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A acusação tirou Travis Kalanick do sério — “andamos aqui a oferecer borlas à malta“. O presidente e fundador da Uber envolveu-se, no mês passado, numa acesa discussão com um motorista que o acusou de estar a causar a ruína de muita gente devido à forma como o negócio está a ser gerido. E como é que o negócio está a ser gerido? Com preços baixos. E com prejuízos. Até ao momento, a Uber está a ser uma verdadeira incineradora de dinheiro dos investidores que já arriscaram fortunas na empresa e numa ideia cuja viabilidade suscita dúvidas a vários analistas. Se a Uber está mesmo a “oferecer boleias à borla”, até quando é que conseguirá fazê-lo? Quantos anos consecutivos de prejuízos pesados se pode acumular, à espera de uma Terra Prometida de prados verdejantes e lucros infinitos?
Quanto vale a Uber?
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A Uber ainda não dispersou o capital na bolsa mas poderá fazê-lo nos próximos tempos, sobretudo depois do sucesso da entrada em bolsa do Snapchat. Isso significa que quando se diz que a Uber vale 68 mil milhões de dólares (mais de 60 mil milhões de euros) estamos a falar do valor a que os investidores privados estão a apostar na empresa. Ou seja, trata-se de uma extrapolação do valor que foi pago por aqueles que já investiram de forma privada, em rondas de investimento (em relação à porção de capital que já garantiram).
A Uber é uma ideia de negócio que, em certa medida, é um tudo ou nada. Neste momento, a julgar pela avaliação de quase 70 mil milhões de dólares a que os investidores continuam a apostar na empresa, a expectativa é que a Uber seja um tudo, isto é, um monopólio da mobilidade a nível global. A Uber não quer considerar-se uma empresa de transportes (até porque isso teria implicações regulatórias importantes) mas, no paradigma da nova economia, a Uber quer ser mais do que uma plataforma facilitadora de transportes: quer ser um gigante global, sinónimo de mobilidade em todos os segmentos, desde a entrega de comida até à disponibilização de carros autónomos. Kalanick já afirmou que os carros autónomos fazem parte da “existência” da Uber e grande parte do investimento da tecnológica está a ser conduzido para a Investigação & Desenvolvimento (I&D) neste setor.
Mas os riscos são grandes. No mundo académico e, também, no mundo financeiro, os especialistas debatem de forma apaixonada sobre se a Uber conseguirá tornar-se uma empresa incontornável ou um fracasso de proporções históricas. Uma coisa é certa, a empresa e o seu fundador têm tido “má imprensa” nos últimos meses — e isso em nada ajuda a que o cenário otimista se concretize. As revelações de uma cultura “obsessiva”, “disfuncional”, “hiper-competitiva”, de assédio sexual e discriminação de género já puseram várias pessoas a exigir que Travis Kalanick saia da empresa. As conclusões parecem convergir no mesmo ponto – a Uber “está a cavar um buraco sobre si própria” e pode pôr a tão esperada entrada em bolsa da empresa em risco.
Como é que a Uber (des)faz dinheiro?
O fundador da Uber, Travis Kalanick, quer persuadir as pessoas de que usar os seus serviços é mais barato e conveniente do que ter carro próprio — e, daí, quer ser para a mobilidade aquilo que outra gigante, a Amazon, já se tornou no comércio a retalho. Kalanick, o excêntrico fundador e presidente da Uber, é um ávido leitor das obras da filósofa Ayn Rand, pelo que a sua ambição é vencer num mundo em que o “winner-takes-all” (o vencedor leva todos os prémios).
São frequentes as comparações entre a Uber e a Amazon, desde logo porque são duas empresas que começaram por perder rios de dinheiro (com os investidores iniciais a bancarem) para lançar as bases para o crescimento futuro. No caso da Amazon, foram cerca de 20 anos, sempre a dar prejuízo, até a agulha virar. Já a Uber, com uma história mais recente, de cerca de oito anos, ainda está na fase de privilegiar o crescimento em detrimento dos resultados financeiros – isto é, “cresce agora, dá lucro depois”. Mas será a Uber, que está a queimar dinheiro a um ritmo nunca visto, algum dia capaz de virar a agulha?
Apesar de não estar cotada em bolsa, é frequente chegarem à imprensa dados financeiros sobre a Uber — números não auditados que servirão para convencer os investidores a entrarem no capital, de forma privada. E o indicador que faz mais manchetes é a acumulação de prejuízos, que terão ascendido a 3 mil milhões de dólares, acima dos 2,2 mil milhões de dólares do ano anterior (2015). Só com o dinheiro que a Uber perdeu no ano passado (a diferença entre as receitas e os custos) a empresa conseguiria, em teoria, comprar o Millennium BCP e, com o troco e mais qualquer coisa, talvez comprar os CTT – Correios de Portugal.
A boa notícia é que as receitas líquidas da empresa terão superado os 5,5 mil milhões de dólares em 2016, mais do que o dobro dos 2 mil milhões que terá faturado no ano anterior, segundo informação avançada pelo site The Information, normalmente bem informado. Ao seu jeito, Kalanick disse, em 2012, que quando tem um dia menos bom tem uma forma de ficar, logo, radiante: “olho para o gráfico que ilustra o nosso crescimento das receitas globais”.
Mas, com as receitas a crescerem tanto, porque é que a Uber acumula tantos prejuízos? Se têm pouquíssimos funcionários e uma frota de “parceiros” pelo mundo fora, se ninguém lhes apresenta faturas de gasóleo para pagar, se apenas ficam com uma fatia daquilo que os motoristas faturam, o que explica estas perdas? Segundo já reconheceu a própria empresa, a principal explicação para as perdas está ligada ao que as empresas chamam “custos de expansão“. Ao Observador, fonte oficial da empresa explicou, em termos gerais, do que estamos a falar.
“É comum para empresas de todas indústrias que, ao expandirem as suas operações para novos territórios, tenham particular atenção em darem-se a conhecer aos seus novos clientes e em crescer a sua base de utilizadores através, por exemplo, de promoções. Isto não é exceção nas plataformas de tecnologia, no setor da mobilidade e nem na Uber. E, na medida em que somos uma aplicação que liga utilizadores e motoristas, oferecemos por vezes promoções, tanto a utilizadores como a motoristas, quando entramos numa nova cidade”.
No fundo, é um “empurrão inicial“, nas palavras de Evan Rawley, professor de Estratégia Empresarial da Columbia Business School, em Nova Iorque. Ao Observador, o académico, especialista em temas relacionados com as novas plataformas de transportes, diz que “a Uber opera num mercado com dois lados, isto é, está-se a criar uma plataforma para ligar as pessoas que querem ser transportadas com pessoas que podem transportar os outros. Um sistema destes implica sempre um problema do género ovo e galinha. Porque se não tiver motoristas suficientes não vai ter clientes suficientes e vice-versa”. “Ou seja, é preciso dar um empurrão inicial, subsidiando a plataforma”, remata.
Em alguns mercados, a Uber chegou mesmo a subsidiar diretamente os condutores, garantindo-lhes um valor mínimo mesmo que não conseguissem fazer viagens suficientes para conseguir rentabilizar minimanente a atividade. Essa é uma estratégia que, explica Evan Rawley, a Uber costuma reservar a quem demonstra que apenas está a usar a plataforma da Uber e não está a acumular com a concorrência, em simultâneo.
“Um motorista pode trabalhar para vários, obviamente, mas a Uber quer tentar limitar isso porque quer assegurar que tem a melhor rede. É um cálculo estratégico, mas a verdade é que à medida que o mercado se torna mais competitivo, os motoristas podem claramente ganhar mais se fizerem multi-homing. Aqui em Nova Iorque toda a gente faz multi-homing, isto é, também usam a Lyft“, a maior rival da Uber nos EUA, explica Evan Rawley.
Questionada pelo Observador sobre o porquê de tantos prejuízos, fonte oficial da empresa destaca, também, o investimento em inovação. “Temos desenvolvido formas de mobilidade mais partilhadas, como o uberPOOL, e estamos a pôr a nossa tecnologia ao serviço de novas áreas, como a entrega de refeições, com o UberEATS. Continuamos a trabalhar em tecnologias de condução autónoma e damos os primeiros passos em direção a uma rede de veículos de descolagem e aterragem vertical com o projeto Elevate. Para atingir estes objetivos, é naturalmente necessário um investimento elevado em tecnologia e em talento”.
Outra rubrica que pesa é o lobbying que a Uber tem de fazer. Para tentar persuadir as autoridades das centenas de países onde a Uber já está, a empresa vê-se obrigada a gastar rios de dinheiro em tentar que a legislação seja atualizada de forma a que a empresa possa ultrapassar as barreiras jurídicas que existem. Não é difícil imaginar como estes custos se empilham rapidamente, já que cada país tem legislação diferente e tradições jurídicas específicas.
“É sabido que o smartphone mudou drasticamente a mobilidade nos últimos anos – e esta mudança foi tão rápida que, em muitos casos, não acompanhou a legislação. Isto significa apenas que permanecemos determinados e disponíveis em manter um diálogo aberto, construtivo e sereno com os legisladores, com os reguladores, com as autoridades, e com todos os operadores do setor – para tornar a mobilidade mais simples e mais segura, graças à tecnologia, para todas as pessoas e em todo o lado”, explicou fonte oficial da Uber.
A conclusão principal, para já, é que a Uber continua em quase todos os mercados a competir de forma agressiva, incluindo competir pelo preço. Cada vez que se senta num carro da Uber, estará provavelmente a pagar menos do que pagaria num táxi (como este teste do Observador indicou). E estará, também, a pagar menos do que irá pagar no futuro, porque a tendência é para a Uber subir os preços se quiser ser lucrativa. Recorde-se que é a Uber que decide quanto é que a viagem custa, não o motorista.
Segundo dados citados pelo The Informant, a Uber calcula que nos EUA precisa de ficar com 23% de cada tarifa para chegar ao break even (ou seja, não perder nem ganhar dinheiro). Mas isso não está a acontecer, nem mesmo nos EUA. Nesse mercado, estima-se que a Uber estivesse, no passado recente, a ficar com pouco mais de 20% de cada viagem, em média, porque muitos motoristas beneficiam de descontos por estarem com o serviço há mais tempo. Estes motoristas estarão a beneficiar de uma bonificação que lhes permite ficar, em média, com 85% do valor da viagem — mas à medida que estes forem saindo da Uber, os novos motoristas já não terão esta bonificação e levarão para casa 75% ou menos para casa, o que ajudará os resultados da Uber se se concretizar.
No mercado português, estas contas não são tão lineares. Para poder operar em Portugal – ao contrário dos EUA – a Uber recorreu a empresas parceiras de animação turística ou de rent-a-car, que subcontratam motoristas. Neste caso, os 75% são divididos entre a empresa e o condutor, o que já levou vários motoristas a queixarem-se das condições precárias em que trabalham, como foi revelado nesta reportagem do Observador. Contudo, caso o proprietário da empresa seja também motorista, leva a totalidade dos 75% (brutos) para casa.
O problema, para motoristas como o que se travou de razões com Travis Kalanick na noite da Super Bowl, é que a Uber tem reduzido cada vez mais os preços para atrair os clientes e vencer a concorrência. E, com isso, o valor que os condutores levam para casa é cada vez menos — a Bloomberg fez uma reportagem muito badalada sobre motoristas nos EUA (donos dos próprios carros) que conduzem longas horas e dormem no carro para conseguir sobreviver.
E o que é que significa, para quem investiu na Uber, que a empresa tenha de apertar tanto as margens para evitar que a concorrência roube negócio? É plausível esperar que algum dia seja diferente? Será que a Uber algum dia vai conseguir expandir e manter o negócio sem subsidiar as tarifas? É que, se assim não for, “podemos, muito bem, estar perante um caso de caridade dissimulada”, escreveu Izabella Kaminsky, no Financial Times, no ano passado. Conseguirá a Uber, algum dia, cumprir aquilo que está a prometer?
Para Hubert Horan, experiente analista do setor dos transportes, a resposta é simples: “não, a Uber nunca vai conseguir corresponder às expectativas“. Horan fez (muitas) contas e, numa entrada no blogue Naked Capitalism, em novembro, chegou a uma conclusão simples: “os números simplesmente não batem certo“. “A esperança da Uber é um dia ganhar milhões de milhões em retorno para os seus investidores, a partir de uma atividade que, historicamente, produz margens magríssimas prestando um serviço sem grande valor acrescentado e pouco especializado, uma commodity“, escreveu o especialista em novembro.
“A avaliação enorme da Uber [os tais quase 70 mil milhões] sempre teve implícito um crescimento dramático e um objetivo de dominação global”, acrescentou Hubert Horan. O problema é que virar a agulha não parece estar a ser fácil, apesar da subida das receitas que tanto anima Travis Kalanick: “Os resultados financeiros, ao longo de 2015, não evidenciam qualquer melhoria das margens. E a ligeira melhoria das margens em 2016 pode ser, facilmente, explicada pelos cortes aos pagamentos aos motoristas que a Uber está a fazer”, defende Hubert Horan.
Outro especialista que fez algumas contas foi Aswath Damodaran, professor da Stern School of Business, na New York University, que tem um blogue onde costuma fazer aquilo em que se especializou — fazer avaliações de empresas. A conclusão de Damodaran é que a Uber pode ser uma empresa viável, mas não vale aquilo que os investidores estão a pagar por ela. O problema? Os lucros, sempre os lucros.
“Fazer disrupção é fácil, mas fazer dinheiro com a disrupção é difícil, e as empresas de partilha de boleias são o exemplo mais claro de que as coisas são mesmo assim”, diz Damodaran, acrescentando que a Uber é uma empresa que provavelmente viverá sempre gastar fortunas na dominação global e no combate às concorrentes que surjam, portanto estará sempre a comprimir as margens e a pagar cada vez menos aos motoristas — é difícil imaginar um “momento lift off” para a Uber, na opinião do académico.
Além disso, há que ter sempre presente o risco de toda a proposta de negócio cair por terra, o que poderá acontecer caso, por exemplo, os legisladores obriguem a Uber a assumir-se como empresa de transportes (e não uma app de partilha de informação) ou se a obrigarem a reconhecer os motoristas como seus funcionários.
Se isso não acontecer, a Uber pode tornar-se uma empresa viável, defende Evan Rawley, ao Observador. O professor de Columbia está otimista e diz que “a Uber irá conseguir ser viável” e assinala que, na sua análise, “a Uber já será lucrativa, hoje, em Nova Iorque” e em outros mercados importantes. Lucrativa, sim, mas monopolista, não. “Isto é, provavelmente, uma imagem daquilo que será o equilíbrio de longo prazo para a Uber – concorrência com mais um (ou dois) outros players, além dos táxis na rua. Este setor acabará por se transformar num oligopólio. E, aí, acredito que a Uber pode ser lucrativa”.
Mas os investidores não estão a pagar uma avaliação gigantesca de 70 mil milhões de dólares por uma empresa meramente… “lucrativa”. Então estão a pagar porquê? O que promete Kalanick para convencer os investidores a injetarem vários milhares de milhões na startup que lançou há oito anos e acumula prejuízos multimilionários?
“Os investidores não vão bancar os prejuízos da Uber para sempre”
Os lucros estão nos carros autónomos? Talvez não
A avaliação multimilionária da Uber tem por base um plano de negócios a longo prazo que só a Kalanick e aos investidores pertence, apesar de a curiosidade à volta da tecnológica privada mais valiosa do mercado se intensificar à medida que os dólares crescem. O que é certo é que no mundo dos unicórnios (empresas que estão avaliadas em mais de mil milhões de dólares), os olhos não estão postos nas contas do “agora”, mas nas do futuro. E o futuro das contas da Uber, especula-se, está nos carros autónomos. A avaliar pelos investimentos que a empresa tem vindo a fazer na área, o monopólio de Kalanick vai construir-se sem ninguém ao volante.
“Estamos entusiasmados com o potencial que os veículos de condução autónoma podem ter para nos ajudar na missão de trazer viagens mais seguras e mais convenientes a todas as pessoas e em qualquer lugar. É por isso que continuamos empenhados no desenvolvimento deste tipo de inovações tecnológicas, um compromisso que iniciámos em 2015 com a criação do Centro de Tecnologias Avançadas (ATC) em Pittsburgh”, disse ao Observador fonte oficial da Uber Portugal, apesar de reconhecer que este tipo de tecnologia ainda “está a dar os primeiros passos” e que não é possível “prever o futuro com exatidão”.
Mas o investimento não tem parado. Em agosto de 2016, a Uber comprou a Otto – startup que desenvolveu tecnologia para camiões autónomos -, por 680 milhões de dólares (operação que já lhe valeu uma ação judicial por parte da Google) e fez uma parceria com a Volvo no valor de 300 milhões de dólares. Objetivo: ter carros sem condutor totalmente disponíveis em 2021. Os testes piloto já estão, contudo, a acontecer nos EUA. E na segunda-feira, a tecnológica conseguiu mais uma vitória: o Estado da Califórnia voltou a permitir que a tecnológica testasse carros autónomos em São Francisco – além dos que já faz em Phoenix e em Pittsburgh, onde já tem um centro de desenvolvimento- , depois de em dezembro ter mandado retirar todos os veículos das estradas.
Uber faz parceria com Volvo para testar carros sem condutor nos EUA
Mas será isso que vai tirar a tecnológica dos prejuízos milionários que tem registado? De acordo com a informação a que o The Informant teve acesso, as estimativas apontam para que os lucros da empresa cresçam apenas 5% se Kalanick eliminar os custos com os motoristas de vez. Porquê? Porque a tecnológica está a contar que as cidades passem a cobrar uma taxa pela circulação de carros autónomos e porque a própria Uber teria de se redefinir – passar de uma empresa tecnológica a uma empresa de gestão de automóveis, com todos os custos que essa transformação acarreta. Além de que terá de dizer adeus à sua maior não despesa atual: os carros. Hoje, a Uber não tem quaisquer custos com a aquisição dos veículos.
Michael Ramsey, analista da consultora Gartner, especializado no setor automóvel, alerta para isso mesmo: para as despesas (até aqui inexistentes) que vão surgir nesta nova realidade e que envolvem hardware produzido de raiz, software de inteligência artificial, sensores, produção própria, garagens, entre outros. “Não faz sentido. A ideia da frota autónoma tem ainda muitos buracos por tapar“, disse Ramsey, citado no Xconomy’s. Para o especialista, os custos que as empresas vão ter com os carros sem condutor vão ser 10 vezes superiores aos que têm com um serviço de passageiros tradicional, rondando os 100 mil dólares anuais. Atualmente, este custo ronda os 25 mil dólares por ano, nos EUA.
Shahin Farshchi, sócio da capital de risco Lux Capital, concorda. “Pode não haver muita vantagem financeira” no negócio dos carros autónomos, afirmou ao Xconomy’s, lembrando que as margens deste tipo de negócio tendem a ser muito pequenas, “como as margens das mercearias”. “Vai tudo depender do poder das negociações“, acrescentou, ressalvando que há outra questão que ainda não foi respondida e que importa para a sustentabilidade das empresas: o mercado dos carros autónomos vai funcionar com base no sistema tradicional de consumo ou vai seguir o caminho dos emergentes serviços on-demand? “A ideia que temos é que as pessoas vão deixar de ter carros para passar utilizá-los apenas, como fazem quando veem um filme no Netflix”, acrescenta Ramsey.
Sobre o investimento que a Uber tem feito no setor, Evan Rawley, professor na Universidade da Columbia, nos EUA, disse ao Observador que o caminho pode passar por um spin-off da equipa de Investigação & Desenvolvimento da empresa. “Os investidores podem, também, tentar autonomizar o negócio da pesquisa em carros autónomos e encaixar alguma liquidez dessa forma… Acho que não estão dispostos a subsidiar isto para sempre“, afirmou. E agora que a Google avançou com uma ação judicial contra a Uber – por suspeitas de que Anthony Levandowski (fundador da Otto e ex-funcionário da Waymo, empresa de carros autónomos que pertence à Google), tentou roubar informações confidenciais da tecnológica antes de ter criado a startup que foi adquirida por Kalanick), o cenário piora?
Uber acusada de roubar tecnologia usada em carros sem condutor da Google
De acordo com o que um colaborador da Uber, que pediu ao The Informant para não ser identificado, a tecnológica está a contar que os carros autónomos se traduzam num aumento de 5 a 10% do lucro em cidades grande como Nova Iorque, Chicago ou Paris. Para Ryan Felton, jornalista especializado em transportes e tecnologia, “a Uber está condenada, porque, na verdade, não consegue fazer dinheiro“, escreveu na publicação digital Jalopnik, que pertence ao grupo Gawker Media. Ao Jalopnik, Hubert Horan também disse que “se o cenário dos carros sem condutor for posto de lado, o futuro de curto prazo da Uber depende do facto de a empresa conseguir estabeler uma posição de quase-monopólio nos EUA e noutros mercados desenvolvidos, até que o dinheiro se esgote”, o que “é possível, mas não é certo”.
“Se isto acontecer, o cash-flow da empresa sobe consideravelmente. Se não, os problemas de cash-flow podem piorar, à medida que o mundo está cada vez mais consciente de que a Uber nunca vai gerar lucros sustentáveis no seu negócio principal. Kalanick disse que a Uber tinha uma necessidade ‘existencial’ de ter sucesso nos carros autónomos. E isto sugere que o seu otimismo em relação aos lucros do modelo baseado nos táxis já não é o que costuma ser”, acrescentou Hubert Horan. Onde estão os lucros, afinal?
Está a Uber a tornar-se no “pior inimigo” das contas da Uber?
O ano não começou bem para Travis Kalanick. As declarações da ex-engenheira informática Susan J. Fowler no blogue onde revelou ter sido alvo de assédio sexual e discriminação de género dentro dos escritório da empresa ecoaram pela imprensa internacional e levaram o líder da tecnológica contratar o ex-procurador-geral norte-americano Eric Holder para conduzir uma investigação independente ao que se passou com Susan. Ariana Huffington, fundadora do Huffington Post e agora um dos braços direito de Kalanick, também veio a público assumir “os erros” da Uber e dizer que se ia envolver pessoalmente na investigação.
Os mea culpa não foram, contudo, suficientes para evitar que a campanha #deleteUber voltasse a invadir as rede sociais ou que surgissem mais revelações de uma cultura organizacional que, além de sexista e discriminatória, é “desenfreada” e “obsessiva”, segundo o The New York Times. O The Guardian fala inclusive em “disfunção hiper-competitiva” e Keala Lusk, outra ex-engenheira, revelou, num post que escreveu no Medium, que “durante o tempo que passou na empresa, assistiu a lutas maléficas por poder, estagiários que trabalhavam 100 horas por semana repetidamente, mas que só recebiam por 40 horas, situações de discriminação contra as mulheres, e preconceito em relação à comunidade transgénero”.
Assédio e cultura de obsessão. O que se passa nos escritórios da Uber, Kalanick?
Se as coisas já não estavam bem para Kalanick, o próprio Kalanick agravou-as, depois de a Bloomberg ter divulgado um vídeo em que o líder da tecnológica discute com o motorista (do Uber em que seguia) sobre as condições de trabalho precárias a que estava sujeito. O vídeo “embaraçoso” termina com um bater de porta por parte do presidente da empresa, depois de o motorista lhe ter dito que estava na falência por culpa de Kalanick. O CEO respondeu que eram “tretas” e que “algumas pessoas não gostam de assumir a responsabilidade pela sua própria porcaria”.
Os colaboradores não gostaram. A imprensa também não. E mais um pedido de desculpas (enquanto a Uber é surpreendida com uma ação judicial da Google). Pouco tempo depois, novo escândalo: segundo o The New York Times, a tecnológica terá utilizado, durante anos, uma ferramenta para enganar e escapar às autoridades, nas cidades onde o serviço encontrava resistência ou onde foi banido. A ferramenta, que se chama Greyball, começou a ser utilizada no início de 2014 para detetar utilizadores que agredissem motoristas, mas passou a ser utilizada para evitar as autoridades.
Que impacto é que estas revelações têm na reputação da empresa? “A Uber cavou um buraco muito fundo para si própria. Agora, vai ter de dizer ‘nós queremos mesmo isto. Queremos mesmo, mesmo escalar este buraco, independentemente do que é preciso’. Porque a verdade é que não vai ser fácil, nem rápido, mas é fazível”, disse, ao The Verge, Freada Klein Kapor, investidora na capital de risco Kapor Capital, que investe na Uber. Num blog post que Freada assinou com o marido, Mitch Kapor, o casal diz que está “muito desiludido” com a empresa.
“O sucesso da Uber cá fora, em termos de crescimento de mercado, de receitas e avaliação, é impressionante, mas nunca pode justificar uma cultura que se baseia em desrespeito, falta de diversidade, de tolerância, em bullying e assédio de todas as formas”, escreveram os investidores que entraram para o capital da empresa em 2010. “Falamos agora porque estamos desiludidos e frustrados; sentimos que chegámos a um beco sem saída ao tentarmos influenciar a empresa, discretamente, lá dentro”, acrescentam.
O consultor Bradley Tusk, que é conhecido por ser “o génio político da Uber”, desvaloriza as polémicas. “A empresa tem de trabalhar a questão da gestão e da cultura, mas isso acontece em todas as tecnológicas. O que preocupa efetivamente os investidores é a inovação e no que diz respeito a ser disruptivo nos táxis, no aluguer de carros e na propriedade dos mesmos, não há nenhuma startup que inove melhor do que a Uber”, disse ao The Verge. Com a desconfiança dos utilizadores e dos parceiros da Uber a aumentar, Tusk reafirma que há coisas que têm de ser trabalhadas, mas que 99% das decisões têm por base a velocidade a que acontecem e não as políticas.
“Por outras palavras, enquanto a Uber se mantiver mais rápida do que a concorrência, não tem motivos para se preocupar”, disse. Brishen Rogers, professor de direito na Universidade de Temple, tem uma ideia diferente. Ao The Verge, disse que a Uber se tornou no “pior inimigo” de si própria. “É mais um exemplo de uma empresa que ignorou regras muito básicas e funcionais sobre como emprego e fair play nos mercados. É muito frustrante de ver, porque acho que a empresa é genuinamente inovadora, mas a verdade é que continua a atravessar-se no seu próprio caminho”, disse.
O que é certo é que quanto mais polémicas vierem ao de cima, mais dificuldades terá a empresa em recrutar talento de topo e em crescer – que é vital para se tornar lucrativa. Questionado sobre de que forma é que este tipo de relatos impactam a atividade da Uber em Portugal, por exemplo, os responsáveis desvalorizam.
“A Uber é uma empresa global e, como tal, estamos conscientes de que todas as ações locais têm visibilidade internacional. Ainda assim, continuamos a ver cada vez mais pessoas a escolher a Uber para viajar nas cidades portuguesas, e permanecemos determinados em oferecer uma aplicação cada vez melhor tanto aos utilizadores como aos motoristas em Portugal”, disse ao Observador.
Há entrada em bolsa (IPO) à vista?
A cultura organizacional da Uber não deixa margem para dúvidas, nem parece deixar Travis Kalanick. Em entrevista à Vanity Fair, Bradley Tusk explicou que quando teve a primeira conversa com o líder da tecnológica sobre quanto poderia gastar para trabalhar no processo de regulação da Uber em Nova Iorque, este foi perentório. “Gasta o que tiveres de gastar. E faz o que tiveres de fazer”, respondeu-lhe Kalanick. “E ele queria mesmo dizer aquilo. Gastámos 4 milhões em anúncios publicitários, fizemos anúncios para rádio, digitais, enviámos mails diretos. Mobilizámos os nossos consumidores, mais de 100 mil, fazendo tweets ou enviando email. Trabalhámos com cinco empresas de lobbying diferentes”, disse Tusk. E tudo numa campanha de 24 horas.
Os esforços de Kalanick são apenas uma das faces com que quer mostrar ao mundo que a Uber é invencível. E o aceno aos investidores tem sido feito com o tão esperado IPO da empresa (entrada em bolsa) – a forma mais provável de conseguirem ter retorno dos vários milhões que investiram na tecnológica e de os colaboradores conseguirem liquidez com as ações prometidas pela administração da empresa. Kalanick já disse publicamente, contudo, que quer atrasar esse momento o mais possível. “Há muita resistência na gestão de topo da Uber ao IPO”, disse um ex-colaborador da empresa ao Financial Times.
As mais recentes polémicas em que Kalanick e a empresa se têm envolvido parecem não ajudar. “Isto está mesmo a começar a afetar a forma como percecionamos a empresa e a sua persona pública”, disse Kate Mitchell, investidora na capital de risco Scale Venture Partners num programa da CNBC. “Vai ser um desafio avançarem com um IPO. Acho que, de muitas formas, é uma dádiva para o resto de Silicon Valley, porque nos lembra que todos nós ainda temos de nos focar nisto e fazer as coisas que estão corretas”, acrescentou a especialista, que não hesitou em lembrar que a “cultura da empresa começa no topo” e que as denúncias de Susan Fowler foram “um abrir de olhos” para toda comunidade tecnológica.
O IPO da Uber é um dos mais esperados para 2017, logo a seguir ao já concretizado do Snap – casa mãe da rede social Snapchat -, mas Jack Delaney, editor da publicação financeira Money Morning acha que a entrada em bolsa da tecnológica não vai acontecer tão depressa. “Kalanick quer tornar as ações da Uber mais valiosas para os acionistas privados, antes de as tornar públicas. Neste preciso momento, a app de partilha de viagens está a aumentar o seu valor fazendo crescer as receitas”, escreveu.
As estimativas apontam para que as receitas da Uber em 2016 cresçam de 2 mil milhões para 5,5 mil milhões de dólares este ano. “Mas apesar das receitas crescentes, a Uber está longe de ser lucrativa…”, acrescentou. As estimativas também apontam para que os prejuízos cresçam para 3 mil milhões de dólares. Para Jack Delaney, Kalanick tem de provar que a sua empresa é rentável antes de a admitir em bolsa.
Paulo Pinho, diretor do Lisbon MBA e especialista em private equity, concorda. Ao Observador, explicou que que “o que determina um IPO são as questões de oportunidade e os objetivos dos investidores” e que “os investidores da Uber pretendem maximizar a sua taxa interna de rendibilidade”, porque “estão preocupados com o retorno que recebem”. “Eu diria que, neste momento, começa a ser impossível vender a Uber a terceiros. Portanto, a única saída será um IPO, mas a estratégia de saída vai ser ditada pelos investidores em função das oportunidades de valorização que encontrem no mercado, mais do que outra coisa qualquer. Se sentirem que o mercado não vai oferecer a valorização que eles precisam naquele momento, podem preferir esperar um ano ou dois, sabendo que o tempo conta contra a taxa interna de rentabilidade deles”, afirmou.
A vida não está fácil para Travis Kalanick. Mas é mesmo assim que ele gosta. Antes de se pegar com o motorista do Uber na noite da Super Bowl, Kalanick parece dizer às duas mulheres que o acompanhavam: “Sim, tem sido um ano difícil, mas eu gosto de me certificar que todos os anos são difíceis. Se não sinto dificuldades, isso significa que não estou a puxar por mim o suficiente. That’s how I roll“.