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Corria o ano de 2012 quando Boris Johnson, o excêntrico e popular presidente da câmara de Londres, se pronunciou assim: “Como nunca me canso de dizer, a probabilidade de me tornar primeiro-ministro é só ligeiramente mais alta do que a de ser decapitado por um disco de frisbee, cegado por uma rolha de champanhe, trancado num frigorífico ou a de reencarnar como uma azeitona.”
Passaram-se sete anos desde essa afirmação. E eis que, sete anos depois, com Theresa May a anunciar a sua saída de cena, Boris Johnson parece estar à beira de bater as probabilidades de se tornar numa azeitona. É ele o grande favorito à sucessão da primeira-ministra britânica. E porquê? Porque, entre 2012 e 2019, há uma palavra que separa e transforma as realidades políticas de então e de agora. Qual é essa palavra? Brexit, naturalmente.
Johnson, Farage ou Cummings. O que é feito das caras do Brexit?
O ministro dos Negócios Estrangeiros Jeremy Hunt pode bem já ter anunciado a sua intenção de se candidatar à liderança dos tories, tal como a ex-ministra do Trabalho Esther McVey. E até o presidente do grupo parlamentar dos conservadores, Graham Brady, pode fazer o gosto ao músculo político e entrar na corrida. Mas de nada lhes devem valer as intenções: o mais certo é que Boris Johnson venha mesmo a ser o próximo líder dos conservadores britânicos e, por inerência, o próximo primeiro-ministro.
Isso mesmo explica ao Observador Alan Wager, investigador do King’s College especializado em partidos. “Boris Johnson é o favorito em toda a linha. O militante típico do Partido Conservador está a favor de uma saída sem acordo [no deal], vive no sudeste de Inglaterra, tem mais de 60 anos e é relativamente abastado. Boris Johnson é visto como o representante destes eleitores em Westminster. E são esses 100 mil membros que vão votar no próximo líder”, resume. Os números revelam isso mesmo, até se alargarmos a sondagem a eleitores que não são militantes. Na avaliação de maio do YouGov, Boris foi o favorito entre os vários possíveis candidatos a líder do Partido. Ao todo, 28% dos inquiridos disseram que ele é o melhor cargo, um número muito superior aos 19% que apostam em Sajid Javid ou 16% que escolhem Michael Gove. E essa tendência não é de agora.
Wager não é o único a apostar neste cavalo. Também Tim Bale, especialista no Partido Conservador e professor de Ciência Política na Universidade Queen Mary, não tem dúvidas: “Boris Johnson é o provável sucessor, porque é aquele que está disposto a alimentar a ideia de que um no deal irá forçar a UE a dar ao Reino Unido um melhor acordo”, explica ao Observador. “E porque eles necessitam de uma figura carismática que possa defrontar Nigel Farage.”
Boris, o polarizador
“Carismático” é, sem dúvida, uma palavra que assenta que nem uma luva em Boris Johnson. O antigo aluno de Eton e de Oxford sempre deu nas vistas, a começar pelo seu período como correspondente do Telegraph em Bruxelas e pela sua verve como colunista da Spectator. Mas o salto para a política não o tornou mais comedido. Os jogos de palavras, a disponibilidade para as fotografias mais improváveis, o cabelo indomável, tudo contribuiu para que Johnson fosse dando nas vistas como deputado e, mais tarde, como presidente da câmara de Londres.
O show Boris Johnson sempre existiu, sempre esteve em movimento e sempre correu a uma velocidade estonteante. Mas esse espetáculo único sempre teve dois efeitos: o primeiro foi o de subjugar sempre as ideias políticas de Boris à sua persona pública (o que talvez seja algo que o próprio deseja); o segundo foi o de provocar sentimentos muito fortes, ora de admiração ora de repulsa.
Senão, vejamos. Michael Wolff — o autor do polémico livro Fogo e Fúria sobre a Casa Branca de Donald Trump — destacava num perfil de Boris, em 2013, para a GQ como o efeito rock star se sentia neste político, que foi recebido com cânticos entusiásticos da multidão que gritava “Boris, Boris!”, aquando da abertura dos Jogos Olímpicos de Londres de 2012. “Ele foi eleito autarca de Londres duas vezes; ele tornou-se o político mais popular do Reino Unido; ele presidiu a uns Olímpicos bem sucedidos e passou por uma metamorfose até se tornar uma figura mundial identificada apenas pelo primeiro nome; e, numa altura de um governo tory extremamente impopular, tornou-se a alternativa para liderar o partido. É o primeiro-ministro em espera. A mascote nacional e o ícone.”
Se o perfil de Boris fosse escrito hoje em dia por Michael Wolff, talvez não tivesse o mesmo tom tão positivo. Pelo meio, o político apoiou a saída do Reino Unido da UE no referendo, junto de Nigel Farage do UKIP, e perdeu a admiração de muitos londrinos que votaram para ficar. Os seus avanços e recuos face a um desafio a May — aceitando a pasta dos Negócios Estrangeiros, depois abandonando o governo em desacordo, por fim escondendo-se na sombra até melhores dias mas conspirando nos bastidores — desiludiram outros.
Para além disso, há aqueles que sempre o detestaram e que reforçaram esse sentimento ao longo dos últimos três anos, desde o referendo. É o caso de Martin Fletcher, antigo editor do Times, que esta sexta-feira não poupou nas palavras: “Johnson falha espectacularmente nas qualificações morais necessárias para liderar o país. É um mentiroso de nascença, desleal em série, alguém em quem não se pode confiar, irresponsável e um caótico sem remédio”, escreveu para a New Statesman. “Não tem quaisquer princípios de base para lá do avanço do próprio B Johnson, e a ideia de que ele possa ser motivado por um desejo de ajudar outros dá vontade de rir.”
A imagem de alguém escorregadio, sem convicções verdadeiras, ficou-lhe para sempre associada desde que se tornou público que tinha escrito dois artigos de opinião radicalmente diferentes para a sua coluna no Telegraph consoante o lado que decidisse apoiar na campanha para o referendo. “Pensem no futuro. Pensem no desejo dos vossos filhos e dos vossos netos de viver e trabalhar noutros países europeus. De vender coisas lá, de fazer amigos, talvez de encontrar companheiros lá”, escreveu na versão anti-Brexit. Tudo pode não ter passado de um exercício académico, é certo, mas a ideia de que Boris é inconstante permanece.
Assim foi também no pós-referendo. “A sua decisão de partir e ir jogar críquete no dia a seguir à demissão de David Cameron tornou muito fácil para a equipa de Theresa May adiantar-se [na corrida à liderança]. Mas também parece falar a uma ambivalência fundamental em Boris: ele queria o lugar ou não?”, questionava-se há uma semana James Forsyth, na Spectator.
Amado e odiado, brilhante e inconsistente. Sonia Purnell, autora da biografia de Johnson Just Boris: A Tale of Blond Ambition (sem edição em português, um título possível seria Simplesmente Boris: Uma História de Ambição Loura), reforça esses mesmos dois lados da moeda em conversa com o Observador: “Ele em campanha é um político brilhante. Foi presidente da câmara de Londres duas vezes, mesmo sendo Londres considerada uma cidade tradicionalmente trabalhista. E teve um tremendo impacto no referendo: acho que sem ele, o ‘Ficar’ tinha vencido”, afirma Sonia.
“Por outro lado, veja o desastre que acontece quando ele chega ao poder. Uma vez, quando era mayor, teve de ser puxado para o canto de um restaurante pelo chefe do gabinete, que lhe disse ‘controle-se, comporte-se como um presidente de câmara’, por ele estar tão nervoso. Quando venceu o referendo, fez uma declaração em que parecia aterrorizado, como um veado encadeado pelos faróis. E enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros cometeu gaffes sucessivas.”
Desta vez, contudo, Boris parece estar determinado a ser bem sucedido, como aponta a Bloomberg. Perdeu peso, contratou consultores de renome e assumiu uma pose mais sorridente para atacar esta corrida à liderança. Tudo indica que será ele o homem que se segue, a não ser que ele próprio dê um tiro no pé. Até porque, como lembrou Paul Goodman, editor do site ConservativeHome, à agência de notícias, os últimos anos criaram uma regra de ouro dentro da estrutura dos tories: “Quanto mais problemas assolam o Partido Conservador, mais provável é que os seus membros se virem para Boris Johnson.”
Um no deal em cima da mesa. Bluff ou convicção?
De uma coisa, não parece haver dúvidas: “Um no deal torna-se mais provável se Boris estiver no comando. Afinal, nesse caso, ele terá vencido com base na promessa de seguir uma estratégia de saída sem acordo”, resume Alan Wager.
Isso mesmo foi reforçado pelo próprio esta sexta-feira, pouco depois do discurso de Theresa May. “A forma de obter um bom acordo é estar preparado para uma situação de no deal. Só se conseguem coisas [numa negociação] se se estiver preparado para virar as costas”, declarou, numa conferência onde participava na Suiça.
Mas é um no deal algo que Boris deseja de facto ou poderá vir a arrepiar caminho à medida que a data de 31 de outubro se aproxima? “A preferência dele continua a ser uma saída negociada”, confessava uma fonte próxima a Pippa Crerar, editora de Política do Daily Mail, esta sexta-feira. “Mas para renegociar é preciso manter o no deal em cima da mesa.”
https://twitter.com/PippaCrerar/status/1131924767815229440
Os Brexiteers mais radicais têm defendido isso mesmo e dizem-se convictos de que é possível renegociar com Bruxelas. Alguns talvez acreditem nisso, outros talvez desejem mesmo uma saída sem acordo. O que prefere Boris? Ninguém sabe ao certo. A biógrafa Purnell considera que esta estratégia é só uma tentativa de agradar aos que estão mais à direita no partido. “Não acho que ele acredite profundamente no Brexit”, resume, antes de explicar que não acredita que a estratégia de forçar a negociação agitando a bandeira do no deal venha a resultar em Bruxelas. “Para já, o Reino Unido já tentou fazer isso e não funcionou. E, por outro lado, o Boris já irritou tantos líderes europeus que alguns já nem aceitam sentar-se na mesma sala que ele. Como será possível negociar assim?”
A irritação existe mesmo. O negociador-chefe Michel Barnier já apontou as “fundações pouco exatas” em que a campanha do Leave funcionou, destacando a afirmação falsa de que a saída da UE permitira aplicar 350 milhões de libras por semana no Serviço Nacional de Saúde, papageada por Boris. Martin Selmayr, antigo chefe de gabinete de Jean-Claude Juncker, chegou a classificar como pesadelo um cenário em que Boris fosse primeiro-ministro. E o próprio Juncker terá perguntado a May como lhe poderia garantir que não viria a ser substituída por Boris Johnson, de acordo com o correspondente da BBC em Bruxelas, Adam Fleming. Mas outra coisa também é certa: em política, é sempre possível passar por cima dos desagrados pessoais.
As possibilidades de um no deal acontecerem, porém, continuam a ser reais. Isto mesmo tendo o Parlamento votado duas vezes contra essa hipótese. Não só a votação não era vinculativa, como um no deal é que o está definido na lei por defeito, algo que só pode ser alterado ou com a aprovação de um acordo, ou com o cancelamento do Artigo 50 ou com um novo adiamento. Ou seja, se quiser mesmo sair à bruta, Boris só tem de deixar o tempo passar.
E há forma de os deputados contornarem isso? Não exatamente, como explicou Maddy Thimont Jack, do Institute for Government, no The Guardian: “A oposição tem direito a um número de dias específico em cada mandato parlamentar para decidir quando uma moção pode ser debatida. Mas o governo controla a data em que ocorrem”, explicou. “Ou seja, um novo primeiro-ministro pode simplesmente não lhes dar tempo para aprovar o que quer que seja.”
Para Tim Bale, não há dúvidas de que a hipótese de uma saída sem acordo é real. “Boris Johnson irá a Bruxelas tentar ver quem cede e pisca primeiro os olhos, ameaçando com um no deal”, começa por dizer. “Uma saída sem acordo torna-se por isso mais provável. Não só porque é parte de a estratégia negocial dele, mas também porque ele acha que não é um cenário assim tão mau. E também porque é o cenário que acontece por defeito, se ninguém fizer nada.”
A simbiose Boris-Nigel e o seu impacto numas possíveis eleições antecipadas
Chegados aqui, é tempo de especular e considerar diferentes cenários. Imaginemos que Boris não consegue renegociar com a UE. Imaginemos que consegue, mas o acordo não reúne consenso. Imaginemos que à última hora tem receio de avançar para um no deal. Qual a solução? Ir de novo às urnas, claro, para reforçar mandato, de acordo com o professor da Queen Mary University.
Sonia Purnell, contudo, acha que Boris pode optar não por umas legislativas antecipadas, mas sim por um afamado segundo referendo, sabe-se lá em que moldes, como forma mais controlada de reforçar a sua posição, sem arriscar perder o poder. “Há pessoas próximas dele a dizer isso mesmo e acho que ele é vendedor suficiente para convencer alguns que possam estar relutantes”, afirma. “Não podemos esquecer que estas Europeias serão provavelmente um desastre para os tories. Não acho que ele queira repetir isso numas legislativas.”
Bale também admite, no entanto, que tal possa ser uma possibilidade: “Aquilo a que estamos a assistir é uma polarização entre os que preferem um no deal e os que querem uma revogação do Artigo 50 [ou seja, cancelar o Brexit]. A questão agora é se alguma dessas coisas pode ser conseguida sem um referendo. O no deal em teoria pode, o referendo não. E para conseguir o referendo, seja ele qual for, talvez seja necessário que o Labour se decida.”
Alan Wager, por seu turno, aposta forte no cenário de eleições antecipadas. E deixa a análise: “Muitas das figuras-chave para o Brexit irão provavelmente estar na dianteira e no centro da campanha. Um fator decisivo será perceber até que ponto um primeiro-ministro tory conseguirá reabsorver o Partido do Brexit de Nigel Farage e unir a direita. Boris Johnson irá argumentar que é quem está melhor colocado para conseguir isso.”
O eurocético Farage — ex-líder do UKIP, figura de proa da campanha pela saída da UE e atual dirigente do Partido do Brexit — tem este duplo papel de maior impulsionador de Boris, mas também a sua maior ameaça. Por um lado, é o crescimento do seu partido que dá força a um Brexiteer como Johnson na corrida à liderança, porque o partido procura encostar-se à direita para estancar a sangria de votos; por outro, em caso de eleições, será esse mesmo partido que fará sombra aos conservadores.
Arron Banks, o famoso milionário e financiador da campanha pela saída, escreveu no seu livro sobre a campanha pela saída The Bad Boys of Brexit: Tales of Mischief, Mayhem & Guerrilla Warfare in the EU Referendum Campaign (sem edição em português, o título pode ser traduzido como Os Maus Rapazes do Brexit: Histórias de Travessuras, Caos e Guerra de Guerrilha na Campanha do Referendo sobre a UE) sobre a possibilidade de Nigel e Boris fazerem campanha juntos — algo que, no entanto, nunca chegou a acontecer. A mistura, no entanto, teria sido “fantástica” para Banks: “Os media irão adorar: dois dos políticos mais populares do país a colocarem o país à frente do ego. Sempre desconfiámos que o Boris não é um Brexiteer a sério, mas ele não vai poder ser fanfarrão se tiver o Nigel atrás de si, a respirar no seu pescoço. Ele vai ter de compreender que isso iria destruir as suas credenciais quando se atirar à liderança.”
Arron Banks. A história do “bad boy” que pagou o Brexit (e que pode ter tido ajuda dos russos)
Três anos depois, o aviso de Banks parece quase profético. Estes dois homens, em tudo tão diferentes, foram os rostos do Brexit e podem agora ter os seus futuros políticos atados um ao outro, precisamente por causa da paisagem política do pós-Brexit que esculpiram no Reino Unido. “Nunca os vi juntos, mas sei que Farage não é o tipo de pessoa com quem Boris gosta de passar tempo. O Boris é um cosmopolita, fala várias línguas, anda de bicicleta, não gosta de beber álcool… Vem de um ponto de partida cultural muito diferente de Farage”, avalia a biógrafa Sonia Purnell.
“Aquilo que me assusta muito é a ideia de que Boris Johnson possa tentar tornar-se mais Farage do que o próprio Farage, numa próxima eleição. Sei que ele é um homem com ambição, mas… Não faço a mínima ideia qual seria o resultado disso. E, muito sinceramente, acho que o próprio Nigel e o próprio Boris também não.”