Só falta mesmo a bola estar a rolar na relva, lá em baixo, porque nós estamos prontos. Sentamo-nos em duas cadeiras, das confortáveis, na central do Estádio da Luz. A conversa flui e nenhum olha para o outro, as atenções estão no campo e no silêncio que enche o estádio. Calha à mesma hora do treino da águia Vitória, que vai sobrevoando, durante uns minutos, as bancadas, enquanto o tratador é a única pessoa que pisa a relva. O cenário é calmo, pacífico, longe das tardes e noites em que António Veloso parecia um maratonista incansável em vez de um jogador de futebol.
O normal era vê-lo a correr de um lado para o outro, a acelerar para chegar à frente e sprintar para voltar atrás. Não era um sonho para adepto ver, era um pesadelo para os adversários enfrentarem e disso muito se orgulha. “Eu queria era jogar, a minha preocupação era essa! Jogar e tentar fazer o que o treinador podia e impedir que os gajos não chegassem à nossa baliza”, desabafa, às tantas, quando já tinha dito e lembrado que era um jogador que qualquer treinador gostava de ter. Queria estar estar em campo, não interessava onde. No Benfica diz que só não apareceu a guarda-redes e a ponta de lança, na seleção nacional foi médio centro no Europeu de 1984, na única partida que fez, contra a Alemanha. Mas isso não o impede de saber e de se lembrar de muita coisa.
Dorme-se bem na noite antes de o selecionador dizer os convocados?
Sim, dorme-se. Mas eu não estava com a preocupação de ouvir, na altura nós recebíamos a notificação por escrito. Tinha algumas dúvidas da minha presença porque, meses antes, parti o perónio aqui [aponta para o relvado, lá em baixo], com o Braga. Acabei por recuperar, não fiquei bem, fui operado, e depois claro que tive dúvidas se podia, ou não, ser convocado. Comecei a treinar, a jogar, mas fiz poucos jogos, só três, se não me engano [ao todo faz 17, em 1985/86]. Depois da lesão fiquei assustado, achava que não ia recuperar. Com os contratempos da operação, do pôr placa e tirar placa, dos poucos jogos que fiz, tinha dúvidas. A chamada foi um prémio.
Onde estava na altura?
Em casa. Na altura treinávamos de manhã e de tarde, não todos os dias, mas pelo menos duas ou três vezes por semana, e soube depois de chegar a casa. Foi uma alegria, obviamente.
Era o primeiro Europeu para Portugal. Não estavam nervosos?
De maneira nenhuma. Sabíamos que tínhamos uma primeira fase difícil. Claro que, para a seleção portuguesa, foi um Campeonato da Europa com alguma turbulência, digamos assim. Tínhamos quatro treinadores, havia algumas divergências entre eles em relação a certos jogadores.
Sofreu na pele com isso?
Para ter noção, no dia do jogo com a Alemanha, fui chamado antes do almoço. Tive uma reunião com os treinadores, em que me disseram onde ia jogar. Mas chegou o jogo e afinal não joguei. Fiquei no banco, entrei na segunda parte e acabámos por empatar, num jogo que foi importante para passarmos à fase seguinte. Tive que aceitar, embora sabendo que o que fizeram não foi honesto. Se era para não me pôr a jogar, bastava não terem falado comigo. Agora, falando comigo, a dizer que ia jogar assim e assado, e depois não estou nos 11, claro que fiquei triste e chateado.
Falaram os quatro consigo?
Sim, todos. O Toni, o Cabrita, o José Augusto e o Morais.
Mas quem mandava ali?
Quem tinha mais força era o António Morais.
Porquê? Para a UEFA, o treinador principal era o Fernando Cabrita, que até o lançou no Beira-Mar.
Exatamente. Mas quem estava no banco não era ele, o Cabrita era mais um conselheiro, era um senhor com mais idade, mais conhecimento do futebol. Conhecia o meu valor, por isso é que na tal reunião fizeram questão que fosse eu a jogar. Mas, nessa discussão, havia a hipótese de jogar o António Sousa. Claro que nestas circunstâncias não tínhamos que estar a fazer avaliações. Independentemente de quererem que eu faça, ou não, parte da equipa, só têm que não enganar.
Tantos treinadores não dava confusão nos treinos?
Não, porque a gente já ia treinada daqui. Basicamente eram treinos táticos. Mesmo pondo alguém a jogar nesta posição para aquele jogo, tudo se podia alterar para o jogo seguinte, face ao adversário. Treinávamos normalmente, mas ninguém sabia quem ia jogar. Eles nem davam indicações disso. Por um lado também era bom, porque se alguém fosse chamado sem estar à espera já sabia o que tinha de fazer. Todos participavam nos treinos táticos.
Quem dava mais ordens no banco, durante os jogos?
Era o Morais, sempre.
E o Toni?
Também falava, claro. Mas o Morais era quem mais se impunha e decidia. Então quando era para substituir… Isso era outra luta. Os jogadores ficaram alheios a toda essa situação e tentaram dignificar o país e fazer o melhor.
Falava-se muito numa suposta guerra entre os jogadores do Benfica e do FC Porto.
Acho que, no fundo, falava-se mais do que o acontecia na realidade. Não era bem assim. Talvez um bocadinho, vá. Por exemplo, quem se equipava com os jogadores do FC Porto era eu. Fazia questão, não tinha nada contra ninguém, eram meus colegas. Não estávamos ali em dois clubes, estávamos para defender Portugal. No fundo, essa divisão não era por ter algo contra, era mais por se sentirem melhor com os jogadores que conheciam do clube. Como me dava bem com toda a gente, essa questão nunca me passou pela cabeça.
Na altura acontecia o oposto a hoje em dia, não havia quem jogasse fora de Portugal.
Sim, mas a seleção tem de ser como uma equipa, solidária e coletiva. Só assim se ganha. Podes ter muitas individualidades, mas sozinhas elas não rendem.
Como em 1984, este Europeu vai jogar-se em França. Na altura sentiram muito os emigrantes atrás da seleção?
Sempre. Não era só na seleção, quando o Benfica, o FC Porto ou o Sporting lá iam sentia-se o mesmo. Era uma coisa estonteante, não nos largavam desde o hotel e do treino, só queriam fotografias e autógrafos. Portugal nunca tinha ido a um Europeu, todos os dias e a toda a hora convivíamos com portugueses. Era de manhã, à tarde e à noite. Para nós era bom, sentíamo-nos em casa.
E partilhar o quarto com o craque da seleção, como era?
Com o Chalana? Muito honestamente, a gente não pede. Estar com ele ou com outros jogadores era igual. Éramos da mesma equipa, já nos dávamos bem. Ele demonstrou as qualidades que tinha. Acabou por dar show e depois foi para França jogar. Mas pronto, era alguém muito calmo, não falava muito. Era da forma que descansávamos mais.
Tiveram alguma conversa especial antes da meia-final com a França?
Os que não jogavam claro que davam incentivos a quem ia jogar. Só lhe dizia: ‘Chalana, só tens que fazer aquilo que costumas, mais nada. Vais para cima deles’. Nem era preciso, porque ele ia na mesma. Tecnicamente era um jogador fantástico, difícil de marcar.
Começaram-lhe a chamar Astérix.
Foi por causa do bigode e do nariz. O Chalana foi um génio do futebol, dificilmente aparecem jogadores assim.
O Veloso era lateral. O que acha dos laterais que podem ir ao Europeu?
É um lote bom, independentemente do sistema que o Fernando Santos utilizar. São jogadores rápidos e bons tecnicamente, apesar de não serem muito altos. Estamos a falar do Vieirinha, do Cédric, do Eliseu à esquerda, que já é um jogador mais composto. Tem boas opções. Há a hipótese do André Almeida, que parece-me ser o mais equilibrado, entre os três [laterais direitos] parece-me ser quem defender melhor.
É o único que faz hoje o que o Veloso fazia, que é jogar nos dois lados da defesa.
É uma bênção para qualquer treinador, ter alguém que joga sempre bem, qualquer que seja a posição.
Não acha que esses jogadores, os mais polivalentes, são olhados de lado pelos adeptos?
Depende dos atletas. Há quem jogue bem na direita e na esquerda, há outros que são adaptados e acabam por não render. Tem a ver com a vontade e determinação em querer jogar e ajudar a equipa. Se tens técnica, velocidade e consegues atacar e defender, é uma mais-valia para qualquer jogador. Não é bom estar sempre a mudar, mas é melhor estar sempre a jogar. O que eu queria era jogar e pronto. Por exemplo, no primeiro jogo contra a Alemanha entrei para o meio campo.
Isso não lhe fazia confusão?
Não, nenhuma. Qualquer jogador tem de ter consciência de que, com bola, tem de participar no jogo ofensivo. Quando não tem, defende. Não são só os defesas.
Mas quando não se tem a bola é que é a parte mais difícil, ou não?
Claro. É o saber posicionar e tentar impedir que o jogador A ou B não possa criar perigo e desequilibrar. Há que ter vontade de defender. Quando era miúdo, naqueles jogos de bairro, muitas vezes era o mais novo e quando me diziam que, se quisesse jogar, só na baliza, eu ia para a baliza. Sempre me habituei a isso. Depois chegava outro e dizia: ‘Queres jogar? Então vá, anda para a baliza que eu vou para a frente’ [ri-se]. O que eu queria era jogar e quando o adversário tinha a bola eu não descansava enquanto não a tirasse. Jogava à esquerda, à direita, ao meio, à frente, para mim era igual. Até aos seniores fui sempre ponta de lança, até fui segundo melhor marcador do nacional de juniores, atrás do Fernando Gomes. Ainda estava na Sanjoanense.
Cresceu a marcar golos, mas faz carreira a defesa e, nas últimas quatro épocas no Benfica não faz qualquer golo. Não lhe deu pena isto?
A minha preocupação passou a ser que a minha baliza fosse inviolável. Ainda por cima tinha jogadores na frente mais novos que eu. Ao longo da minha carreira, os treinadores davam primazia ao lateral do outro lado para atacar, porque eu dava mais segurança defensiva se ficasse atrás. Para mim não era importante marcar golos, era não os sofrer.
Quando é que o mandaram ser lateral?
Foi no Beira-Mar. Eu jogava a médio e tinha lá um jogador, o Soares, que se lesionou. O senhor Fernando Cabrita, no gozo, disse-me que me ia por ali. Fiz dois jogos e quando fui para o Benfica ainda era médio. O Lajos Baróti, num jogo em Setúbal, eu entrei para lugar do Bastos Lopes, que era defesa direito, e nunca mais saí.
Gostou da primeira vez?
Eu queria era jogar, a minha preocupação era essa! Jogar e tentar fazer o que o treinador podia e impedir que os gajos não chegassem à nossa baliza. Joguei à direita, à esquerda, a médio. De facto, no Benfica só não joguei a guarda-redes e a ponta de lança. Uma vez, em Portimão, até joguei a médio esquerdo porque o Chalana estava lesionado. O Nené e o Diamantino disputavam o melhor marcador e dei tantas assistências nesse jogo que aquilo foi uma confusão dos diabos.
Também deu nós cegos nesse jogo, como o Chalana?
Oh, tecnicamente não era mau. Era rápido e tinha força. E com a mudança para o Benfica, com os treinos, a gente melhorava os aspetos físicos e táticos.
Qual é o jogador que hoje em dia acha mais parecido consigo?
O André Almeida. É um jogador que tem muitas parecenças comigo. Vai a todas, às vezes até exagera um bocadinho, pois desposiciona a defesa, tem que haver sempre alguém que faça a compensação. Mas é alguém que dá tudo o que tem, tanto na direita como na esquerda. Qualquer treinador gosta de ter estes jogadores.
Vamos ao Europeu para ganhar, como diz o Fernando Santos?
Seja qual for a prova, o objetivo e pensamento do treinador é sempre ganhar. Independentemente de os adversários serem complicados, há que ter confiança nos jogadores que tem. E não é por ter o melhor jogador do mundo, que é o Cristiano Ronaldo — que naturalmente é uma mais-valia –, mas sim pelo conjunto que tem. Se forem uma equipa coesa e unida serão muito mais fortes e terão mais hipóteses de ganhar.
Foi o que vocês pensaram em 1984?
Sim, mas depois houve muitas contradições no meio da seleção. Eram os prémios, que foram discutidos cá e mudaram lá, os quatro treinadores… Quando não há estabilidade, aquilo fica sempre no subconsciente, mesmo que os jogadores queiram ultrapassar tudo.
E depois houve o Platini.
Exatamente, ainda houve esse.
As dez entrevistas aos portugueses de Europeus
Até ao arranque do Campeonato da Europa publicámos dez entrevistas com antigos jogadores das seis edições anteriores em que Portugal esteve. Aqui ficam, todas juntas.
- "Olhei e não sabia onde havia de meter a bola"
- "O Oliveira tinha a mesma categoria que o Platini"
- "Não me via a fazer o que o Ricardo fez"
- "O Henry era o jogador que me atormentava..."
- "Em 84 só faltou levarem as camisolas dos clubes"
- "Não chamei nomes ao Poborsky, pelo contrário..."
- "Herdei a camisola do monstro, depois ofereci-lha"
- "O Eliseu ou o miúdo não tinham hipótese comigo"
- "Eu queria jogar, a minha preocupação era essa!"
- Maldito penálti e chapéu. Estão-lhe atravessados