Havia quem acreditasse que o Presidente russo ia deixar o homólogo turco à sua espera esta sexta-feira, antes do início do encontro em Sochi — seria uma forma de vingar o atraso de dois minutos no último encontro em Teerão. Mas o cenário foi muito diferente. Vladimir Putin recebeu a comitiva turca e cumprimentou pessoalmente Recep Tayyip Erdoğan. A cordialidade não se ficou por aqui. Nos oito minutos que foram transmitidos em direto pelas televisões, o chefe de Estado russo elogiou o “envolvimento pessoal” do Presidente turco em providenciar uma solução para os cereais retidos na Ucrânia.
Erdoğan respondeu na mesma moeda. Recebido em Sochi com grande circunstância, o Presidente turco mostrava “gratidão”. “Obrigado. Estou encantado que nos tenhamos encontrado outra vez tão cedo após o nosso encontro em Teerão”, disse a Putin perante as câmaras, ciente da importância destas palavras. “O mundo tem os olhos postos em Sochi”, afirmou ainda, antevendo que as “melhores respostas” seriam dadas no encontro à porta fechada após aqueles primeiros minutos que mais pareciam ter sido encenados.
Sentados lado a lado, Erdoğan e Putin estavam a transmitir uma mensagem ao Ocidente, mais concretamente à NATO, aliança militar de que a Turquia faz parte. E, por isso, o Presidente russo aproveitou para mandar um recado à Europa, que, disse, devia estar “grata” a Ancara: “Acredito que os nossos parceiros europeus deviam mostrar gratidão à Turquia por assegurar o trânsito contínuo de gás aos seus mercados”.
The fact that Kadyrov is at this Erdogan/Putin meeting isn't a good sign for Ukraine.
Guessing Putin will promise Erdogan a seaport on Ukrainian coast among other gifts. pic.twitter.com/grFKYUV5HG
— Jay in Kyiv (@JayinKyiv) August 5, 2022
Com esta mensagem, o chefe de Estado russo resumia o seu principal objetivo neste encontro: o apoio económico da Turquia, que não aplicou qualquer sanção contra a Rússia, contrariamente ao Ocidente. E deixou isso bem claro: “Eu espero que hoje consigamos assinar um memorando relevante no desenvolvimento do nosso comércio e relativo aos nossos laços económicos”. De certo modo, Vladimir Putin parecia desvalorizar os restantes temas: “Claro que também vamos discutir os assuntos que temos discutido durante muito tempo, nomeadamente a segurança regional e a crise síria”.
Por sua vez, disfarçado de elogio, o Presidente turco introduziu o assunto que mais lhe interessava: a luta contra as milícias curdas no norte da Síria. “Do ponto de vista turco, eu quero dizer que a Rússia desempenha um papel especial no mundo. Acredito que precisamos de nos focar ainda mais na luta contra o terrorismo e espero que isso alivie a situação na região”. “Acredito que os passos que tomamos nas nossas reuniões vão combater o terrorismo e fortalecer as nossas relações”, afirmou.
Sobre a Ucrânia, os dois líderes acertaram que o acordo de Istambul deve continuar a ser implementado nos moldes atuais. Vladimir Putin agradeceu o esforço do homólogo turco e também o impacto que tem na “exportação dos produtos alimentares e dos fertilizantes russos nos mercados globais”. “Este aspeto envolve vários países, especialmente os em desenvolvimento, que estão a enfrentar grandes problemas relacionados com uma possível crise alimentar.”
Turquia aceita pagar gás em rublos, Rússia concede na Síria
À parte do encontro televisivo que durou oito minutos, seguiu-se um intenso trabalho diplomático nos bastidores entre as comitivas diplomáticas dos dois países — e que durou quatro horas. O resultado foi um comunicado conjunto que confirma que a Rússia e a Turquia estão interessadas em “aprofundar” as relações, apesar dos “atuais desafios globais e regionais” que o mundo enfrenta e que coloca os dois países em campos opostos.
“Os dois líderes reafirmam a vontade comum de desenvolver ainda mais as relações russo-turcas”, lê-se no comunicado publicado no site do Kremlin, que ressalva — numa mensagem destinada a tranquilizar a NATO — que a ligação entre os dois países será feita “com base no respeito, no reconhecimento dos interesses mútuos e de acordo com as obrigações internacionais”.
Em termos práticos, “o espetro do entendimento” entre a Rússia e a Turquia incide em vários tópicos. Os dois países acordaram aumentar as “trocas comerciais” e também “atender às expectativas um do outro no âmbito energético e económico”. Transportes, comércio, agricultura, indústria, finanças, turismo e construção serão outros assuntos que Ancara e Moscovo prometem promover nas suas relações.
As “expectativas” da Rússia para este encontro expostas no comunicado parecem ter sido “atendidas”. Erdoğan concordou em pagar parcialmente o gás russo com rublos, algo que Moscovo tem tentado implementar há vários meses um pouco por todo o mundo.
Mas sem antes haver uma retribuição. “Nas questões regionais”, o comunicado dá entender que a Turquia e a Rússia não estão em total sintonia, reconhecendo apenas a “importância de relações genuínas e francas” para se alcançar “estabilidade regional e internacional”. Ainda assim, Erdoğan conseguiu que Putin estivesse “determinado em agir em coordenação e solidariedade na luta contra todas as organizações terroristas”.
A palavras “todas” não dá margem para dúvidas: a Turquia deseja que a Rússia a apoie para eliminar a milícia curda no norte da Síria que Ancara considera um grupo terrorista — a Unidade de Proteção Popular — desencadeando para o efeito uma ofensiva militar. O assunto é de elevada importância para Erdoğan, que até chegou a vetar a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO por uma alegada proteção dos países nórdicos àquele grupo armado.
Putin/Erdogan Joint Statement pic.twitter.com/ixALkWoJOo
— Russians With Attitude (@RWApodcast) August 5, 2022
Contrariamente ao campo económico, ainda não é claro o que será feito, mas Erdoğan parece estar mais perto de convencer Putin em desencadear uma ofensiva militar no norte da Síria. O apoio de Putin é fundamental — a Rússia é a principal aliada do Presidente sírio, Bashar Al-Assad, além de controlar o espaço aéreo de Damasco.
Já sobre a situação na Ucrânia, os dois líderes reconhecem que “as relações entre os dois países” levaram a que houvesse um consenso para o “transporte seguro de cereais” retidos nos portos ucranianos. “Os dois líderes sinalizam a necessidade de garantir a total implementação do acordo de Istambul”, lê-se, terminando por aqui a menção ao país invadido pela Rússia.
Também a Líbia foi mencionada no documento conjunto. “Os dois líderes salientam o seu forte compromisso na soberania líbia, na integridade territorial e na unidade nacional”, destacando-se ainda a “importância de realizar eleições livres, justas e credíveis” no país.
O encontro em Sochi serviu para cimentar as relações entre a Rússia e a Turquia, mas ainda há vários passos para dar. Prova disso é o comunicado a garantir que os “líderes concordaram em agendar uma nova reunião ao mais alto nível”. Desta feita terá lugar na Turquia — e Erdoğan deverá chegar a horas.