Um mês foi quanto durou uma das maiores reviravoltas da história recente da Igreja Católica. A 11 de fevereiro de 2013, o Papa Bento XVI anunciava a inédita decisão de abdicar do pontificado (o último Papa a resignar havia sido Gregório XII, em 1415); a 13 de março, o mundo via assomar à varanda na praça de São Pedro, no Vaticano, o Papa Francisco, um aparente oposto do seu antecessor. Completam-se esta terça-feira cinco anos desde que foi eleito o primeiro Papa jesuíta, que surpreendeu o mundo desde o primeiro dia com gestos de simplicidade: o seu primeiro ato foi deslocar-se pessoalmente à residência onde tinha dormido durante o Conclave que o elegeu, para pagar a conta.
Para o padre e professor mexicano Sergio Tapia-Velasco, professor de comunicação da Pontifícia Universidade de Santa Cruz, em Roma, aquele mês foi o início de uma revolução na Igreja Católica. Numa entrevista ao Observador em Lisboa, em que fez um balanço dos cinco anos do papa Francisco, o académico do Vaticano e comentador de assuntos relacionados com a Igreja em meios de comunicação social internacionais como a CNN ou a RAI explica que a resignação de Bento XVI foi “a grande revolução”, comparando o momento a um “choque elétrico” que transformou radicalmente uma Igreja a precisar de ser agitada e de mudar. Francisco, explica o sacerdote, foi o “fisioterapeuta” que veio colocar a Igreja em movimento novamente depois desse choque.
E é por isso que no dia em que se marcam os cinco anos do papado de Francisco, a primeira parte desta entrevista é exactamente sobre o homem que o antecedeu.
[Veja o momento em que Bento XVI anuncia a resignação]
https://www.youtube.com/watch?v=exSZqcQ3YZw
[Veja o momento da eleição do papa Francisco]
“Muita gente foi injusta para Bento XVI”
O que mudou na Igreja nestes cinco anos?
A primeira revolução nos últimos cinco anos foi a resignação do Papa Bento XVI. De facto, ninguém esperava que um Papa resignasse. Não houve uma resignação de um Papa durante mais de 400 anos, e quando o Papa Bento XVI resignou foi um choque para todos nós, especialmente para nós, que vivíamos em Roma. Não estávamos mesmo à espera.
A Igreja não estava preparada para a resignação de um Papa?
Penso que a Igreja estava preparada. Agora, passados cinco anos, quando olhamos para trás e analisamos o último ano do Papa Bento XVI, podemos encontrar diferentes gestos, ou diferentes sinais, que nos fazem pensar que, de facto, o Papa estava a preparar tudo. Mesmo que não estivéssemos a reparar.
Por exemplo?
Tanto quanto sabemos, o Papa Bento XVI tomou a decisão de resignar no dia em que caiu, na viagem ao México, em 2012, e percebeu que no ano seguinte teria de enfrentar uma nova viagem à América, para as Jornadas Mundiais da Juventude, no Rio de Janeiro. Ele pensou: “Se caí aqui e magoei a cabeça, o que irá acontecer no próximo ano?” Ele já sentia as pernas muito fracas, e hoje vemos que é verdade, ele está muito fraco.
Outro sinal foi que na viagem de regresso a Roma, depois da visita ao México, ele decidiu dar imediatamente início ao restauro do mosteiro onde vive hoje. Ainda demorou seis meses a fazer os preparativos da casa, mas já estava a pensar em mudar-se para lá. Depois, quando começamos a ler os últimos discursos, a partir de julho de 2012, começamos a ver que ele fazia várias referências que indicavam que estava de saída, que a Igreja está nas mãos de Deus. Como que a preparar as pessoas para a decisão que ele estava a tomar.
Mas posso dizer que, de facto, ninguém estava à espera. Até podemos lembrar quando ele visitou Áquila, quando houve lá um grande terramoto. Um dos edifícios que ruiu foi a catedral da cidade, onde estava sepultado São Celestino. O papa Bento XVI, nesse dia, deixou a sua estola no túmulo de São Celestino. Hoje, associamos o gesto, porque Celestino foi um dos papas que resignaram. Ou seja, há pequenos sinais, para os quais não temos uma leitura formal, mas que nos podem indicar isso.
Há quem diga que ele já estava a pensar nisso desde a eleição. Se lermos a entrevista que ele deu a Peter Seewald, The Light of the World, o Papa Bento XVI responde explicitamente que ele tinha estado a pensar em resignar.
Como avalia o papado de Bento XVI, a uma distância de cinco anos?
Bom, obviamente eu sou um crente. Sou um padre, sou verdadeiramente convicto de que a Igreja é guiada pelo Espírito Santo. Acredito que Deus inspirou o Papa Bento XVI a resignar e inspirou os cardeais a eleger o Papa Francisco. Nunca duvidei disso. A resignação foi um ato providencial. Deus previu-o e usou-o para agitar a Igreja e para nos fazer mudar, para nos fazer refletir na necessidade de mudarmos.
A verdade é que o Papa Bento XVI foi muito criticado pelos seus pontos de vista mais tradicionais. Mas, ao mesmo tempo, muitos teólogos consideram o seu trabalho um dos contributos mais importantes para a evolução da teologia nas últimas décadas.
Penso que, na maioria das vezes, as críticas são preconceitos com origem na má informação sobre alguém. Quando entramos em contacto com a pessoa, a maioria dos nossos preconceitos desfazem-se. O que aconteceu com o Papa Bento XVI? Ele é provavelmente o melhor teólogo do século XX. A Igreja teve grandes teólogos no último século, certamente, mas quando pensamos, por exemplo, no diálogo entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas e vemos duas grandes mentes a debaterem sobre todos os assuntos, é como assistir a dois grandes fogos de artifício. É surpreendente. O que aconteceu foi que, devido ao trabalho que tinha enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi rotulado com o cliché de “grande inquisidor”.
Estereótipos, na maioria das vezes?
Sim, penso que foram sobretudo estereótipos. Na verdade, qualquer pessoa — e posso garantir isto — que tenha conhecido diretamente o papa Bento XVI derretia imediatamente. Ele é uma pessoa muito gentil. Não apenas gentil, mas também com uma forma de falar que é verdadeiramente convincente. Eu sou professor de retórica e fazemos muita investigação sobre a retórica do papa Bento XVI. Certamente, também o faremos no caso do papa Francisco, mas no caso do papa Bento XVI conseguimos ver uma forma de pensar muito profunda.
Nós hoje temos acesso à Internet com facilidade, por isso, sugiro a qualquer pessoa que ainda tenha preconceitos sobre o papa Bento XVI que vá ouvir a gravação original da última audiência geral, na última quarta-feira antes do dia 28 de fevereiro de 2013, quando ele deixou o governo da Igreja. É um discurso adorável e mostra bem como ele se sentia e como ele pensava.
Nas ‘Conversas Finais’, quando o jornalista Peter Seewald pergunta ao Papa Bento XVI como é que ele olhava para as críticas que lhe dirigiam sobre a abertura da Igreja a outras religiões e culturas, dá alguns exemplos interessantes: tinha sido o próprio Bento XVI a nomear um protestante para o Conselho Pontifício para a Ciência, a colocar um professor muçulmano na Pontifícia Universidade Gregoriana, a abrir a tradição católica aos anglicanos, e por aí fora. Na sua opinião, as críticas eram injustas?
Hoje, ao fim de cinco anos, acho que muita gente foi injusta para Bento XVI. Vivo em Roma há 24 anos. Estive lá com João Paulo II, com Bento XVI e com Francisco, e acredito genuinamente que os três foram dons do Espírito Santo. Mas quando penso em Bento XVI, sinto uma simpatia particular por causa disso. Ele foi maltratado por muita gente, sem perceberem o peso que tinha aos ombros e a luz que ele espalhou pela Igreja, naquela dia e no futuro.
Muitas pessoas criticaram-no, por exemplo, apenas por ser simpático, por não gritar. Diziam que ele não governava a Igreja. Mas se olharmos para os números e tentarmos perceber, por exemplo, quantos bispos ele obrigou a resignar durante os oito anos do seu pontificado, foram cerca de 80 bispos. Isso significa pedir a um bispo que resigne, por razões graves, quase todos os meses. Se isso não é governar, então o que é governar?
Um dos principais problemas que emergiram durante o pontificado de Bento XVI foi o escândalo dos abusos sexuais. Ele lidou bem com esse escândalo?
Novamente, acho que ele foi providencial. Se hoje temos este programa de tolerância zero para com os abusos sexuais, é devido ao Papa Bento XVI.
Porquê?
É um processo longo. Ainda no tempo do papa João Paulo II, quando o cardeal Ratzinger estava à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, era ele quem estava encarregado dos julgamentos deste tipo de crimes. Só para dar um exemplo, foi Bento XVI quem exigiu que se fosse até ao fim no caso do padre Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, [que em 2006 foi obrigado por Bento XVI a renunciar ao ministério por ter cometido abusos sexuais contra jovens seminaristas durante as décadas de 50 e 60].
Mas não foi apenas esse caso. Como estava a dizer há pouco, durante a sua governação, o papa Bento XVI não apenas seguiu os casos de abusos como também expulsou da liderança da Igreja 80 bispos, que ele pensou que não estavam a governar de forma justa ou que estavam a obstruir.
Muitas críticas vieram precisamente de bispos e cardeais. Recordo, por exemplo, quando ele escreveu a carta aos católicos da Irlanda, no início do escândalo da pedofilia, a defender que estes casos deviam ser entregues às autoridades civis. Na altura houve bispos a defender que os casos não deviam ser expostos dessa forma.
Houve muitas críticas dentro da Igreja. Enquanto crente, defendo sempre que a Igreja é uma instituição sobrenatural, na medida em que é de Deus e existe para nos guiar para a salvação, mas ao mesmo tempo a Igreja é uma sociedade humana, e sempre houve conflito entre as duas dimensões. Lembro-me de um antigo professor de Filosofia que eu adorava, o Leonardo Polo. Na sua introdução à filosofia, ele começava por referir que o livro se chama “Quem é Homem?” para responder: “O Homem é o animal que problematiza”. Essa é a sua categoria de entender o Homem. Quando um leão tem um problema com outro leão, mata-o. Não está pronto para argumentar. Pelo contrário, nós argumentamos, e num certo sentido é bom que muita dessa discussão venha do interior da Igreja, porque isso faz a Igreja crescer.
Como estava a dizer antes, acho que muita gente foi injusta para Bento XVI. Mesmo alguns bispos foram injustos. Por exemplo, quando o papa Bento XVI levantou a excomunhão de quatro bispos que foram ordenados à revelia da Santa Sé pela Fraternidade São Pio X, do arcebispo Marcel Lefebvre, houve um enorme escândalo, porque um dos bispos, Richard Williamson, era negacionista do Holocausto. [Os bispos ordenados naquela fraternidade tradicionalista entram automaticamente em excomunhão com a Igreja Católica, porque a fraternidade não é reconhecida canonicamente pelo Vaticano. A fraternidade defende que a Igreja devia tornar a ser como era antes do Concílio Vaticano II, sendo a favor, por exemplo, das missas em latim de costas para o povo.]
Houve vários grandes escândalos que se criaram à volta dele. Como é que é possível que ninguém o tenha avisado de aquilo podia acontecer? Vemos que, em alguns casos, as pessoas não estavam a remar na mesma direção, e isso causou sofrimento na Igreja.
As críticas contra o Papa Bento XVI contribuíram para a decisão de resignar?
Certamente, tiveram um peso, porque todos somos humanos e quando sentimos o peso das tarefas difíceis que nos pedem, podemos pensar que não somos a pessoa indicada ou que aquilo é demasiado difícil. Estou certo de que estes pensamentos passaram pela cabeça dele. Mas, ao mesmo tempo, acredito que ele disse a verdade quando disse que tomou a decisão porque sentiu que não tinha a força física para continuar e que provavelmente um homem mais novo podia fazê-lo melhor. É um grande exemplo de humildade e um grande exemplo de fé dizer: “Eu não sou indispensável”. De facto, depois da resignação, pelo menos na Itália, muita gente disse que aquele era um bom exemplo para alguns políticos (risos).
Há um conjunto de decisões do papa Bento XVI que deram origem a polémicas. Já nos últimos dias do pontificado, em resposta ao escândalo do primeiro Vatileaks, sobre os problemas na gestão financeira da Santa Sé, Bento XVI nomeou o alemão Ernst von Freyberg para presidente do banco do Vaticano. Mais tarde veio a descobrir-se que era alguém ligado à indústria militar. Terá sido mau timing?
Penso que muitos dos problemas que apareceram no Vaticano, nomeadamente nesta área, estão muito relacionados com a maneira italiana de fazer as coisas. Eu adoro a Itália, mas ao mesmo tempo vejo que em alguns casos as coisas não são completamente claras. Talvez não tenha sido o melhor timing, nessa e noutras decisões. Mas aquilo de que tenho completamente a certeza é que o primeiro Vatileaks — tal como o segundo, que já afetou o papa Francisco –, quando aconteceu, mesmo tendo produzido dor, também produziu uma reação. Fez-nos pensar sobre como podemos fazer as coisas melhor. Sempre que somos feridos, sempre que um cão nos morde, todos aprendemos, crescemos em experiência, e pensamos no que podemos fazer para não tornar a falhar.
Penso que o processo de reforma económica que foi iniciado pelo papa Bento XVI — foi ele que começou tudo, depois o papa Francisco continuou, com a secretaria para a Economia — é um dom para a Igreja. Não é perfeito, porque somos humanos e temos falhas, mas penso que é um bom processo. Hoje, vemos que o Banco do Vaticano já não está na lista negra, mas já passou para a lista branca dos bancos europeus, e está a seguir todas as normas para evitar o branqueamento de capitais e a lavagem de dinheiro. Aliás, é esse o nome oficial: Instituto para as Obras Religiosas. Quando se diz que é um banco, atenção, não é um banco. É um instituto para ajuda económica. Imagine a Igreja na China. Não se pode mandar dinheiro para lá de forma normal através de um banco, porque provavelmente não o iriam receber. Precisamos de encontrar canais para ajudar os cristãos que precisam. Seguindo a lei, claro, mas encontrar uma forma de ajudar as pessoas.
Para o papa Francisco, “a Igreja não é uma alfândega, não coloca barreiras à entrada”
Isto leva-nos a março de 2013, à eleição do papa Francisco. Nos primeiros tempos, falava-se muito dos pequenos gestos: a recusa do apartamento papal, os telefonemas de surpresa… O Papa estava a mandar uma mensagem sobre o que viria a ser o seu pontificado?
Sim e não. Muito do encantamento das pessoas pelo papa Francisco foi por ele ser transparente, autêntico. Todos nos lembramos das primeiras fotografias que vimos dele, quando ele era bispo na Argentina e viajava de metro. Depois vimo-lo, já após ser eleito Papa, a ir pagar a residência onde tinha ficado quando foi a Roma para o conclave, ou quando disse que não podia mudar de sapatos porque tem uma perna maior do que a outra e precisa dos seus sapatos ortopédicos…
Quebrava o protocolo…
Acho que ele não mudou a sua forma de ser, a sua humanidade. Isso é fascinante. Ele é um homem que é completamente coerente com a sua forma de ser e de estar. Talvez não estivesse intencionalmente a querer mandar uma mensagem, mas certamente que o Espírito Santo ajudou a elegê-lo para nos mandar essa mensagem. Precisamos de pastores que não sejam príncipes, que estejam ao lado das pessoas, que preguem com palavras simples e normais que todos possamos entender, mas que ao mesmo tempo sejam profundos, que nos façam pensar e rezar, e até que nos façam sofrer. Porque muitas vezes o papa Francisco dá uns murros. Atinge-nos para nos provocar reações, para nos fazer crescer na nossa vida espiritual. Precisávamos de um Papa assim, para reagirmos.
Esta forma simples do papa Francisco criou uma onda de apoio generalizada, até vinda de fora da Igreja, que Bento XVI não tinha. Fala-se de uma abertura da Igreja, até em temas historicamente sensíveis como o divórcio ou a homossexualidade. Mas alguma coisa mudou concretamente na doutrina católica?
Penso que para tentarmos entender o papa Francisco temos de entender Jorge Bergoglio. São o mesmo homem. Temos de perceber o que ele defendia antes de se tornar Papa. Da mesma forma que vemos que ele é coerente na vida quotidiana — antes andava de metro, hoje recusa um Mercedes –, vemos a mesma forma de pensar nas diferentes doutrinas que ele tem pregado.
Para mim, no início, há duas fontes principais que me ajudaram a entender o papa Francisco. Em primeiro lugar, há o documento de Aparecida, de 2007. Ele foi o redator principal, escolhido pela conferência dos bispos da América Latina, para escrever as conclusões da conferência, e vemos que o documento é como uma espécie de rascunho do que viria a ser a Evangelii Gaudium [primeira exortação apostólica do papa Francisco]. Se analisarmos os dois documentos, encontramos muitas coisas na Evangelii Gaudium que já apareciam no documento de Aparecida. Depois, há um outro livro muito interessante, que são os diálogos que ele teve, quando ainda era arcebispo de Buenos Aires, com o rabino Abraham Skorka. Chama-se “Sobre o Céu e a Terra” e era baseado num programa regular que ele tinha na rádio a conversar com este rabino. Aí, vemos que ele já dizia muita das coisas que diz hoje.
O que é que o papa Francisco propõe? De novo temos de entender o homem. Ele é um jesuíta, e os jesuítas têm sido, ao longo dos anos, diretores espirituais preocupados com a salvação pessoal de cada um, e não com toda a gente no geral. O dom do papa Francisco é que ele diz: “Não façam programas pastorais em massa. Vão alma a alma, e cada alma é importante”. E nesse sentido, o que ele nos diz é que, quando falamos com alguém que se divorciou ou alguém que é homossexual, não devemos ter nenhum preconceito. Cristo morreu por toda a gente.
Ou seja, ele está a tentar acabar com a ideia de que a Igreja exclui algumas pessoas?
Sim, esse é um dos objetivos dele. Ele repete constantemente que a Igreja não é uma alfândega, não coloca barreiras à entrada. Para ele, a Igreja é um barco que traz a salvação a quem se está a afogar no mar. É essa a imagem da Igreja, um barco salvador que atira bóias para salvar as pessoas. Eu pelo menos, na minha experiência pastoral enquanto padre e não apenas como professor em Roma, recebi muito dele e agradeço a Deus porque ele mudou a minha forma de pensar. Ele diz: “Não podem estar só preocupados com doutrinas gerais ou grandes filosofias. Não. Tomem conta da pessoa que têm em frente a vocês”.
Mas ele não mudou a doutrina base da Igreja sobre esses assuntos.
Não, não a mudou.
E não o vai fazer?
Não. Penso que devemos analisar e interpretar o que o papa Francisco diz pelas suas palavras originais. Quando lemos a Evangelii Gaudium, quando lemos a Amoris Laetitia, ou quando lemos qualquer discurso do papa Francisco, o que descobrimos é um pastor muito exigente, que diz que não quer mudar a doutrina. Ele diz isso de forma explícita na Amoris Laetitia, por exemplo. O que ele quer é uma conversão pastoral da Igreja. O que ele quer é que nós, sacerdotes, não façamos juízos de valor, porque somos ministros de Cristo e temos de ajudar as pessoas a entrarem em contacto com as feridas de Cristo e a encontrarem a salvação. Penso que esse é um grande dom e toda a gente se devia sentir tocada por ele.
Começou por dizer, no início da entrevista que a mudança do papa Bento XVI para o papa Francisco foi uma grande revolução. Em que sentido, então?
Penso que a grande revolução foi a resignação do papa Bento XVI. Isso foi como um choque elétrico.
Mas esse foi um sinal de que a Igreja precisava de uma mudança?
Penso que o Concílio Vaticano II já tinha notado que precisávamos de entrar mais em diálogo com o mundo moderno. Eu sempre sugeri às pessoas que lessem a convocatória do Concílio, escrita por João XXIII, a dizer porque é que ele queria um concílio, e depois que lessem a Lumen Gentium ou a Gaudium et spes, e vissem que de facto a Igreja mudou. Aquele foi um grande momento.
Agora, cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II e vejo que os quatro papas — tivemos cinco, se contarmos com João Paulo I –, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e agora Francisco, são diferentes encarnações do espírito do Concílio Vaticano II. Cada um deles, com a sua própria humanidade, ajudou-nos a crescer. Paulo VI era um ótimo sociólogo, muito preocupado com a dimensão económica e social da sociedade, e escreveu tantos documentos sobre o caminho do pensamento da Igreja moderna. Depois, João Paulo II era um grande filósofo, e todos crescemos no sentido antropológico durante o seu pontificado. Já Bento XVI foi um grande teólogo, e todos nós crescemos na dimensão da liturgia e da teologia dogmática por causa do seu dom. Hoje, temos o papa Francisco e vejo novamente que ele é um dom do Concílio Vaticano II. Pensamos: “É muito bom ser um sociólogo, é muito bom ser um filósofo, é muito bom ser um teólogo. Mas temos de voltar os nossos olhos para aqueles que temos junto a nós”.
Para mim, a revolução começou com a resignação. O que o papa Francisco está a fazer é, depois de a resignação ter agitado a Igreja como um choque elétrico, é preciso ajudar toda a gente a recomeçar a mexer novamente. O papa Francisco é como um fisioterapeuta que está a ajudar alguém que tem estado muito quieto a mexer-se novamente.
Devido àquilo a que se está a referir, a essa diferença entre Francisco e os seus antecessores, o Vaticano enfrenta uma onda de críticas internas, que se opõe ao apoio que vem de fora. Uma divisão que talvez possamos simplificar em tradicionalistas contra o Papa versus progressistas a favor do Papa. Que impacto é que esta divisão tem na Igreja de hoje?
Faz-me sofrer. Todos os dias, quando celebramos a missa, há diferentes momentos em que rezamos pela unidade da Igreja. Quando pensamos no último discurso de Jesus na última ceia, uma das principais ideias foi a oração de Jesus, virado para Deus, pedindo-lhe: “Pai, faz com que eles sejam um”. Provavelmente, Jesus já estava a prever este perigo de desagregação constante. Volto ao que estava a dizer: nós problematizamos tudo, somos humanos, discutimos, temos pontos de vista diferentes. É o típico caso do copo de água que pode estar meio cheio ou meio vazio. Há formas diferentes de entender um problema, mas a ideia central é que estas divisões me fazem sofrer.
Por outro lado, não classificaria todos os que criticam Francisco como tradicionalistas, porque quando pensamos em pessoas como os Lefebvrianos, a maioria deles têm a esperança de finalmente encontrar a união com a Igreja novamente. Lembro-me sempre de que tem sido o papa Francisco a fazer pressão para concretizar esse sonho do papa Bento XVI, de chegar à comunhão com eles. Ele está a destruir barreiras e dizer que se quer aproximar deles.
Há casos extremos de bispos a acusar o Papa de ser herege.
Bom, não penso que haja um bispo que diga “o Papa é um herege”. Mas, de facto, há bispos, muitos bispos, que estão preocupados sobretudo com a confusão. Não porque estejam preocupados com a possibilidade de a doutrina mudar ou algo do género. Estão preocupados com ideias como quando o papa Francisco diz, na Amoris Laetitia, que precisamos de um caminho de discernimento. Há quem diga que isso abre as portas do Inferno (risos), que abre uma grande confusão. Afinal, o que é o discernimento? Qual é o protocolo? O que temos de fazer? A minha posição é que o que devemos fazer, se não queremos essa confusão, é investir na boa formação dos padres. Precisamos de diretores espirituais que ajudem as pessoas.
Teólogos conservadores acusam papa Francisco de espalhar a heresia
E a resposta do papa Francisco a estas críticas internas tem sido adequada?
Para dar um exemplo: há uns meses, o papa Francisco visitou o novo dicastério para a família, os leigos e a vida e esteve com os trabalhadores desse novo departamento do Vaticano. Tenho vários amigos que trabalham lá e pelo menos dois deles disseram-me o mesmo. O Papa estava cansado de ouvir estas críticas e a única coisa que lhes disse foi: “Por favor, onde quer que vão, digam às pessoas que o capítulo importante é o capítulo IV, e não o capítulo VIII”.
Ele estava a referir-se à Amoris Laetitia, a dizer que o propósito daquele documento é ajudar as pessoas a viver melhor o seu matrimónio. O capítulo IV é, de facto, extremamente belo, é um comentário muito profundo sobre o casamento e é uma joia que ninguém teve em consideração. Temos estado constantemente a discutir em torno das situações irregulares ou o que quer que lhes queiramos chamar, em torno dos problemas, e provavelmente estamos a falhar a parte principal do documento, que é a alegria do amor.
Eu, pelo menos, tento apoiar o papa Francisco nessa ideia. Por favor, estou cansado de discutir sobre esse assunto. Aquilo de que preciso é ajudar os meus irmãos padres a terem uma boa formação que lhes permita serem bons diretores espirituais e ajudar as pessoas a discernir, a tomar as decisões corretas. O que quero é ajudar tantos jovens que não estão a casar a pensar novamente que o casamento é uma boa opção. É uma grande vocação. Infelizmente, em alguns círculos de discussão só estão a argumentar sobre situações hipotéticas que na verdade não acontecem.
Ou seja, o problema é a discussão estar a ser colocada num nível geral, abstrato, de proibição ou autorização.
Exatamente. Para mim, o grande dom do papa Francisco é dizer para cuidarmos de cada pessoa que temos à nossa frente. Se me encontro com alguém que esteve casado e cujo casamento falhou, como é que eu posso ajudar essa pessoa a descobrir novamente a alegria de estar perto de Deus.
Uma das frases mais famosas dele é mesmo a tal “quem sou eu para julgar?”, referindo-se aos homossexuais.
Sim, na primeira viagem, no regresso do Rio de Janeiro para Roma.
Porque é que a frase não foi muito bem recebida dentro da Igreja?
Bom, em alguns círculos da Igreja não foi bem recebida. Novamente, eu digo às pessoas que leiam a resposta completa, que não se fiquem pela frase. Algumas pessoas, infelizmente até alguns lóbis, estão a criar esse estereótipo em torno do papa Francisco, como se ele não estivesse a governar porque aceita tudo sem discutir, e usam essa frase: “Então mas ele diz ‘quem sou eu para julgar’!”. Não é verdade. Novamente, se há alguém que está a governar a Igreja é o Papa. Ele tomou muitas decisões fortes. Ele julga! Dizer que é um relativista, que não julga, não é verdade.
Leiam a resposta completa. Ele nessa entrevista diz algo como: “Eu nunca recebi no Vaticano alguém com um cartão a dizer ‘eu pertenço ao lóbi gay’, mas se eu receber alguém que me diz que é homossexual, quem sou eu para julgar? Devo lembrar-me apenas do que o Catecismo da Igreja Católica diz e ajudá-lo a viver de acordo com essa proposta”. Ele não está a mudar a doutrina. Isso acontece com muitos padres. Se eu receber alguém em confissão que me diz algo, eu devo ouvir e tentar fazer o melhor para ajudar a pessoa.
Falou aí do lóbi gay. Existe no Vaticano?
Bom (risos), tal como o papa Francisco disse, eu nunca estive com ninguém com um cartão a dizer que pertence ao lóbi gay. Acredito verdadeiramente que existe um lóbi gay internacional, mas isso seria uma outra grande entrevista só a discutir todas as dimensões em que se manifesta. O papa Francisco, em várias ocasiões, tem falado sobre a colonização ideológica que alguns grupos praticam no mundo moderno. Explicitamente, em alguns casos, ele faz denúncias fortes à ideologia do género, dizendo que não a pode aceitar. O problema, em muitos casos, é que as pessoas não estão a ler o que ele diz efetivamente. Temos acesso à Internet e é uma pena não lermos em primeira mão o que ele diz.
Para levar a cabo esta revolução, o papa Francisco tem chamado para cargos importantes várias pessoas, com o objetivo de, de alguma forma, purificar a instituição. Mas para o C9, o seu conselho consultivo mais próximo, chamou pelo menos três cardeais (George Pell, Óscar Maradiaga e Francisco Errázuris) que estão ligados à ocultação de casos de pedofilia, como notava o jornalista italiano Emiliano Fittipaldi. O cardeal Pell até teve de voltar à Austrália para ser julgado. Não acha que o Papa se pode estar a rodear das pessoas erradas?
Antes de me tornar padre, trabalhei como advogado durante vários anos e trabalhei em casos relacionados com acusações a piratas mexicanos — lá, infelizmente, muitos negócios dependem da pirataria (risos). Mesmo assim, dentro dessa atmosfera complicada, sempre acreditei que toda a gente é inocente até ser provado o contrário. Acredito que esse princípio da lei é válido para toda a sociedade, incluindo para a Igreja. Há muitos casos. Por exemplo, mencionou o cardeal Pell. Admito que não conheço as outras duas acusações diretamente, mas quando olhamos para a vida do cardeal Pell e para a forma como ele tem enfrentado estes julgamentos, podemos ver que em muitos casos têm sido muito injustos. Não há provas, e infelizmente mesmo que os tribunais ainda não tenham chegado a uma decisão final, a imprensa já fez o julgamento. Assim que um padre ou um bispo tem alguma acusação, toda a gente lhe salta em cima. Talvez estejamos a esquecer-nos que, em teoria, toda a gente é inocente até ser provado o contrário.
Se me pergunta se esses são os melhores conselheiros para o papa Francisco, eu acho que o C9 é um excelente grupo. Cada um deles vem de diferentes perspetivas. Tento sempre lembrar quem se lembrou de criar aquele conselho de cardeais. Não foi o papa Francisco, foi o papa Bento XVI. É parte do seu legado, foi uma das coisas que ele sugeriu, e um dos assuntos que foram tratados nas congregações gerais antes da eleição foi que o Papa não deve governar sozinho, deve ter um conselho de cardeais que não trabalhem na Cúria e que o ajudem a ter uma visão mais alargada. Cada um deles vem de um país diferente, todos têm as suas experiências humanas próprias. Penso que são bons conselheiros. Se podíamos encontrar alguém melhor? Podemos sempre encontrar alguém melhor, claro. Não somos super-heróis, mas todos somos chamamos à perfeição. Por outro lado, quando uma pessoa chama alguém para seu conselheiro, chama os seus amigos, os que estão mais próximos, como é o caso do cardeal Maradiaga, ou então pessoas que foram sugeridos por outros, como o cardeal Pell. Até o cardeal Pell, nos anos que ele passou em Roma a tentar pôr em ordem a secretaria para a Economia, fez muito bem à economia da Igreja.
Já vimos que a doutrina não mudou, mudou a abordagem. O senhor é especialista em comunicação na Igreja. Podemos dizer que a mudança de Papa mudou a forma como a Igreja comunica com o mundo exterior?
Há uma coisa interessante que eu digo muitas vezes às pessoas: vão ao site do Vaticano e façam download das homilias diárias do Papa na capela de Santa Marta. Podem ajudar muito na oração pessoal de cada um e podem ajudar os padres a preparar as suas próprias reflexões junto das comunidades. O papa Francisco trouxe esta proximidade com as pessoas. Diz-nos que não devemos fazer homilias abstratas e distantes, mas sim concretas e fáceis de perceber. Homilias para toda a gente. Fáceis de entender não significa não serem profundas, sublinho sempre isso. Significa apenas fáceis de entender. De novo, alguns preconceitos dizem que se comunicamos de forma simples somos maus comunicadores, mas é o oposto. Os melhores comunicadores são os que usam a linguagem mais simples e transmitem as melhores ideias.
Os padres e bispos estão a seguir esse exemplo?
Devíamos seguir o exemplo (risos). Teria muito a dizer sobre isso. Esse é o meu trabalho, eu tento treinar pessoas para melhorarem a sua forma de falar em público, de pregar. Há muito espaço ainda para melhorar. Há contextos diferentes, mas se entendermos a comunicação enquanto oração, há muito espaço para melhorar. Já no que toca à comunicação da Igreja enquanto instituição, acho que o que temos hoje é um grande esforço para simplificar a comunicação. O novo portal, o Vatican News, por exemplo, que apenas numa página mostra toda a comunicação do Vaticano. Eles estão a fazer um ótimo trabalho. É um projeto muito ambicioso, há muitos bons amigos meus que trabalham lá, e estão a dar o seu melhor.
O Papa Francisco mudou definitivamente a ideia que a sociedade tem de um Papa?
Cada Papa é um dom para a sua era. Mas se pesquisarmos no Youtube os primeiros filmes de Leão XIII, a primeira vez que chegaram ao Vaticano com câmaras de filmar, para fazer umas imagens do Papa. Foi em 1890 ou por volta dessa altura. É engraçado porque já nessa altura, no final do século XIX, víamos o Papa a tentar usar os novos media para comunicar. Tem havido um esforço, há mais de um século, de estar próximo das pessoas. Há vários exemplos. Até Pio IX, ainda no século XIX, a cumprimentar os jardineiros do Vaticano. São realidades que talvez desconheçamos, por sermos muito novos, por não estudarmos a fundo a biografia de cada Papa, mas a proximidade é algo da modernidade. E hoje o Papa Francisco pede-nos precisamente isso: que não estejamos longe das pessoas, tal como Jesus não esteve longe das pessoas.