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Em 1927, o astrónomo belga Georges Lemaitre dava os primeiros passos rumo à hipótese que hoje é conhecida como teoria do Big Bang. Naquela altura, Lemaitre propôs a ideia de que o universo teria de estar em constante expansão e sugeriu a hipótese do átomo primordial — uma única partícula estaria na origem de tudo. As origens dessa ideia do Big Bang como momento criador do universo são habitualmente atribuídas ao astrónomo americano Edwin Hubble (cujo nome serviu até para batizar o primeiro telescópio em órbita). De facto foi ele quem viria, mais tarde, a desenvolver e a confirmar a teoria. Mas a verdade é que a hipótese foi avançada primeiro por Lemaitre. Lemaitre que, além de astrofísico, era um padre católico.
Isso mesmo. A teoria que, aparentemente, contradiz tudo o que a Igreja Católica afirma sobre a criação do Universo foi proposta por um padre católico.
Noventa anos depois da publicação da teoria do Big Bang, fomos perguntar a um religioso e a um cientista se a ciência e a religião continuam a ser mundos opostos. Uma conversa do género ‘um padre e um cientista entram num bar’… para ver até onde iam. E mesmo não sendo um encontro frente a frente, uma vez que acontece através do Observador, eles falaram como se estivessem a conversar enquanto saboreavam uma bebida.
“Não faço ideia de como quebrar esse mito”, admite o irmão jesuíta norte-americano Guy Consolmagno, escolhido pelo Papa Francisco, em 2015, para liderar o Observatório Astronómico do Vaticano, um dos mais antigos do mundo. Mais otimista é o físico português Carlos Fiolhais. “Religião e ciência são duas dimensões do ser humano que podem coexistir, como mostram não só o caso de Galileu como o do padre Lemaitre e tantos outros”, considera o cientista, que admira o Papa Francisco por “conhecer o valor da ciência”.
Georges Lemaitre, o padre que propôs a teoria do Big Bang
Comecemos pelo princípio, já que é disso que vamos falar. Igreja e ciência têm uma longa história de conflito. Em tempos a ciência esteve, aliás, sob tutela exclusiva da Igreja Católica e quem contrariasse as ideias instituídas arriscava-se a enfrentar graves consequências por parte da Inquisição.
Foi esse o caso de Galileu, no século XVI, que se dedicou a defender o modelo heliocêntrico (ou seja, a hipótese de que o Sol ocupava o lugar central no Sistema Solar e que todos os outros planetas giravam em torno dele). Problema: na altura a Igreja Católica considerava que o modelo geocêntrico, que olhava para a Terra como centro do Universo, era o único que correspondia à realidade, e considerou que as afirmações de Galileu como heresia.
Vamos lá então à discussão nesta espécie de balcão de bar fictício. “O caso Galileu foi um confronto de poder, numa altura em que a Igreja, baseada na Bíblia, considerava que os assuntos da astronomia estavam sob a sua alçada”, explica o físico Carlos Fiolhais, recordando a posição do cardeal Gianfranco Ravasi, atualmente um dos mais influentes cardeais do Vaticano. “Para o cardeal Ravasi, que preside ao Pontifício Conselho para a Cultura, não tinha apenas razão o cientista Galileu no que respeita ao movimento da Terra e do Sol, tinha também razão o teólogo Galileu. Isto é, ele sabia, do ponto de vista atual, mais teologia do que os clérigos que o julgaram”.
Carlos Fiolhais
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Carlos Fiolhais é professor catedrático da Universidade de Coimbra. Fez um doutoramento em Frankfurt e foi professor no Brasil e nos EUA. Atualmente, é um dos principais rostos da ciência em Portugal, sobretudo devido ao seu trabalho de divulgação científica. Em 2005, foi condecorado pelo Presidente Jorge Sampaio com a Ordem do Infante D. Henrique.
Trezentos anos depois, Georges Lemaitre deu o passo definitivo na relação entre crentes e cientistas. Nascido em 1894 na cidade belga de Charleroi, Lemaitre dedicou-se aos estudos na área da ciência até aos 20 anos, altura em que os interrompeu para cumprir o seu dever militar. A participação na I Guerra Mundial valeu-lhe até uma condecoração, mas os horrores da guerra levaram-no a virar-se para a Igreja e a decidir ser padre. No entanto, não deixou a vocação científica e depois da guerra ainda fez um doutoramento em física no MIT. Admirador de Albert Einstein, Lemaitre partiu das ideias do físico alemão para chegar, em 1927, a uma conclusão que o intrigou: o Universo devia estar em expansão para se manter estável.
Einstein não gostou, inicialmente, das conclusões de Lemaitre, mas isso não impediu o belga de aprofundar o seu estudo e de publicar, pouco depois, o trabalho definitivo em que defendia a hipótese do átomo primordial e do Big Bang. Albert Einstein viria mais tarde a concordar com o padre-cientista e terá chegado mesmo a dizer: “Esta é a mais bela explicação da criação que já ouvi“. Os dois viriam a encontrar-se várias vezes ao longo da vida e a trabalhar em conjunto. Uma fotografia dos dois, partilhada pelo escritor e cientista norte-americano Paul Halpern, acabaria por se tornar, mais tarde, uma das mais icónicas imagens da relação entre ciência e religião.
In the beginning, there was Lemaître's cosmic expansion idea, based on Einstein's theory of gravitation. Notion blossomed into the Big Bang pic.twitter.com/YpFJMQAtHS
— Paul Halpern (@phalpern) November 17, 2016
Carlos Fiolhais recorda alguns detalhes sobre a vida do padre belga. “Lemaitre teve o cuidado de prevenir o Vaticano de que a sua teoria não devia ser considerada uma confirmação da criação escrita no Génesis“, explica. Para Fiolhais, “a posição do astrofísico e padre belga Georges Lemaitre ajudou a clarificar as relações entre ciência e religião, mas de facto tudo estava já muito claro na cabeça de Galileu, há 400 anos”. Isto porque “para Galileu, uma coisa era a ciência e outra a religião, podendo as duas coabitar. Foi ele que declarou que ‘a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como ir para o céu e não como o céu se move'”, explica agora o físico, professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
“Lemaitre, baseado nas ideias de Einstein, aventou a hipótese de um Universo em expansão, que foi mais quente no seu início — o Big Bang. Essa teoria recebeu tantas provas observacionais que neste momento não tem alternativa“, sublinha o cientista português. Uma teoria que, para Fiolhais, apesar de “ter ainda muita coisa por explicar, não perde o estatuto de ser não só a nossa melhor teoria sobre a criação do mundo como até a única“.
O mesmo pensa o jesuíta Guy Consolmagno, apesar de considerar que o facto de ter sido um padre a propor a teoria do Big Bang não é suficiente para quebrar o mito do afastamento radical entre fé e ciência. “As pessoas acreditam naquilo em que querem acreditar, mesmo na presença de evidências que apontam exatamente para o contrário”, diz o responsável pelo Observatório Astronómico do Vaticano.
Ainda assim, Consolmagno mantém-se otimista: “Há muito menos cientistas que se consideram agnósticos ou ateus do que se possa pensar. Especialmente astrónomos e físicos, que estão habituados a um universo que é muito mais estranho e interessante do que o antigo universo mecânico do século XIX.” E a comunidade científica não tem problemas em reconhecer o trabalho do sacerdote, diz o jesuíta. “Nunca encontrei relutância em reconhecer o trabalho de Lemaitre, tendo em conta, como é óbvio, que o nosso conhecimento, que teve o seu início com o seu trabalho, já progrediu muito além do que ele podia ter proposto há 90 anos.”
Big Bang e teoria da evolução vs. Génesis: como apareceu o mundo?
Deus disse “faça-se luz” e fez-se luz? Ou uma grande libertação de energia deu origem a todas as partículas que existem hoje no Universo? É provavelmente a questão mais comum quando fé e ciência aparecem na mesma conversa, mas tanto a comunidade científica como a Igreja reconhecem que as duas ideias não estão assim tão distantes. Guy Consolmagno simplifica a questão do ponto de vista religioso: “O Génesis diz-nos quem é responsável por existir um Universo. A ciência explica como é que Ele o criou. A resposta à primeira não muda, é Deus. A resposta à segunda, dada pela ciência, nunca pára de mudar e de crescer”.
Guy Consolmagno
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Nascido em 1952, Guy Consolmagno é o diretor do Observatório Astronómico do Vaticano e presidente da respetiva fundação desde setembro de 2015, altura em que o Papa Francisco o nomeou para o cargo. É membro da Companhia de Jesus desde 1989. Antes, formou-se no MIT e doutorou-se na Universidade do Arizona, foi voluntário nos Peace Corps dos EUA e professor de física. Atualmente, além de dirigir o observatório, é investigador na área dos meteoritos e asteroides.
O próprio Papa Francisco foi perentório sobre o assunto, durante um encontro com cientistas no Vaticano, em 2014. “Quando lemos sobre a criação, no Génesis, corremos o risco de imaginar Deus como um mágico, com uma varinha mágica, capaz de fazer tudo. Mas não é bem assim“, disse na altura o Papa, acrescentando que “a teoria do Big Bang, que hoje consideramos como explicação para a origem do mundo, não contradiz a intervenção do criador divino, mas, pelo contrário, requere-a”.
O físico Carlos Fiolhais pensa da mesma forma: “A ciência não tem a ilusão de responder a todas as questões. Só pode responder às questões para as quais, com método científico, fundado na lógica, na observação e na experiência, funciona. A ciência não consegue, e provavelmente não vai responder nunca, sou cauteloso, à questão sobre o que aconteceu antes do Big Bang, se é que houve um antes”. Sublinhando que a ciência pode tentar responder a alguns “porquês”, o cientista admite que “os ‘porquês dos porquês’ podem estar do lado da filosofia, ou, se quisermos, da teologia“.
“Gostei muito de que o Papa Francisco tivesse dito que Deus não é um mágico”, assume Fiolhais. O cientista, admirador do Papa, destaca que “não é nova a posição da Igreja Católica sobre a aceitação do Big Bang e, embora com algumas dificuldades pontuais, da teoria da evolução”. Tal como a teoria do Big Bang é a melhor hipótese para explicar a criação do mundo, também a teoria da evolução, sobretudo marcada pelas ideias de Charles Darwin, “não precisou de ter respondido a todo o tipo de questões sobre o desenvolvimento da vida para se afirmar não só como a melhor, mas também como a única teoria sobre a história da vida”.
Sobre a explicação presente no Génesis sobre a criação do mundo e dos seres humanos, o físico descreve-a como “um relato poético, espiritual, que não pode, evidentemente, ser levado à letra, ao contrário do que os criacionistas dizem”. O jesuíta norte-americano concorda: “O Génesis não é uma descrição científica da cosmologia. Como podia ser, se a ciência ainda não tinha sido inventada?” Consolmagno deixa também uma crítica aos criacionistas: “Qualquer pessoa que tente fazer uma comparação direta entre as duas áreas não tem qualquer conhecimento sobre ciência ou sobre teologia”.
Criticados até pelo próprio Papa, os criacionistas baseiam-se sobretudo numa interpretação literal da Bíblia para negar hipóteses científicas como o Big Bang ou a teoria da evolução das espécies. Para Carlos Fiolhais, as ideias criacionistas “não são ciência, porque os seus defensores abandonaram o método científico, embora se procurem fazer passar por ciência”. Tanto Fiolhais como Consolmagno concordam com a ideia de que as descrições bíblicas não devem ser interpretadas literalmente. “Desde o tempo de Galileu que a Bíblia não é considerada um livro de ciência“, diz o físico português.
Deus existe mesmo? “Os cientistas não têm como responder às perguntas que não são do seu domínio”
A existência ou não de Deus é outro dos tópicos que, aparentemente, mais dividem os crentes e os cientistas. Guy Consolmagno, a quem o Papa Francisco confiou a missão de promover a ciência no Vaticano, usa um princípio matemático para explicar que a existência de Deus nunca será cientificamente comprovada, mas que é premissa inicial para a atividade humana. “Toda a razão começa com uma suposição, isto é um teorema matemático conhecido como lei de Godel. Posso começar por assumir que existe um Deus, que é responsável pelo universo, e depois interpretar tudo o que vejo e experimento à luz desta suposição. Se eu o fizer, irei conseguir conhecer Deus muito mais intimamente. Mas tenho de começar com esta suposição antes de agir”, explica o jesuíta norte-americano.
Da mesma forma, continua Consolmagno, “posso decidir de forma igualmente fácil que não quero acreditar em Deus e começar com a suposição de que não existe Deus. Nesse caso, a minha lógica irá numa direção diferente. Mas em nenhum dos casos eu estou a provar alguma coisa sobre Deus. Deus é o axioma, a premissa com que eu começo e não algo que vem no fim de alguma cadeia lógica“. O jesuíta faz ainda questão de sublinhar que é “suscetível ao erro” quando tenta “esclarecer alguma coisa”. “É por isso que testo sempre as minhas ideias com experiências científicas.”
Carlos Fiolhais explica que “entre os objetivos da ciência não está a demonstração da existência ou da não-existência de Deus”, e recorre mais uma vez a referências religiosas para ilustrar o seu pensamento. “Não sabendo muito de teologia, julgo que Santo Agostinho resumiu a questão da fé ao dizer: ‘Se não compreendeis não é Deus’. Deus está para lá da compreensão”, destaca o físico da Universidade de Coimbra. Fiolhais vai mesmo mais longe, ao dizer que “os cientistas não têm como responder às perguntas que não são do seu domínio. E há tantas”. Como por exemplo? “O que é o belo? O que é a felicidade? O que é o amor?” Tentar não custa, e o cientista garante que é possível “decompor estas perguntas em algumas outras, mais acessíveis, para as quais a ciência pode dar algum contributo”.
A inquietação das perguntas por responder é partilhada pelo astrónomo jesuíta norte-americano, para quem “o maior desafio à aproximação entre ciência e fé é lembrar-nos de que não existe nenhuma forma de olhar para o Universo, nenhum entendimento de Deus ou da natureza que seja perfeito ou definitivo“. Consolmagno defende, por isso, que “nunca podemos deixar de aprender nem deixar de trabalhar e, sobretudo, não devemos pensar que já temos tudo esclarecido”. O melhor talvez seja, segundo Carlos Fiolhais, seguir os passos de Galileu. “Ele, que era crente em Deus — mesmo após a condenação inquisitorial, que hoje é reconhecida pela Igreja como errada –, dizia que se Deus tinha dado a razão aos seres humanos era para eles a exercerem, em particular na compreensão do mundo. Uma coisa era a fé e a moral, outra era a mecânica celeste”.
A posição partilhada por Consolmagno e Fiolhais não é verdadeiramente consensual. O físico português admite que atualmente “há uma corrente de cientistas ateus muito ruidosos, à cabeça dos quais talvez esteja o biólogo Richard Dawkins, que têm feito uma espécie de cruzada contra a religião, alicerçados na ciência”, mas considera que eles não constituem uma maioria dentro da comunidade científica. “Algumas religiões têm extremistas e também na ciência há posições radicais de cientismo, que ignoram outras dimensões do homem para lá da científica”, explica o físico. “Mas essas posições estão hoje ultrapassadas. A imensa maioria dos cientistas trabalha lado a lado com pessoas de várias fés ou sem fé nenhuma, sem se preocupar com diferenças religiosas. Este é aliás um dos grandes méritos da ciência: a ciência une, uma vez que o método científico tem aplicação universal e tem dado bons resultados por todo o lado.”
O aborto e a eutanásia. “A ciência é ‘óbvia'”, a fé nem tanto
Práticas como o aborto e a eutanásia estão frequentemente no centro da discórdia entre quem usa a religião como argumento contra e quem usa a ciência como argumento a favor. E talvez seja neste tópico que é mais difícil encontrar um consenso entre o físico português e o jesuíta norte-americano. Carlos Fiolhais faz questão de sublinhar que “a eutanásia e o aborto são questões éticas, sobre as quais a Igreja Católica tem posições conhecidas de oposição”. A ciência, acrescenta o físico, “pode dar informações sobre o que está em causa, mas não toma posições sobre o que fazer“. Esse é o papel da política, que deve “estabelecer regras o mais consensuais possível na casa comum”, diz Carlos Fiolhais.
Apesar de também ser cientista, o jesuíta Guy Consolmagno tem uma visão diferente do assunto. “Nenhuma pessoa religiosa usa argumentos de base religiosa em discussões sobre o entendimento científico atual relativamente ao que acontece quando um feto é abortado ou quando uma pessoa doente é morta”, defende Consolmagno, argumentando que nestes casos “a ‘ciência’ é óbvia”. Em vez disso, afirma o diretor do Observatório Astronómico do Vaticano, “o que uma pessoa religiosa faz é levantar uma questão que a ciência não pode fazer: só porque é possível fazer uma coisa, isso quer dizer que seja uma boa ideia fazê-lo?”
Guy Consolmagno defende este papel da religião — o de levantar as perguntas que a ciência não levanta — recordando que “a religião era a única parte da sociedade contra a eutanásia há 100 anos, na altura em que todos os pensadores trendy do final do século XIX e do início do século XX pensavam que a eutanásia ia levar à perfeição da raça humana”. Mais: o astrónomo do Vaticano acrescenta que naquela altura “a ciência por trás da eutanásia era uma ciência de lixo”, muito pouco evoluída e “mesmo que tivesse resultado da forma que as pessoas pensavam na altura, teria sido completamente horrível e errado”.
Carlos Fiolhais, que se assume como não-crente, apesar da admiração que demonstra pelos católicos e de citar sem problemas os documentos da Igreja, prefere manter-se pelo que a ciência pode observar. “Eu vejo as coisas do lado da ciência, mas tenho muito respeito pelo lado da religião, até porque foi essa a tradição cultural e moral que recebi”, sublinha. Questões como o aborto e a eutanásia “são do foro da consciência de cada um”.
A ciência no Vaticano
Discórdias à parte, a verdade é que a ciência ocupa uma boa parte do investimento, tanto financeiro, como humano, do Vaticano, como reconhece Carlos Fiolhais. “O Observatório Astronómico do Vaticano, hoje com o irmão Guy Consolmagno à frente, é muito antigo, é um dos mais antigos do mundo”, sublinha. Fundado em 1572 pelo Papa Gregório XIII, que precisava de conhecimentos em astronomia para criar um novo calendário (o calendário gregoriano, que ainda hoje usamos), o Observatório Astronómico do Vaticano conta atualmente com o trabalho permanente de mais de uma dezena de astrónomos, além de inúmeras colaborações com instituições científicas.
O Papa Francisco tem tido um papel determinante nesta crescente aproximação entre os campos da ciência e da fé, afirma Carlos Fiolhais. “A encíclica Laudato Si’ [carta publicado pelo Papa em maio de 2015], sendo um documento teológico, está em boa parte alicerçado em ciência sólida. Admiro o Papa Francisco, que conhece o valor da ciência, até por alguma formação que teve na área da química e que quer contribuir para a sobrevivência a médio e longo prazo na vida na terra.”
“Vivendo ao lado uma da outra e podendo coexistir nalgumas pessoas, ciência e religião têm vantagens em falar uma com a outra. Ambas têm em comum a ligação ao homem, ambas tentam responder a questões humanas. A religião pode saber da ciência como funciona o mundo. E a ciência pode saber da religião que há mais mundos para além do mundo que ela estuda. Do diálogo entre as duas podem surgir, além de uma melhor compreensão recíproca, projetos conjuntos”, afirma Carlos Fiolhais.
O jesuíta Guy Consolmagno é um dos melhores exemplos destas pessoas referidas por Carlos Fiolhais em quem fé e ciência podem coexistir. Escolhido a 18 de setembro de 2015 pelo Papa Francisco como diretor do Observatório do Vaticano, o jesuíta de 65 anos tem vindo a defender (como nesta entrevista à revista Science, logo que foi nomeado) que “o Vaticano apoia a astronomia porque é uma parte importante de ser humano”. Ao Observador, Consolmagno explica que, quando chegou ao Observatório do Vaticano, lhe disseram apenas que deveria fazer “boa ciência”. “Também sei que uma parte essencial desta tarefa é mostrar ao mundo a ciência que nós fazemos”, destaca.
O contributo do Vaticano para o progresso científico tem, inclusivamente, sido reconhecido pela própria comunidade científica, destaca Consolmagno. “Os nossos astrónomos são altamente procurados para colaborar com cientistas em todo o mundo. Não só fazemos um bom trabalho, como o fazemos sem contar com as mesmas garantias e recursos que financiam os outros cientistas”, sublinha. Carlos Fiolhais concorda. “Apesar de os discursos e os métodos serem diferentes, o diálogo, como aquele que o Vaticano tem proporcionado através da Academia Pontifícia das Ciências e outros organismos, não só é possível como muito útil“, e o Papa Francisco tem tido um papel fundamental nele. “O seu papel de líder espiritual é importantíssimo, porque a sua voz está num plano diferente da dos líderes políticos”, diz o físico.
Carlos Fiolhais e Guy Consolmagno concordam num ponto fundamental: ciência e religião hão de fazer sempre parte da vida humana. “Não sendo um católico praticante, tento aprender a dimensão espiritual dada pela Igreja”, afirma o físico português, que acredita que “há uma espiritualidade inerente ao humano que não tem necessariamente de ser enquadrada por esta ou aquela Igreja”. E recorda o amigo improvável do padre Lemaitre, Albert Einstein. “Einstein falava de uma ‘religiosidade cósmica’. Há uma inquietação nos seres humanos, que são pequenos no imenso Universo, e que é uma marca maior do humano.”
Consolmagno vai mais longe: “Passamos a nossa vida a viver com o Universo, cada vez mais intimamente, tornando-nos cada vez mais habituados ao que lá existe”. E é assim que um religioso acaba por fazer da ciência a sua vida: “Quero lembrar aos nossos amigos não-cientistas que vivemos num universo maravilhoso e que podemos obter muita alegria de aprender mais e mais sobre ele”.
Tchim.Tchim.