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São os próprios signatários a assumir: o motivo que leva a assinar o abaixo-assinado não é exatamente o mesmo entre as 100 personalidades que defendem a possibilidade de invocar objeção de consciência na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. E o mesmo se passa entre quem assina a petição a favor da obrigatoriedade da disciplina, documento que, segundo os organizadores, já recolheu mais de 10 mil assinaturas.
Manuel Braga da Cruz e David Rodrigues, os primeiros signatários das petições contra e a favor da disciplina, são os primeiros a dizê-lo ao Observador. “Sem dúvida que entre as pessoas que assinaram uma ou outra petição haverá perspetivas diferentes”, argumenta David Rodrigues, presidente da PróInclusão, a associação nacional de docentes de Educação Especial.
A questão também não passa propriamente pelo tema que dá nome à disciplina, assume, por seu lado, o antigo reitor da Universidade Católica. “Duvido que algum dos signatários seja contra a educação para a cidadania”, diz Manuel Braga da Cruz, explicando que o seu abaixo-assinado é a favor do respeito pela objeção de consciência dos pais que não queiram que os filhos assistam à disciplina tal como está desenhada. “Gastei anos da minha vida a estudar cidadania e nunca lá vi a palavra sexualidade”, diz o professor catedrático.
A discussão em torno da disciplina, que pelo terceiro ano consecutivo será obrigatória entre o 5.º o 9.º ano, intensificou-se depois de conhecida a história de dois alunos de Famalicão. Os pais recusaram que os filhos assistissem à aula, alegando objeção de consciência. Ambos foram chumbados por faltas e obrigados a recuar dois anos, apesar das boas notas nas restantes disciplinas. A decisão acabou por ficar suspensa judicialmente, por causa de uma providência cautelar, e é no Tribunal de Braga que a situação se irá resolver — para já, os dois podem inscrever-se no ano para o qual iriam naturalmente caso não houvesse polémica.
Pelo caminho, segundo conta ao Observador o pai dos dois alunos, Artur Mesquita Guimarães, foi preciso “que o tribunal notificasse o Ministério de Educação para notificar o agrupamento da suspensão dos despachos, porque, ao que parece, o ministério ter-se-á esquecido”. A uma semana de recomeçarem as aulas, e lembrando que as matrículas são automáticas, o encarregado de educação diz não pôr sequer em causa que os filhos “não estejam matriculados no ano que, por mérito e direito próprio, lhes corresponde”.
Quais são os argumentos dos dois lados? E o que é, afinal, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento?
Os argumentos de quem é contra a disciplina (tal como está)
(…) e, em especial e de acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo português, respeitem a objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento, cujos conteúdos, aliás de facto muito densificados do ponto de vista das liberdades de educação em matéria cívica e moral, não podem ser impostos à liberdade de consciência.” — Petição Em defesa das liberdades de educação
O ensino da sexualidade e o direito à objeção de consciência
O caso de Famalicão “foi o detonador”, diz Manuel Braga da Cruz, explicando que o abaixo-assinado representa também “uma muito crescente indignação com o que se passa nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento de muitas escolas”. Sem apontar exemplos concretos, o antigo reitor da Católica argumenta que o problema em cima da mesa não é a Cidadania e Desenvolvimento por si, mas antes os conteúdos que dela fazem parte, associado ao facto de a disciplina ser obrigatória.
Entre os 17 temas que podem ser tratados na disciplina, a sua chamada de atenção vai para o tema da sexualidade. “Nunca encontrei na primeira geração de direitos, na segunda geração, na terceira geração ou mesmo na quarta geração de direitos fundamentais a sexualidade misturada com isto”, diz o primeiro subscritor do abaixo-assinado, sublinhando que passou anos a estudar cidadania. “Da mesma forma, sou contra que Religião e Moral seja obrigatório para crianças contra a vontade dos pais. Mas, neste momento, o que está a ser lecionado é ideologia de género, não é igualdade de direitos cívicos, políticos, sociais e culturais.”
O professor catedrático, de 74 anos, sublinha mesmo que não imagina que os seus netos “pudessem ser educados com base em tais dislates, anti-científicos”, garantindo que, em algumas escolas, “está a ser dito a crianças de 4 e 5 anos que não são meninos e meninas, mas que podem ser o que quiserem, e que o género é uma questão cultural”. Em que escolas? Braga da Cruz, agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 2014, remete para vídeos divulgados nas redes sociais, onde serão feitas várias denúncias, sem os nomear.
Com base nesta ideia de que há uma linha vermelha que está a ser ultrapassada, defende a necessidade de respeitar a objeção de consciência dos pais. “A Lei de Bases do Sistema Educativo diz muito claramente que a educação cívica e moral deve ser feita em liberdade de consciência, e não diz isso de nenhuma outra disciplina.” Por isso mesmo, o catedrático não compreende que, no caso de Famalicão, a objeção de consciência dos pais tenha sido desrespeitada pela escola e pelo Estado, chegando o caso a tribunal.
No artigo 7.º (alínea n) da lei de bases pode ler-se que são objetivos do ensino básico “proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral”.
É sobre sexualidade e género que fala também outro signatário, João Carlos Espada, ainda que o seu argumento esteja mais relacionado com o facto de, na sua perspetiva, não serem apresentadas aos alunos várias visões sobre o mesmo tema. Num artigo de opinião publicado no Observador, diz que “não se trata sobretudo de saber se a disciplina deve ou não ser obrigatória” — “Trata-se de saber, em primeiro lugar, se a disciplina deve ser monista ou pluralista”.
Se for monista [diz-se de um sistema filosófico segundo o qual a realidade se reduz a um único princípio, condicionando todos os seres a ele], o professor de Estudos Políticos diz que a disciplina não pode obrigatória “de acordo com a nossa Constituição pluralista”. E avança uma outra solução: “Uma disciplina sobre Cidadania e Desenvolvimento poderá eventualmente incluir a teoria sobre o género como ‘construção social’. Mas, se o fizer, terá obrigatoriamente de citar essa teoria como uma proposta particular que concorre com outras — que terão necessariamente de ser citadas, pelo menos em pé de igualdade”, escreve.
“Não está a acontecer em todas as escolas, mas num número crescente de escolas. E o ministro da Educação e o secretário de Estado [João Costa] estão a ser coniventes com isto, têm facilitado tudo isto. E torna-se numa situação muito delicada se as pessoas pensam que podem fazer isso impunemente”, alerta Braga da Cruz, frisando que “posições radicais levam a outras posições radicais”.
Disciplina não deve existir ou não pode ser obrigatória (pelo menos na totalidade)
Tornar a disciplina, no imediato, opcional seria uma forma de resolver o problema ou, pelo menos, de minimizá-lo. Mas Pedro Lomba, outro signatário, assume ser totalmente contra a existência da disciplina. “Sou contra a existência desta disciplina e quando falamos de objeção de consciência dos pais já é um argumento que se usa para tentar encontrar algum equilíbrio. Para mim, o argumento mais forte é que, com estes conteúdos, a disciplina não pode existir porque confunde educação com doutrinação”, sublinha o antigo secretário de Estado do governo de Passos Coelho.
Para além disso, defende que o abaixo-assinado, tal como está redigido, é um denominador comum. “Para mim, a questão não é a objeção de consciência, nem a opcionalidade. A ideia de uma disciplina, o objeto, não pode existir. É uma educação assente na purificação das crianças, das suas mentes, a lembrar fenómenos quase concentracionários”, diz o advogado e assistente da Faculdade de Direito de Lisboa.
Embora também não aponte casos concretos em escolas, diz que basta ler as orientações programáticas da tutela para formar uma opinião. “O que vi nos documentos programáticos foi suficiente para me alertar para o perigo que isto representa. A própria formulação — o aluno ‘tem de’, ‘aprende a pensar que’ — assusta.”
Já Rodrigo Queiroz e Melo não encontra motivos para a totalidade da disciplina ser opcional. “Revejo-me no documento, mas não em tudo o que tem sido dito por outros signatários. Independentemente da minha opinião, percebi que há temas que são suscetíveis de cair dentro da área de objeção de consciência dos pais. A sexualidade, por exemplo, deve dar direito a reserva de consciência. Mas não acompanho a ideia de que há direito a não ter toda a disciplina”, argumenta o presidente da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), que assina o documento em nome individual.
A solução, para estes casos, poderá passar por fazer o que está escrito no Estatuto do Aluno, defende Queiroz e Melo, e apresentar um plano de recuperação ao estudante (o que aconteceu no caso de Famalicão) que vise trabalhar outros temas. A disciplina, diz, é aberta o suficiente para que isso seja possível. E dá um exemplo: “O Grémio Instrução Liberal Campo de Ourique e o colégio católico São João de Brito não dão a disciplina da mesma forma. Cada um deles a adaptou ao seu projeto educativo e estão confortáveis com isso.”
Para o politólogo André Azevedo Alves, com uma opinião mais próxima da de Pedro Lomba, “nem se devia chegar ao ponto de ter uma unidade curricular obrigatória em que se define o que todos devem pensar, sem direito a objeção”. No mínimo, defende, a disciplina teria de ser opcional, o que resolveria grande parte do problema. Sobre o que se passa, de facto, nas escolas, diz ter ouvido alguns relatos, mas, por nunca os ter confirmado, prefere não os divulgar. “Estou certo de que a maioria dos professores têm bom senso, e não tenho dúvidas de que, em muitos casos, não se passam linhas vermelhas e até se aprendem coisas úteis”, sublinha.
“Não assinei o abaixo-assinado por achar que há um estado grotesco nas escolas associado à disciplina, mas porque há conteúdos que não podem ser promovidos de forma coerciva”, conclui o professor auxiliar da Católica. Numa sociedade livre, onde não pensamos todos da mesma maneira, “para diferentes pessoas e diferentes famílias, diferentes conteúdos podem ser problemáticos”.
A favor da liberdade de educação, contra a doutrinação
A liberdade de educação é o que move Rodrigo Queiroz e Melo. “Sou apologista de um sistema mais semelhante ao holandês, onde os pais podem escolher a linha programática, a somar ao currículo comum.” Assim, preferia que em Portugal grupos de pais se pudessem juntar e criar escolas com as quais se identificam. Em Cidadania, apesar de reconhecer que a disciplina foi bem pensada, dando espaço para que as escolas a adaptem à sua comunidade, há um problema de fundo.
“Eu não reconheço ao diretor o poder de tomar este tipo de decisões para o agrupamento. E há o perigo de pessoas que não estão legitimadas estejam a tomá-las”, defende o doutor e mestre em Ciências da Educação e também professor na Católica, reforçando a ideia de que é necessário haver uma separação clara entre ideologia e Estado.
Para Pedro Lomba e André Azevedo Alves, em causa está a doutrinação dos alunos. “É com grande estupefação que vejo o Estado criar uma disciplina cujo conteúdo — basta ler os documentos de orientação subjacente — transforma educação numa atividade de doutrinação de pessoas”, diz Lomba. Na sua opinião, esta situação não é mais do que a democracia a dizer aos alunos que se não forem democratas de um determinado sentido não podem ter um diploma, já que a disciplina de Cidadania está sujeita a avaliação. “Isto é chocante. Mesmos naqueles temas que se consideram indiscutíveis, como direitos humanos e igualdade de género, há sempre um enorme dissenso. Posso partilhar valores de igualdade e divergir sobre quotas de género. Posso concordar que há exaustão de recursos ambientais e divergir nas soluções políticas sobre o tema”, salienta o antigo secretário de Estado. “Não podemos querer formar pessoas dentro de convicções que achamos indiscutíveis quando todas estão sujeitas a uma discussão permanente, com o argumento de que são temas consensuais. Isso era o que acontecia com os sistemas de ensino confessional do passado”, acrescenta.
Sobre História ou Ciência, disciplinas também em constante discussão, os signatários com quem o Observador falou preferem não confundir águas. Queiroz e Melo diz que “intelectualmente, numa altura em que se fala de revisionismo histórico, aceita a ideia de que um pai possa ter objeção de consciência à forma como os Descobrimentos são ensinados”. Já Pedro Lomba diz que em História ou Filosofia se ensina a pensar e não o que pensar, opinião acompanhada por Azevedo Alves, que diz que não há ensino de História livre de valores. “É inevitável, também há problemas, mas o objetivo central não é incutir valores.”
André Azevedo Alves defende que a discussão se tem centrado erradamente na sexualidade e que não teria assinado a petição se fosse só por esse conteúdo. Mais do que uma análise conteúdo a conteúdo, a preocupação do politólogo é ver o Estado substituir-se à liberdade das famílias em matérias que não deve fazê-lo. “Grande parte dos conteúdos são-me indiferentes, outros até considero positivos. Mas o Estado não pode arrogar-se o direito de definir o que é um mau cidadão, usando ferramentas coercivas — e isso traz-nos memórias do século XX. Essas ferramentas eram usadas sempre como se fosse para promoção do bem, no regime soviético ou no nazi, porque havia uma verdade considerada indisputável”, argumenta.
André Azevedo Alves reforça que não é função da escola defender o que os alunos devem pensar e fazer depender disso a sua aprovação a uma disciplina. “O princípio em si, a porta que abre, é extremamente perigoso. Quando me dizem que a cidadania não é opcional, isso pressupõe que há uma definição de bom cidadão e que essa definição é absolutamente verdadeira — e isso é a definição de totalitarismo.”
Para os apoiantes da obrigatoriedade da disciplina, o politólogo deixa uma pergunta: “Será que a maioria dos signatários assinaria a petição se o conteúdo da disciplina tivesse sido criado por um governo democraticamente eleito como o de Jair Bolsonaro ou Donald Trump?”
[Ouça aqui o debate entre Pedro Lomba e Susana Peralta sobre esta polémica]
Os argumentos de quem é a favor da disciplina (tal como está)
Desta forma, consideramos que a disciplina Cidadania e Desenvolvimento deve continuar a fazer parte integrante do currículo, formando jovens conhecedores da importância da participação política através do voto. Reafirmamos que a aprendizagem dos Direitos Humanos e da Cidadania não é um conteúdo ideológico. É uma disciplina que permite que todos conheçam os seus direitos, respeitem os direitos das outras pessoas e conheçam quais os deveres que coletivamente têm para construir uma sociedade que a todos respeite. — Petição Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção
Disciplina deve ser obrigatória, temas podem ser debatidos
Do lado da petição que defende a disciplina de Cidadania lecionada tal como está, David Rodrigues, o primeiro signatário, começa por responder à pergunta lançada por André Azevedo Alves. “É uma questão muito interessante, mas que está formulada de má-fé”, argumenta. “Se a disciplina fosse criada por Jair Bolsonaro seria a primeira em que eu iria concordar com ele, e a primeira coisa de bem que o Presidente brasileiro teria feito. Mas é uma questão preguiçosa, que prefere rotular a fonte da opinião do que rotular a própria opinião, assumindo, por exemplo, que tudo o que vem de Bolsonaro é mau”, diz o presidente da Pró-Inclusão, a associação nacional de docentes de Educação Especial.
Petição com 500 subscritores defende que “cidadania não é opção”
No entanto, embora diga que os signatários desta segunda petição apoiam a disciplina de Cidadania com caráter obrigatório, faz uma ressalva: “Penso que a disciplina pode ser discutida, repensada e não somos contra isso. Esta disciplina também se move, há espaço para melhorá-la”, assume, mas nunca perdendo a sua obrigatoriedade. Por isso, acredita que seria importante ouvir a sociedade civil sobre o tema e os próprios professores. “É uma oportunidade para repensarmos o que temos. De cada vez que existe polémica, ela existe para aprendermos mais, não para ver quem ganha, quem recolhe mais assinaturas numa petição”, conclui.
Opinião semelhante tem o deputado socialista Pedro Bacelar Vasconcelos, que considera “lamentável que questões de género continuem tão endividadas a uma visão patriarcal e milenar das sociedade humanas”. Assim, apesar de defender uma discussão sobre que conteúdos devem ser lecionados, e como devem ser lecionados, não aceita pôr em causa o caráter obrigatório da disciplina. “Todas as questões, inclusive aquelas, devem merecer um debate sério e, após esse debate, uma decisão não só sobre a sua inclusão, mas também sobre o modo de as abordar” nas salas de aula.
“Podemos alcançar melhores soluções”, disse o deputado socialista em entrevista à Rádio Observador, acrescentando que se pode averiguar se há questões em que os pais possam alegar objeção de consciência em Cidadania nos moldes de uma sociedade moderna.
Para David Rodrigues, a objeção de consciência e o conceito de liberdade são dois pontos concretos que separam as duas petições. “Mesmo na sexualidade, há questões que não são do foro privado, como o respeito pelo parceiro ou a prevenção do abuso no namoro. E falar de liberdade é um pouco hipócrita. As liberdades são preciosas, mas temos de investir nas condições para poder exercer a liberdade. Quando disseram aos escravos que eram livres e alguns pediram para ficar com os seus senhores — porque não tinham para onde ir, não tinham meio de subsistência —, isso não é o mesmo que dizer que recusaram a liberdade”, argumenta.
É preciso discutir a divisão entre espaço público e espaço privado
Em cima da mesa, David Rodrigues considera que está a importância de suscitar um debate sobre o que é o espaço público e o espaço privado em educação. “Esta é a questão essencial e tem sido muito desviada por dois temas: primeiro, o caso concreto dos alunos de Famalicão; segundo, por haver uma hipertrofia da sexualidade e das questões de género.”
O membro do Conselho Nacional de Educação defende que “nem a escola sozinha, nem a família sozinha conseguem resolver o problema da educação”, sendo fundamental que haja uma harmonização entre os dois. “É preciso voltar a discutir este tema e trazê-lo para o século XXI”, argumenta, já que acredita que a escola tem obrigação de proporcionar uma plataforma comum de conhecimentos e competências a todos os alunos.
Bernardo Pires de Lima, outro signatário, aponta exatamente para o que é a esfera do Estado versus as dos encarregados de educação para explicar o que o levou a assinar o documento: “Foi por recusar a ideia de que os conteúdos da disciplina sejam da responsabilidade das famílias.”
Na opinião do investigador e analista de política internacional, “direitos humanos, educação ambiental, justiça social, igualdade e respeito por minorias, quaisquer que sejam, devem ser pilares de uma matriz educativa e formativa dada pelas escolas e que promova o sentido crítico dos jovens e os desperte para tudo o que os rodeia”.
David Rodrigues acrescenta que essa plataforma comum é inegociável. “Não se pode dizer que os direitos humanos sejam uma ideologia, que uns acham que nascemos livres e iguais e outros não. Não é uma opção. Os direitos humanos não pertencem à esfera privada e não são uma questão de consciência.”
Educação para a Cidadania não é doutrinação
“Estaríamos contra se fosse uma disciplina de doutrinação”, sublinha David Rodrigues, rejeitando por completo essa ideia defendida pelos signatários da outra petição. “Dar uma plataforma comum aos alunos não é doutrinação. Doutrinação seria louvar um governo, ou governantes, ou obrigar os alunos a seguir determinada ideologia, como na mocidade portuguesa, ou obrigar as crianças a fazer profissão de fé como acontecia no Estado Novo”, argumenta o professor de Educação Especial, docente na Universidade Técnica de Lisboa.
A certa altura da nossa evolução, diz, a sociedade percebeu que a família não era capaz de preencher todas as fontes de aprendizagem necessárias e surgiu a escola. “Se fossemos só educados pela nossa família, teríamos a mesma profissão que os nossos pais. Os aspectos universalistas estão na escola”, acrescenta David Rodrigues.
“A ideia de manter os alunos numa redoma ou alimentar o reacionarismo social (vontade de muitos) nunca colherá o meu apoio. Por isso assinei o manifesto”, diz, por seu lado, Bernardo Pires de Lima.
Já David Rodrigues, comentando o artigo da Lei de Bases do Sistema Educativo que prevê que a escola deve proporcionar, em liberdade de consciência, a educação cívica e moral, lembra que o diploma tem quase 40 anos, estando em algumas questões ultrapassado. “A moral é um terreno movediço e atribuí-la em exclusividade às famílias é um empobrecimento. Muitas delas não são capazes de fazê-lo. Falta às famílias a cultura universalista que a escola tem obrigação de dar às crianças”, conclui.
Quanto a linhas vermelhas ultrapassadas nas escolas diz não conhecer casos e pega no mesmo exemplo dado por Rodrigo Queiroz e Melo, o presidente da associação de escolas privadas. “Não sei como é dada Cidadania numa escola católica, não sei se haverá uma apologia muito clara dizendo que o catolicismo é melhor do que o budismo — e isso seria reprovável. Acho que mais facilmente haveria desvios numa escola privada do que numa pública”, defende.
Apesar disso, David Rodrigues duvida que tal pudesse acontecer sem chegar rapidamente ao domínio da opinião pública: “Hoje em dia estamos muito vigilantes. Os professores têm 30 pares de olhos em cima deles, para além dos pais, dos outros professores e dos diretores. Se houvesse um professor a ousar fazer uma doutrinação nas suas aulas isso seria sempre mal visto e denunciado.”
Cidadania e Desenvolvimento. Do que fala, quem fala e durante quanto tempo?
A educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos. — Site da disciplina Cidadania e Desenvolvimento
Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina?
Sim, é uma disciplina do 5.º ao 9.º ano. José Carlos Sousa, diretor de serviço dos Projetos Educativos na Direção-Geral da Educação, explica a diferença nos vários ciclos: “A disciplina é autónoma entre o 5.º e o 9.º ano, enquanto que no 1.º ciclo é trabalhada de forma transversal. Também no secundário ela é transversal, mas há alguns agrupamentos que optam por criar uma disciplina autónoma — a autonomia das escolas permite que sejam tomadas essas decisões.”
Assim, do 1.º ao 4.º ano, quando se estuda Português, o texto em causa pode ser, por exemplo, sobre segurança rodoviária. No 2.º e no 3.º ciclo é uma disciplina como as restantes, com horários e professor próprios.
A disciplina, tal como existe agora, começou a ser lecionada no ano letivo de 2017-18 em 235 escolas do país que participaram do projeto piloto de flexibilidade curricular. No ano seguinte, passou a fazer parte do currículo oficial. “Estas não são questões novas, desde há muito que os governos inscreveram a educação para a cidadania nos currículos”, explica José Carlos Sousa.
O que é novo, então? “Passou a ser obrigatória, desde que a publicação do decreto lei 55/2018 que estabelece a matriz curricular para o ensino básico e secundário”, explica o responsável da Direção-Geral da Educação. É também por isso que passou a ser obrigatório assistir às aulas (que têm 50 minutos semanais, segundo a legislação) porque é uma disciplina que pertence ao currículo oficial, tal como Português ou Matemática. Não é facultativa como acontece, por exemplo, com Religião e Moral.
A disciplina pode ser trabalhada por um qualquer professor, a partir do momento em que o diretor o decida. “Não é obrigatório que sejam os diretores de turma, não há nada que o obrigue e isso foi propositado para fugir a experiências anteriores em que era o diretor acabava por usar o tempo que seria dedicado à cidadania com outros assuntos”, esclarece José Carlos Sousa, diretor de serviço dos Projetos Educativos na Direção-Geral da Educação.
O que é que se ensina em Cidadania?
O grande chapéu da disciplina são os direitos humanos, explica José Carlos Sousa. Para além disso, foi criado um site totalmente dedicado à disciplina. Ali encontra-se a listagem dos 17 domínios, divididos em três grupos, que podem ser abordados na disciplina.
- 1.º Grupo: Direitos Humanos; Igualdade de Género; Interculturalidade; Desenvolvimento Sustentável; Educação Ambiental; Saúde
- 2.º Grupo: Sexualidade, Media, Instituições e Participação Democrática, Literacia Financeira e Educação para o Consumo, Segurança Rodoviária, Risco
- 3.º Grupo: Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar Animal, Voluntariado
Os domínios não são todos obrigatórios. “A disciplina não tem de tratar os 17 domínios. Há três grupos de temas, e o último é opcional”, explica o diretor de serviços da DGE. “Há escolas que entendem fazer de outra forma. Em Alenquer, por exemplo, foi criada uma disciplina própria de empreendedorismo.” Nesse tipo de situações, não faz sentido que o tema seja repetido em Cidadania, assim como muito do que poderia ser discutido no tema da sexualidade fica remetido para as aulas de Ciência e Biologia, explica, por seu turno, Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas.)
É por isso que a disciplina pode ser diferente de escola para escola. “A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania prevê uma liberdade grande para as escolas abordarem as questões consoante aquele que for o seu projeto educativo”, esclarece José Carlos Sousa.
Em regiões do país onde haja consumos fortes de drogas, taxas altas de gravidez na adolescência ou onde haja muito absentismo em eleições, detalha, isso pode ditar os temas que mais interessa tratar em Cidadania. “Até pode haver um 18.º domínio, se as escolas o entenderem. Por isso, a disciplina não é igual de escola para escola. Cada comunidade educativa tem as suas características”, argumenta José Carlos Sousa.
Cidadania é uma disciplina sobre sexualidade? O que é que as escolas ensinam ?
Sexualidade é um dos 17 domínios que podem ser tratados na disciplina. “Não é honesto dizer que esta disciplina é só um dos seus temas”, responde José Carlos Sousa, diretor de serviço dos Projetos Educativos na Direção-Geral da Educação. A sexualidade é, porém, um dos temas levantados pelos signatários que estão contra a disciplina, tal como está desenhada — e que não levantam qualquer questão em relação à esmagadora maioria dos outros.
Já Filinto Lima, que também é diretor do agrupamento de escolas Dr. Costa Matos e que defende a manutenção da disciplina, diz que muitas vezes os temas referentes a sexualidade, como o aparelho reprodutor, acabam por ser tratados nas disciplinas de Ciências ou de Biologia. Nas suas escolas, por exemplo, diz ser comum os professores pedirem a enfermeiros para irem às aulas falar desses temas. E não entende que se queira acabar com a disciplina.
“Qualquer dos temas, que são densos, acabam por ser dados de forma muito superficial, ocupam duas, três aulas no máximo”, refere Manuel Pereira, diretor na agrupamento de escolas General Serpa Pinto de Cinfães, e presidente da ANDE (Associação Nacional de Dirigentes Escolares). Quantos aos conteúdos, “cada escola decide que conteúdos devem ser trabalhados em Cidadania”, sublinha, posição que é acompanhada por Filinto Lima. Isso acontece em todos os domínios que devem ser trabalhados de acordo com o perfil das comunidades educativas.
E esse temas são passíveis de um pai apresentar objeção de consciência? Tanto Filinto Lima como Manuel Pereira assumem que há temas, como a sexualidade, que são mais sensíveis — e dizem estar disponíveis para discutir o assunto. “Acho legítima essa posição dos encarregados de educação, mas também acho que o Estado não pode fazer um currículo para cada aluno”, diz o presidente da ANDE.
O que diz o manual escolar da disciplina?
“Propositadamente não existe um manual”, afirma José Carlos Sousa. O argumento é simples: se as escolas desenham a disciplina à sua medida, não seria possível ter um manual que abrangesse todos os tópicos que podem ser discutidos, por exemplo, em Educação Ambiental, em que, exemplifica, se pode “falar de reciclagem, de reflorestação, extinção de espécies, alteração climáticas”, entre outros temas.
Formalmente é mesmo assim, mas, também porque a disciplina também não tem um programa, há um site oficial onde se encontram as orientações da tutela para cada domínio. Entre essas orientações estão, por exemplo, os “Guiões de Educação”. São manuais preparados pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género onde são feitas algumas das referências que sustentam os argumentos de quem está contra a disciplina (tal como está) — como a ideia de que o género é uma construção social.
O responsável da Direção-Geral da Educação diz que os “referenciais”, que existem “para todos os domínios”, são “única e exclusivamente indicadores”. “São possibilidades de ação e de trabalho. O que pretendemos, cada vez mais, é que os domínios sejam trabalhados de forma integrada”, afirma.
Filinto Lima e Manuel Pereira confirmam que assim é. “A tutela dá sugestões, não há um programa específico, não há um manual. Não há obrigatoriedade de dar o que quer que seja”, esclarece o primeiro, presidente da ANDAEP.
No site de Cidadania há também exercícios muito concretos. A lógica é a mesma das orientações para cada domínio, servirem de ferramenta, diz José Carlos Sousa. “Os materiais que disponibilizamos podem ou não ser utilizados, conforme as escolas assim o entenderem. Não há qualquer obrigatoriedade.”
A disciplina tem nota? Como é que se avalia? Pode-se chumbar?
Os alunos são avaliados tal e qual como nas restantes disciplinas, segundo a lógica da avaliação contínua, explica o diretor de serviço da DGE: “Tem nota do 5.º ao 9.º ano, está em pé de igualdade com qualquer outra disciplina, e conta para retenção se for uma das três negativas do aluno.”
No agrupamento de Filinto Lima, em Vila Nova de Gaia, o diretor conta que a avaliação da disciplina, “por ser mais aberta”, é mais feita com base em trabalhos de grupos ou individuais. Já Manuel Pereira lembra que, segundo a lógica de avaliação contínua, nem esta, nem outras disciplinas, precisam de ser avaliadas com recurso a testes. “As escolas estão muito formatadas e esta disciplina sai da formatação, é uma pedrada no charco. E tudo o que sai fora da caixa ainda causa muita estranheza a quem está habituado a ter tudo formatado.”
Quanto a chumbar de ano, se só tiver negativa a Cidadania, o aluno transita. Segundo a legislação em vigor, no 5.°, 7.º e 8.º anos (anos não terminais de ciclo) a decisão de chumbar um aluno é considerada excecional e só acontece se tiver negativa tanto a Português e a Matemática como a uma terceira disciplina ou se tiver negativa a quaisquer quatro disciplinas.
No 6.º ano e no 9.º ano é quase idêntico: chumbo a Português e a Matemática ou negativa a três disciplinas.