seu próprio buraco.
Acha que ele teme que o seu futuro político esteja em risco? Ou seja, que ele de certa forma ligou o seu futuro ao que acontecer na guerra da Ucrânia?
Claro que sim. No início da guerra, quando Putin mudou o foco da tomada de Kiev para a conquista de um pedaço do leste do país, ouvi um milionário russo dizer claramente ‘Se Putin perder o Donbass, vai estalar uma enorme guerra dentro da elite do Kremlin para o tentar substituir’. É isto que Putin teme, mas a sua posição está tão fragilizada agora que ele só se enterrou mais. Está a arriscar tudo o que construiu em 22 anos de presidência. A sua popularidade vai evaporar-se agora que estes pobres russos são confrontados com a realidade sinistra da guerra. As pessoas vão perder os seus entes queridos, portanto, é claro que a popularidade dele vai cair. E essa sempre foi a sua fonte de legitimidade dentro da elite russa — se Putin não for popular, veremos nascer uma luta entre os que o querem substituir.
No livro menciona que em 2004, na sequência da Revolução Laranja, houve rumores de que Putin ficou tão assustado com a aproximação da Ucrânia ao Ocidente que considerou demitir-se. Por que acha que a Ucrânia ocupa um lugar tão central na ideologia do Kremlin, que não é ocupado por outras ex-repúblicas soviéticas?
Eles de certa forma acreditam que, sem a Ucrânia, a Rússia não consegue ser um império e isto é crucial para a posição da Rússia no palco internacional. Eles acreditam que o Ocidente se infiltrou na Ucrânia e está a tentar controlá-la. Vladimir Yakunin, um antigo agente do KGB em São Petersburgo e um dos mais antigos aliados de Putin, chegou a destacar como o conhecido ‘falcão’ americano [Zbigniew] Brzezinski dizia que, sem a Ucrânia, a Rússia não consegue ser um grande país. E, portanto, acreditam que a CIA tem planos que, de tantos em tantos anos, tira da prateleira para tentar retirar a Ucrânia à Rússia. Putin vem de um passado no KGB onde fazia parte de um dos grupos mais progressistas — ele pode não ser um progressista agora, mas na década de 1980 era — dentro da comunidade dos serviços secretos que acreditava que o comunismo tinha minado o império russo. Acreditavam que a ideologia comunista fazia com que o país falhasse na competição com o Ocidente. Na sua primeira entrevista, em 1992, Putin culpou os bolcheviques pela tragédia que foi a dissolução da União Soviética. Ele disse “Partiram o país em repúblicas que antes não existiam e é por isso que enfrentamos esta tragédia hoje”.
Ele sempre acreditou que os bolcheviques tinham feito um pacto com os nacionalistas ucranianos após a Revolução [de 1917] para criar uma república que ele sempre achou fazer parte do império russo. Que os bolcheviques abdicaram dessa república para aumentar o seu poder, fazendo um pacto com aquilo que ele vê como o Diabo, os nacionalistas ucranianos. Portanto, Putin vê a Ucrânia como uma parte integral da Rússia e que, infelizmente, acha que não devia existir [como país independente]. Temos pessoas como Alexander Dugin, um ideólogo extremista que sempre achámos estar à margem, mas que na verdade dá aulas na Academia Militar desde os anos 90 e que escreveu um livro na altura onde pedia que a Ucrânia fosse desmembrada e que a Rússia tomasse controlo da costa do Mar Negro. E agora vemos isso a acontecer ou, pelo menos, uma tentativa para que isso aconteça.
Nos últimos anos, quando se falava da Rússia, havia uma ideia de que muitas coisas soavam a teoria da conspiração. “Isso é demasiado”, “Eles não iriam matar todos os inimigos” ou “Eles não podem ter um plano para tentar conquistar parte da Europa”. Acha que as teorias da conspiração já não são só teorias?
Temo bem que sim, porque vimos muito claramente quão implacáveis Putin e os seus aliados do KGB são e quão longe estão dispostos a ir para preservar o poder. Toda a gente falava dos rumores do envolvimento do FSB nos atentados aos apartamentos de Moscovo, que ajudaram Putin a chegar ao poder… Ele chegou montado num cavalo branco e disse que ia vingar os moscovitas pelos atentados que mataram centenas de pessoas enquanto dormiam e, por isso, lançou uma guerra e toda a gente o admirou por enfrentar os terroristas chechenos.
Mas havia algumas pessoas que diziam que tinha havido envolvimento do FSB e também algumas pistas: um antigo general do FSB disse ter reconhecido uma das pessoas a plantar materiais explosivos nos apartamentos e foi preso. Mas, apesar de todas as provas, muitos dentro da elite de Moscovo diziam “Isso não pode ser, Putin não iria matar os seus próprios cidadãos”. Mas olhem para o que se está a passar agora: ele está a bombardear abertamente os “irmãos” ucranianos, chama-lhes uma “nação irmã” e, no entanto, está a matar milhares de civis na Ucrânia. Neste momento está a enviar o seu próprio povo para morrer e para servir de carne para canhão.
A relação entre a Rússia e o Ocidente. “Putin ficou paranóico”
Uma ideia atravessa todo o seu livro, a de que a mentalidade no Kremlin atualmente é uma mentalidade herdada dos tempos do KGB, combinada com a fé num certo modelo de capitalismo. Esta mentalidade de Guerra Fria, de oposição ao Ocidente, combinada com um certo aproveitamento do capitalismo ocidental, permanece tendo em conta os acontecimentos dos últimos meses?
Penso que durante a era Putin eles procuraram muito obter legitimidade. Tentaram obter o reconhecimento dos mercados ocidentais, infiltrando-se e adquirindo soft power nas democracias ocidentais, através dos bancos e mercados financeiros. E obtiveram imenso poder aqui. Mas, desde que Putin começou a guerra na Ucrânia, isso foi minado e eles começaram a descartar esta utilização do capitalismo. Era uma ferramenta de soft power que usavam para minar e corromper os inimigos no Ocidente. Sempre tiveram, por exemplo, uma relação muito próxima com os alemães, que muitas vezes desculparam os piores aspetos do regime de Putin ao tentarem manter uma relação de negócios — e a achar que as coisas podiam melhorar e que Putin e os seus aliados podiam mudar. Aliás, todo o Ocidente achava que quanto mais a Rússia estivesse integrada no Ocidente, mais acabaria por se comportar.
Infelizmente, provou-se que não foi assim e penso que quando Putin lançou esta guerra achava que o Ocidente estava tão corrompido que não o enfrentaria e que não haveria uma frente unida. Felizmente, não foi esse o caso, arranjámos uma espinha e enfrentámos as atrocidades terríveis cometidas por este regime. Agora parece-me que ele desistiu de manter quaisquer relações com o Ocidente. Todas estas décadas em que os executivos da Gazprom estiveram cuidadosamente a cultivar relações de dependência com a Alemanha e outros países foram atiradas janela fora.
Bem como os milionários que viveram em Londres durante anos e usufruíram de uma rede financeira ali estabelecida.
Sim, todos aqueles impérios, tudo o que eles fizeram para alimentar uma reputação foi atirado janela fora e destruído. Os executivos da Gazprom acabaram de perder o seu maior mercado, a Europa, porque a Rússia usou o gás como arma política de forma tão flagrante que não resultou. Embora os preços da energia tenham subido, voltaram a descer para os valores de julho e esta jogada de tentar chantagear o Ocidente não está a resultar.
Acha que é por uma questão de convicção ideológica anti-Ocidente ou apenas a tentativa de sobrevivência interna de que falávamos?
Acho que são ambas as coisas. Putin acredita mesmo que o Ocidente se infiltrou de certa forma na Ucrânia e ficou paranóico, acha que os EUA em particular usam a Ucrânia como uma plataforma para minar o seu regime. Eles ficaram com medo dos treinos da NATO, do armamento que estava a ser enviado… Mas nada disso teria acontecido se ele não tivesse anexado a Crimeia em 2014, porque a Ucrânia não precisaria do apoio americano como acabou por precisar. Portanto, há paranóia e, até certo ponto, é algo justificada, mas não até ao ponto em que seria necessário começar uma invasão, porque não havia qualquer risco de ataque iminente ou ameaça. Mas, ao mesmo tempo, ele também começou esta guerra por uma questão de sobrevivência política, porque já está há 20 anos no poder, a economia já não cresce e ele não tem nada a oferecer aos russos. Não há nenhuma razão para ele se manter no poder a não ser esta confrontação, ou quase-confrontação, com o Ocidente. Tudo isto é um erro de cálculo terrível e trágico. Vimo-lo cometer erros de cálculo com a Ucrânia uma e outra vez, como quando apoiou abertamente o Presidente Viktor Yanukovich em 2004. Desta vez ele achou que se enviasse tropas para o outro lado da fronteira e disparasse uns quantos mísseis, o Presidente Volodymyr Zelensky iria tremer, fugir e entregar o poder aos russos. Acho que os generais do FSB lhe disseram isso, que ele fugiria e seria possível tomar o país em menos de três dias. Nenhum dos lados estava preparado para uma guerra prolongada. Portanto, é uma série de erros de cálculo terríveis e trágicos que levaram a que ele ajustasse a campanha militar para se focar no leste.
E os russos muitas vezes tentam apenas safar-se, fazer o melhor de uma situação má. Por exemplo, pensaram que com o bloqueio da exportação de cereais e a chantagem na energia poderiam talvez redesenhar o mercado global. “Fazemos acordos com a China e a Índia e o Ocidente vai implodir economicamente por causa da inflação e do custo de vida e os seus líderes não vão sobreviver a isto”. Mas isso também não está a funcionar, por um lado porque os ucranianos resistiram fortemente e, por outro, vimos Putin a ser claramente avisado na semana passada por Xi [Jinping] da China e [Narendra] Modi da índia. Cada vez mais ele deixa de ter alternativas para contornar as sanções através da China, da Índia ou do Cazaquistão. Estão todos a virar-lhe as costas e isto só se vai agravar depois desta mobilização geral.
Olhando para os últimos 20 anos, há a sensação de que Putin conseguiu controlar todo o aparelho do poder e afastar quem quer que surgisse como potencial problema. Foi assim com Boris Berezovsky na área dos media, com Mikhail Khodorkovsky na energia… Agora estamos numa altura em que a situação já não diz respeito a indivíduos, mas a todo um país, o qual não se pode acusar judicialmente ou mandar envenenar. As velhas táticas do KGB já não funcionam para o momento atual?
Acho que neste momento a maioria dos serviços secretos russos até já rejeita Putin. Neste momento ele é o elemento mais perigoso para o país, está a recorrer a tentativas desesperadas e a por em causa tudo o que o país alcançou nos últimos 20 anos. Não há estabilidade, a economia está em cacos e agora há pessoas a serem enviadas para morrer, o que coloca o risco de uma revolta popular. Quando vemos russos de minorias étnicas a serem enviados em massa para aviões para irem lutar longe, sem treino, significa que podemos vir a assistir a mais separatismo, talvez em regiões como o Daguestão [no Cáucaso] ou a Buriácia [na Sibéria]. Isto pode levar à implosão da própria Federação Russa. Portanto creio que provavelmente os serviços secretos russos olham agora para Putin como uma ameaça e não me surpreenderia se alguém o tentasse afastar.
A influência dos oligarcas russos em Londres. “Abramovich tentou reescrever a História”
Escolheu Sergei Pugachev como uma espécie de fio condutor ao longo de todo o seu livro. Por que razão se focou nele? O que tem a história de Pugachev que a de Khodorkovsky ou a de Berezvosky não tinham?
Ele era um alinhado nos primeiros dois mandatos da presidência de Putin, enquanto Khodorkovsky esteve preso 10 anos, desde 2003. Portanto, não tinha exata noção do que aconteceu ao longo desses anos. Até mesmo antes de ser preso, ele não era próximo de Putin. E Berezovsky estava em Londres desde 2001. Já Pugachev deu-me de facto uma oportunidade para perceber quem são estas pessoas, ele conhecia-as bem. Sabemos disto por causa das fotografias que ele tem de jantares com Nikolai Patrushev, líder do Conselho de Segurança, com Igor Sechin [CEO da Rosneft e secretário privado de Putin durante anos], com o próprio Putin… Ele tem fotografias dos seus filhos com as filhas de Putin, com a mulher de Putin. Esta é uma pessoa que tinha acesso não só à família de Putin, como ao próprio funcionamento interno do Kremlin, pelo menos durante os dois primeiros mandatos.
A partir de 2010, ele começou a ser afastado, mas até aí esteve presente em todos os desenvolvimentos importantes. E havia material documental onde podíamos verificar se aquilo que ele dizia era ou não verdade. Valorizei muito o facto de o poder entrevistar. Descobri que era muito consistente e todas as afirmações controversas que fez foram verificadas com pelo menos duas ou três fontes, para serem corroboradas. Quando olhamos para os russos exilados podemos pensar: “Eles têm contas a ajustar, é claro que vão exagerar tudo”, mas não me parece que seja esse o caso. Os exilados são aqueles que conseguem ver a verdadeira Rússia. Os oligarcas que ainda têm bens lá têm mais a perder e nunca contam toda a verdade. Portanto, ter a oportunidade de falar com ele foi muito bom e estou muito grata por ele ter partilhado tudo aquilo que partilhou.
O seu livro teve críticas muito positivas, mas também foi alvo de um processo judicial [por parte de Roman Abramovich]. Não sei até que ponto está autorizada a falar sobre o tema, mas queria perguntar-lhe pelo menos se acha que a influência dos oligarcas russos no trabalho jornalístico no Reino Unido ainda é muito visível ou isso também se alterou com a guerra na Ucrânia?
Mudou radicalmente, é uma mudança do dia para a noite. No ano em que Abramovich me perseguiu e à [editora] Harper Collins, ele também estava a processar muitos outros jornais. Bastava mencionar o nome dele em ligação a Vladimir Putin para os advogados dele enviarem cartas e ele conseguiu que muitos artigos fossem retirados. Foram muito ameaçadores e isso levou a muita auto-censura. As pessoas tinham medo dele e dos advogados dele, porque qualquer processo judicial destes é muito caro.
Sentiu isso quando escreveu o livro? Pensou: “Se calhar não devia escrever que há quem diga que o Chelsea na verdade pertence a Putin e não a Abramovich”?
Achei que isto era uma questão de interesse público que devia ser noticiada, porque ele adquiriu muito soft power e influência através disto. Tínhamos três antigos colegas de negócios dele a dizerem-me que Putin lhe pediu que comprasse o clube para obter essa influência. Apresentei estas alegações ao porta-voz dele e incluímos o desmentido dele no livro. Por isso fiquei muito surpreendida quando fui processada por ele por causa disto. Para mim, a ligação dele a Putin é muito clara. Estive sete anos a trabalhar neste livro e, portanto, não estava a escrever sobre ele todos os dias e nunca antes tive de lidar com esta pressão judicial. Fiquei surpreendida, não tinha percebido que o clima agora era este, que de repente ele andava a tentar reescrever a História e a negar coisas que não podem ser negadas.
Mas, como disse, agora as coisas mudaram, porque ele foi sancionado precisamente pelas suas ligações a Putin. É claro que está a tentar processar a União Europeia para negar isto e tentar levantar as sanções de que é alvo. Mas creio que agora vemos claramente quão instável é a sua posição, tendo em conta que ele é intermediário nas negociações com os ucranianos. A Ucrânia disse abertamente: “Sim, dizemos a Abramovich para dizer ao chefe dele”, que é Putin, portanto, penso que é agora claro a relação que eles têm.
Também é interessante como houve alegações de envenenamento nessas negociações.
Aí está um caso que me parece claro de que o Kremlin não é uma estrutura monolítica. Há ‘falcões’ dentro do Kremlin que querem que a guerra prossiga de forma ainda mais dura e depois há o chamado ‘partido da paz’, que quer que ela termine. Abramovich faz claramente parte deste último grupo, porque os seus interesses económicos estão em risco e não creio que ele queira a guerra ou seja um ‘falcão’, de todo. Portanto, isto foi um aviso para ele. Se o quisessem matar, tê-lo-iam matado. É claro que temos desde então assistido a esta série de assassinatos de executivos de empresas russas e outros homens de negócios….
Que agora caiem mais frequentemente de janelas.
Sim, caem de janelas sozinhos! Temo que isto seja um sinal da grande agitação que o regime está a atravessar. Vimos isto, por exemplo, nos últimos dias do regime comunista. À altura, o líder comunista do departamento responsável pela gestão de propriedade do partido caiu de uma janela e morreu, logo a seguir ao golpe de Estado de agosto [de 1991], quando o Partido Comunista já tinha os dias contados. E, pouco depois, foi a vez do seu antecessor e, depois, de uma pessoa responsável pela gestão de propriedade do partido nos Estados Unidos. Por isso, parece uma tradição.
Nessa altura, parece que as pessoas morriam porque sabiam demasiado sobre onde estava o dinheiro, quem levou o quê para aonde, e alguém queria calá-los. Neste caso, creio que é um sinal do enorme caos e incerteza [que ali se vive]. Não sabemos os detalhes de cada caso — talvez estas pessoas tenham desviado dinheiro, talvez tenham dado informações. Não sabemos. Mas é um sinal da enorme tensão que se vive dentro da elite russa.