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Nem divergências irreconciliáveis, nem desalinhamento com o plano estratégico. Até esta semana, Alexandra Reis diz não saber a causa objetiva para a sua saída da TAP cuja fórmula jurídica descreve como renúncia antecedida de um acordo.
“Li no relatório da IGF (Inspeção-Geral de Finanças) que seriam divergências irreconciliáveis. Ontem ouvi que seria uma questão de perfil. Não consegui entender. Eu também poderia dizer que a CEO poderia não ter o perfil, mas não vou dizer. Não consigo identificar razões específicas. Essa questão tem de ser colocada à CEO”. A questão já tinha sido, no dia anterior, colocada à presidente executiva, mas sem que, depois da audição a Christine Ourmières-Widener, se estabeleça, sem dúvidas, o motivo que levou a gestora francesa a pedir que Alexandra Reis saísse não apenas da administração da TAP como também da companhia com a qual tinha vínculo desde 2017.
Para Christine Ourmières-Widener, que respondeu aos deputados da comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP na véspera, a saída da administradora aconteceu devido a um “desalinhamento” com a estratégia da comissão executiva. Em particular, sobre a execução do plano estratégico. E foi dando exemplos — os planos para acelerar o reforço da operação, com riscos, para aproveitar a retoma de 2022 que Alexandra Reis achou excessivo e o facto de esta ter votado contra o aumento de capital (por conversão do empréstimo do Estado no final de 2021).
A presidente executiva da TAP chegou a dizer que “não tomou nenhuma decisão material relevante” sobre o processo saída da ex-administradora, referindo que o seu papel foi “intermediar a negociação entre o MIH (Ministério das Infraestruturas e Habitação) e o Dr. César Sá Esteves”. A única certeza que Alexandra Reis disse ter é que a decisão veio da presidente executiva.
Ao fim de pouco mais de meio ano de convivência, Christine Ourmières-Widener tomou esta decisão drástica. “Ela disse-me que queria eu saísse da TAP”, numa reunião que Alexandra Reis descreveu como muito curta e que aconteceu a 25 de janeiro de 2022. Uma semana antes a gestora tinha colocado o cargo à disposição do Governo — ontem reafirmou que estaria disponível para sair sem contrapartida se o ministro (Pedro Nuno Santos) ou os secretários de Estado (Hugo Mendes das Infraestruturas e Miguel Cruz das Finanças) lhe tivessem pedissem nessa altura.
A reorganização da comissão executiva com a distribuição dos pelouros da própria por outros administradores (que na verdade já tinha começado no final do ano passado) e a criação de um novo pelouro de estratégia para o qual Alexandra Reis não teria o perfil adequado, segundo Christine, terão sido as razões invocadas para a despedir. Nas palavras de Alexandra Reis, quando questionou a CEO sobre se o Governo estava de acordo com a sua saída, Christine terá respondido of course [claro]. Alexandra Reis aceitou negociar a saída para “não criar um problema institucional” na comissão executiva e porque lhe garantiram que os seus direitos seriam acautelados.
O pedido de indemnização inicial “elevado” de 1,4 milhões de euros, explicou aos deputados, incluía a saída da administração e a rescisão contratual com a TAP, mas realça que aceitou em poucos dias baixar para os 500 mil euros contra-propostos pela empresa (o tecto veio da discussão entre o advogado da TAP e o secretário de Estado, Hugo Mendes — em contacto permanente com o invisível ministro Pedro Nuno Santos), um processo que Christine Ourmières-Widener afirmou ter apenas intermediado. Mas nada destas conversas chegou a Alexandra Reis, garantiu aos deputados.
A gestora elencou sete divergências que têm sido apontadas como tendo contribuído para o rutura com a presidente executiva — mudança da sede, contratos de compras, contratações, renovação da frota automóvel, execução do plano de reestruturação, aumento de capital, renovação da frota de aviões. Sem as confirmar, na resposta aos deputados foi desenvolvendo cada uma delas acabando por as sustentar, apesar de qualificar estas situações apenas como “visões diferentes” que não prejudicaram a “relação cordial com todos membros da comissão executiva”.
“Ter uma opinião diferente não são divergências irremediáveis. É normal. Eu manifestava a minha opinião porque entendi que devia fazê-lo”, atirou Alexandra Reis para contrariar as palavras da sua ex-chefe.
Já Christine Ourmières-Widener assume que as divergências estão bem documentadas nas atas das reuniões da comissão executiva, mas diz também que foi uma discussão muito racional. Sublinhando sempre que nunca foi uma questão pessoal, mas profissional.
O caso da recusa da contratação do marido que Christine diz ser um “não assunto”
No entanto, pelo menos uma das histórias que ilustra a falta de sintonia entre as duas tem uma natureza pessoal, mesmo familiar. Alexandra Reis confirmou ter dado “instruções muito claras” aos seus serviços para recusaram qualquer contratação de serviços a uma empresa com ligações ao marido da CEO. A Zemna fez uma apresentação não solicitada à TAP de uma solução tecnológica para gerir relações com clientes. O que por si só, reconhece, não é incomum.
O problema para a administradora era a ligação familiar que configurava um potencial conflito de interesses e que podia ser até ilegal. Esta nega ao marido de Christine terá acontecido em outubro/novembro de 2021, dois meses antes de Alexandra Reis ter visto a porta de saída ser aberta. Estará, pois, na origem da zanga? Alexandra Reis não confirmou esta versão. Garantiu nunca ter tido informação sobre o descontentamento da CEO que também não promoveu a proposta da empresa, assumindo mesmo não ter qualquer evidência que a CEO quereria que o contrato se fizesse.
Christine, por sua vez, desvalorizou o episódio, realçando que não houve qualquer contrato assinado com a empresa e que a TAP decidiu escolher outra solução. Para a CEO, o “assunto está fechado” e nem percebe porque está a ser suscitado. Ainda assim não foi taxativa em declarar que este não foi um ponto de discórdia entre as duas gestoras.
O motorista que falou demais e tinha um familiar num sindicato da TAP
Acabou por ser outra questão com implicações pessoais que foi trazida à comissão de inquérito parlamentar pelo Chega que mostrou outra divergência entre as duas gestoras. No centro, um motorista da TAP que será familiar de um presidente de um sindicato da transportadora, não identificado pelo Chega que colocou as questões a Alexandra Reis. Segundo esta gestora terá conseguido impedir o despedimento de um motorista que terá denunciado internamente que um carro da companhia estaria a ser usado para questões não profissionais da presidente executiva.
A CEO terá pretendido despedi-lo alegando que a falta de vacinação impedia que fizesse o seu trabalho. Em tom cândido, Alexandra Reis, quando questionada sobre a relação entre os dois acontecimentos, respondeu que se tratava da mesma pessoa. Ainda se ficou a saber que essa pessoa era ainda a mesma que tinha uma relação familiar ao presidente do sindicato mais importante sindicato da TAP que se mostrou hostil a Christine Ourmiéres-Widener (o deputado do Chega que levantou o tema, Filipe Melo, nunca identificou o sindicato). Alexandra Reis disse não ter interagido com este dirigente enquanto representante dos trabalhadores. Aliás, disse mesmo só ter tido conhecimento de que se tratava de um familiar depois de ter saído da empresa.
Outra discórdia que envolveu as duas gestoras, mas que não foi assumido como o momento zero do fim da relação profissional. Alexandra Reis quis deixar “muito claro” que “sempre tive relação cordial com todos os membros da comissão executiva”, mesmo com Gonçalo Pires com quem foi atribuído momentos de tensão. Mas a gestora garantiu que o único ponto de tensão foi quando o administrador financeiro pediu à equipa de Alexandra Reis trabalhos sobre a frota. O dossiê tinha transitado para Gonçalo Pires, mas a gestora não gostou que o administrador tivesse pedido missões à sua equipa sem falar consigo. A declaração foi feita mesmo depois de ter dito que a mudança de pastas tinha decorrido normalmente.
As contratações feitas no estrangeiro de pessoas próximas da nova CEO
Também o tema das contratações gerou fricção entre as duas. Se é certo que havia algumas vagas por preencher na TAP depois de uma sangria que levou a empresa a perder muitos quadros de referência, Alexandra Reis admitiu achar excessivas as contratações feita no estrangeiro — Reino Unido, França (países onde Christine trabalhou), e naturalmente que a salários mais altos que os praticados na casa onde ainda estão em vigor os cortes de remuneração aplicados na reestruturação.
“Algumas pessoas não escondiam proximidade” e eram “transparentes no tipo de relação que tinham com a CEO”, atirou Alexandra Reis. E Christine, por seu turno, sugeriu pontualmente a substituição das pessoas que estavam nas funções com o argumento de que não teriam o perfil adequado ao cargo (que também foi usado aliás para afastar Alexandra Reis). Para a gestora, que viveu e foi uma das responsáveis diretas pela implementação dos cortes salariais e despedimentos, era tempo de os trabalhadores da TAP que ficaram em circunstâncias muito difíceis poderem contar com alguma estabilidade.
O desalinhamento face ao plano. A CEO queria mais e mais depressa, Alexandra Reis tinha reservas
A ex-administradora Alexandra Reis contesta ainda a tese do desalinhamento com o plano de reestruturação da TAP. “Não considero que seja verdade, pelo contrário”. Lembra que esteve diretamente envolvida na elaboração do plano e da sua revisão para a versão que foi aprovada pela Comissão Europeia no final de 2021. “Eu estive diretamente envolvida na elaboração do plano. Houve uma revisão ao plano em junho de 2021 que eu trabalhei, e essa versão foi aprovada em dezembro de 2021”. E assume que considerou otimista a ambição revista em alta de aumentar em 30% a receita anual.
Já quando foi pela primeira vez ao Parlamento em janeiro, Christine tinha indicado este tema como central na decisão de afastar Alexandra Reis. E repetiu esta semana com mais detalhes.
Era necessário aprovar o orçamento para 2022 e decidir a oferta que ia lançar na retoma. “Tínhamos de pôr mais capacidade do que prevíamos inicialmente, o que implica mais custos e também mais riscos”. Isso teria consequências a nível laboral e obrigaria a colocar as pessoas que estavam em part time a trabalhar mais horas. “Mas queríamos navegar a onda da retoma do turismo em Portugal e no mundo”.
Alexandra Reis — que assumiu que estava sempre a trabalhar — tinha reservas a esta abordagem que explicou um dia mais tarde: “Mas o tema não é a receita, é saber como se operacionaliza essa receita, e sobre isto tinha preocupações. Não acreditava que fosse possível voar toda aquela capacidade. Não ia haver aviões. Tinha havido uma alteração ao plano de frota que me deixava preocupada. O meu dever enquanto administradora era levantar dúvidas, deixei claro que a empresa devia ter um mecanismo de gestão de risco para acomodar aquela capacidade”.
Christine admitiu que este salto em frente teria impacto na infraestrutura aeroportuária e na capacidade do handling, mas defendeu a estratégia: “Estou neste setor há 30 anos e este era um plano muito difícil e não tínhamos muito tempo para o executar”.
E quem teve razão? Por um lado, esse aumento reforçado da oferta levou a que operações da TAP foram afetadas por falhas vária que obrigaram a centenas de cancelamentos, sobretudo no verão — cenário que aliás foi transversal ao setor da aviação na Europa. Por outro lado, também permitiu à TAP fechar o ano com receitas recorde que ajudam a explicar a forte recuperação nos resultados que anteciparam em três anos as metas do plano de reestruturação, dando margem à CEO reclamar o direito a um bónus pelo desempenho em 2022, mesmo tendo sido demitida a dias de apresentar esses mesmos resultados.
De onde vêm os lucros tão elogiados de 2022? Do mérito da gestão ou da conjuntura?
Mas também a leitura das duas gestoras dos números dos resultados é divergente. Apesar de “muito satisfeita” com os lucros de 65,5 milhões de euros, Alexandra Reis não perdeu a oportunidade de deixar algumas alfinetadas.
“Fico satisfeita com as receitas, é positivo, mas tenho uma preocupação sobre os custos. A empresa teve um custo por assento por quilómetro elevado (CASK na sigla inglesa) alinhado com o que tinha em 2019, excluindo o custo dos combustíveis (que em 2022 foram muito mais caros). Considerando que este rácio de custos foi atingido, num contexto de cortes salariais que terão de ser repostos (ainda que parcialmente), “isso é uma preocupação. Acredito que a gestão estará a tomar medidas para mitigar isso”.
A gestora também desvalorizou o mérito da gestão na subida da receita média por assento quilómetro (RASK) que atribui à conjuntura de inflação e também ao facto da política de Covid Zero da China ter afetado mais as concorrentes da TAP a norte (que voam mais para este mercado), o que ajudou a companhia portuguesa a ficar melhor na fotografia quando se compara alguns indicadores com empresas como a Air France ou a Lufthansa. Alexandra Reis reclamou ainda uma parte do mérito da redução de custos de 150 milhões de euros, referindo que 130 milhões de euros deste valor foram conseguidos no seu tempo.
A política muito rigorosa de controlo dos custos que a ex-administradora ajudou a implementar nos tempos mais difíceis da TAP, levou-a também discordar de uma das medidas mais contestadas que foram atribuídas a Christine Ourmières-Widener: a mudança da sede. Alexandra Reis explicou as suas “imensas reservas” que iam desde os custos, novas instalações iam ser muito mais caras (porque nas atuais a empresa não paga renda) e porque teriam de ser feitas obras de adaptação. Considerava ainda que sair das instalações seria penalizador para os trabalhadores que hoje têm vários serviços no mesmo espaço. As atuais instalações são “vintage” (antigas), mas funcionais e permitem à empresa estar num só espaço.
No já longo rol de “diferentes visões”, Alexandra Reis referiu ainda a renovação da frota automóvel. A troca dos atuais carros por dezenas de BMW já não é do seu tempo, mas diz que quando tinha este pelouro o plano era estender o leasing dos automóveis de modelo Peugeot e comprar mais 11 da mesma marca usados.
Várias alfinetadas foram deixadas entre as gestoras. Ao ponto de Christine argumentar haver pressões políticas com as quais não contava, para no dia seguinte Alexandra dizer não ter sentido.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]