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[Texto publicado originalmente em dezembro de 2016]
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[Texto publicado originalmente em dezembro de 2016]

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

[Texto publicado originalmente em dezembro de 2016]

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Como era o Natal de antigamente? Era assim

Cinco lisboetas que já viveram o suficiente para saber como o Natal foi mudando na capital contaram ao Observador algumas memórias que têm desta quadra.

[Texto publicado originalmente em dezembro de 2016]

É Natal na cidade. Lisboa está cheia de luzes e enfeites, de árvores e presépios, de frutos secos e bacalhau, de castanhas e vinho quente, de feiras e rodas gigantes, de compras e lembranças. As tradições natalícias são das que menos mudam, mas o tempo encarregou-se de ir fazendo alterações às rotinas, aos locais e às pessoas.

Cada caso é um caso, costuma dizer-se a propósito de tudo e de nada. E isso não é menos verdade em relação ao Natal. Cada época festiva tem o seu quê de único, de irrepetível. Que memórias têm os lisboetas dos natais passados? O Observador ouviu cinco pessoas com uma vida de lembranças natalícias.

As crianças

No Natal comemora-se o nascimento de Jesus, que os cristãos celebram como o filho de Deus. O padre Bernardo Xavier, que é pároco de São Paulo há 38 anos, não se cansa de o repetir. E, aos 92 anos, lembra-se bem de quando aquela igreja do Cais do Sodré era um rebuliço de preparações natalícias. As crianças eram, então, muito importantes nas festividades.

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Padre Bernardo Xavier
“Havia campanhas com crianças para fazer presépios, para fazer isto, fazer aquilo… As crianças viviam esta quadra, o Advento, iam aprendendo pouco a pouco quem era Jesus, como é que Ele tinha vivido esses momentos do Natal, quem é que O tinha visitado, tudo isso. As crianças participavam todas. Havia catequistas, havia os pais, havia mais entusiasmo para fazer banquetes para os mais pobres. Havia muito boa vontade nesse aspeto.”

O padre Bernardo Xavier recorda as atividades que as crianças faziam pelo Natal

Bernardo Xavier, de 92 anos, está há 38 na paróquia de São Paulo (Fotografia: ANDRÉ MARQUES/OBSERVADOR)

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Mesmo sem qualquer relação com as atividades religiosas, Manuela Cutileiro, há mais de trinta anos responsável pelo Hospital das Bonecas — onde se vendem e reparam bonecas tradicionais — também sente falta das crianças.

Manuela Cutileiro
“Antigamente havia muito mais crianças. É do que eu sinto mais falta nos Natais, são as crianças. Hoje é raro ver-se uma família com uma criança e isso é muito triste. Também, antigamente, havia uma escola por cima do nosso hospital, no primeiro andar. Isso dava-nos um movimento diferente, de sentir o Natal através das crianças. É o que me faz mais saudades.”

Manuela Cutileiro lembra-se de uma época com mais "alegria dos miúdos"

Já Maria Arminda Costa, de 75 anos e com uma voz potente que ainda hoje anima as ruas estreitas de Alfama, tem bem presente na memória um tempo tão distante que parece quase irreal.

Maria Arminda Costa
“Eu quando tinha 24, 22 anos, fazia a venda aqui da manhã e ia para o Martim Moniz, ao pé do Hotel Mundial, até às onze horas da noite, brinquedos na padiola. Púnhamos as cordas, pendurávamos os brinquedos, aqueles de alumínio, e era ‘é barato, podem escolher’, íamos por ali abaixo e eram onze horas da noite quando vínhamos. Vendíamos tudo.”

A vendedora de manjericos Maria Arminda recorda como se vendiam os brinquedos na Lisboa de antigamente

Foi nesta esquina de Alfama que Maria Arminda vendeu peixe, roupas e brinquedos toda a vida (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

A tradição religiosa

Mais do que uma época de consumo, o Natal é, para o padre Xavier, uma oportunidade de encontro dos homens com o divino.

Padre Bernardo Xavier
“Tínhamos missa do galo, era a missa da meia-noite, que é tradicionalmente considerada a hora a que Jesus nasceu. A missa do galo era realmente celebrada com solenidade, com cânticos, depois com o beijar do menino. Enchia-se a igreja. Antigamente era como fazem ainda muitas paróquias que têm muita gente e que juntam muita gente celebrando àquela hora da noite. As pessoas celebravam sempre o acontecimento com fé pelo nascimento de Jesus.”

Quando a igreja de São Paulo enchia...

Padre Bernardo Xavier
“Representava-se muitas vezes, agora e na Páscoa, peças até com um certo valor, bem trabalhadas, com bons cantores, era interessante de ver.”

Além da igreja, o salão paroquial também se enchia com crianças e jovens

O comércio

Começou por ser uma lembrança, tornou-se uma tradição e agora até já se transformou em piada. Natal sem meias não parece Natal. Palavra a José Santos, dono da mais famosa loja de meias da capital — o Rei das Meias — há 36 anos.

José Santos
“Nesta época do ano as vendas têm sempre tendência a subir mais um bocadinho. Além de estar mais frio, é tradição no Natal oferecer sempre. O cliente entra aqui para comprar umas meias para oferecer e pensa ‘mas o que é que eu vou comprar?’. Eu tenho mais de oitenta pernas expostas. Para dar, eu vou dar aquilo que eu sei que a pessoa gosta. Se eu sei que a pessoa gosta de um par de peúgos, eu dou um par de peúgos, não dou uma caneta.”

"Este é o famoso Rei das Meias, que torna bonitas as pernas feias..."

José Santos está há mais de trinta anos no Largo Bordalo Pinheiro, ao Chiado, num negócio quase centenário (Fotografia: ANDRÉ MARQUES/OBSERVADOR)

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

E o negócio noutros tempos?

José Santos
“Eu cheguei a trabalhar aqui com uma série de pessoal e entrávamos e era sempre a trabalhar. Eu entrava aqui às nove horas, era uma hora quando levantava a cabeça e tinha a casa cheia. Que a gente vendia muito mais, ah pois vendíamos.”

No Natal, José Santos recebe alguns pedidos de meias um pouco mais fora do comum

Memórias semelhantes tem Rui Bértolo, cortador de bacalhau na mercearia Pérola do Arsenal há 21 anos.

Rui Bértolo
“Numa altura destas do ano, os clientes faziam filas à porta, tinham de tirar senhas, marcavam hora. Costumava vir para aqui às cinco da manhã e saía à meia-noite. A dada altura tínhamos aí uns cem ou cento e cinquenta cabazes para entregar numa semana e tínhamos de estar aqui, muitas vezes, até à meia-noite ou uma da manhã. Havia firmas que compravam cem ou duzentos bacalhaus para os fornecedores e para os empregados, agora acabaram com isso tudo. Acabaram completamente.”

Rui Bértolo corta bacalhaus numa das lojas mais antigas da Rua do Arsenal há 21 anos

Rui Bértolo diz que está cansado de cortar bacalhau. Já o faz há 21 anos (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Manuela Cutileiro
“Antigamente, a esta hora, nesta altura do ano, nós não tínhamos mãos a medir aqui na loja. Era um movimento que não tem nada a ver com o que é agora. Nada, nada, nada. É do dia para a noite. Escute: não tem nada a ver. Nós chegávamos a comprar cem ou duzentas bonecas e tínhamos que ter os sacos aqui prontos, já enfeitados e tudo, que era só enfiá-las nos sacos e entregar. Eu hoje vivo muito melhor do que vêm cá comprar os estrangeiros do que os portugueses.”

Manuela Cutileiro ri-se ao lembrar-se do volume de negócios que havia há 30 anos

A cidade

Lisboa também não ficou incólume ao passar dos anos — a cidade mudou e o Natal, forçosamente, também.

Maria Arminda Costa
“De há quinze anos para cá isto mudou muito. Era muito alegre, fazia-se muito negócio. Eu vendia aqui na rua as coisas do Natal: roupas, brinquedos. Vendíamos muita coisa, toda a gente comprava nem que fosse umas cuecas, um pijama para oferecer aos netos, a uma pessoa amiga, um perfume, uma coisa qualquer. Agora não, não se faz aqui nada. Como vê, a nossa rua está à vista. É meio-dia e tal e não se vê ninguém.”

"Como vê, é meio-dia e tal e não se vê ninguém"

Manuela Cutileiro
“Os perus vendiam-se no Martim Moniz, vinham em bandos e vendiam-se ali. Aqui havia muito comércio, havia todas as lojas de bacalhau. O movimento era muito grande porque era aqui que estavam as lojas — ainda hoje há duas, mas naquela altura havia muito mais. E havia muitas mercearias especializadas em frutos secos, existia a Nacional com o bolo-rei… Sempre foi uma zona de comércio muito viva, com lojas de roupa, de tecidos, a praça era muito mais movimentada do que é hoje.”

A Praça da Figueira já foi uma praça central do comércio de Lisboa

Há "trinta e tal anos" que Manuela Cutileiro é a responsável pelo Hospital das Bonecas, na Praça da Figueira (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

José Santos
“Há muitos anos, aqui no largo, era eu, a nossa vizinha, o nosso vizinho, três, havia o Carioca, quatro… Quatro ou cinco estabelecimentos. Agora não há lugar, querem e não há.”

Padre Bernardo Xavier
“Eu frequentava as escolas todas. Durante o ano eu ia todas as semanas a todas as escolas dar aulas de Moral. Nesta altura havia um encontro maior com as crianças e com os professores, havia realmente uma harmonia muito maior. Agora não, não tenho encontros porque não há professores nenhuns. Aqui não há escolas, não há professores, não há crianças, não há nada. Tudo isso foi desaparecendo aos poucos. Morreu.”

O padre Bernardo Xavier lamenta que a paróquia tenha envelhecido e já quase não apareça gente

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