José Tavares, atual presidente do Tribunal de Contas, foi uma espécie de conselheiro permanente do Governo de José Sócrates entre 2008 e 2010 para superar a recusa do visto prévio daquele tribunal a cinco contratos de subconcessões rodoviárias — obstáculo que impedia a concretização daquelas Parcerias Público-Privadas (PPP), então consideradas importantes pelo Executivo socialista para enfrentar as eleições legislativas de setembro de 2009.
Pelo meio, o jurista Marcelo Rebelo de Sousa emitiu um parecer a pedido da empresa Estradas de Portugal em que defendia que os contratos das subconcessões rodoviárias não estavam sujeitos ao visto prévio do Tribunal de Contas, “a menos que envolvam financeiramente o Estado”, lê-se no parecer consultado pelo Observador.
Esta é a conclusão do cruzamento das declarações feitas pelos ex-ministros Mário Lino, António Mendonça, Fernando Teixeira dos Santos e do ex-secretário de Estado Carlos Costa Pina nos autos do inquérito criminal das PPP com a consulta dos autos dos processos de visto prévio do Douro Interior e da Auto-Estrada Transmontana e a análise de um conjunto de emails trocados entre o Ministério das Obras Públicas e a administração das Estradas de Portugal a que o Observador teve acesso.
Estas fontes de informação indiciam que o então diretor-geral do Tribunal de Contas, José Tavares, terá recebido durante 2009 vários documentos, nomeadamente o contrato reformado da subconcessão do Douro Interior, para validar a legalidade dos mesmos antes de serem enviados formalmente para os relatores dos processos de visto prévio. Também Guilherme d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas, terá sugerido uma solução legal para resolver o problema: a emissão de um despacho conjunto do ministro das Finanças com o ministro das Obras Públicas a assegurar o refinanciamento das subconcessões rodoviárias.
José Tavares rejeita veementemente tais alegações e mantém tudo o que disse ao Ministério Público no final de 2019: limitou-se “a informar” sobre “jurisprudência do tribunal” e a afirmar aos governantes “que seria necessário suprir as ilegalidades apontadas pelo Tribunal”, no âmbito do que é permitido pela lei em termos de cooperação institucional.
Guilherme d’Oliveira Martins afirma que “não interveio nesses processos” e que “só o acórdão do Tribunal de Contas é relevante”. O ex-presidente do Tribunal de Contas recusou-se a ceder o seu endereço de email para lhe serem enviadas perguntas, tendo sido informado por SMS pelo Observador de toda a informação que lhe diz respeito. Não respondeu depois de ter lido o SMS enviado pelo Observador.
Como tudo começou
O Ministério Público já constituiu 11 arguidos no inquérito das PPP, entre os quais os ex-ministros Mário Lino, António Mendonça e Fernando Teixeira dos Santos e os ex-secretários de Estado Paulo Campos e Costa Pina. Dos respetivos despachos de indiciação constam referências a intervenções de Guilherme d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas, e de José Tavares, bem como “diversas reuniões ocorridas em novembro e dezembro de 2009 nas instalações do Ministério das Finanças e do Tribunal de Contas”.
Ao que o Observador apurou junto de diversas fontes do Governo de José Sócrates e da administração da Estradas de Portugal liderada por Almerindo Marques, as reuniões começaram muito mais cedo, tal como os próprios processos de visto prévio do Tribunal de Contas também indiciam. Contudo, é preciso recuar a 2008 para percebermos o contexto desta história.
No final de 2008, quando a crise do subprime nos Estados Unidos já tinha provocado a queda do Lehman Brothers e de outros bancos, o Governo de José Sócrates estava a preparar-se para as legislativas de setembro de 2009, onde ia lutar pela renovação da maioria absoluta. No centro da sua estratégia estava uma política de investimento público fortemente centrada nas obras públicas — de que eram exemplo as promessas da construção de um novo aeroporto internacional de Lisboa, da 3.ª travessia rodo-ferroviária do Tejo e de um novo pacote de PPP rodoviárias.
Os primeiros contactos com o Tribunal de Contas remontam ao final de 2008. Ainda antes do primeiro contrato, relacionado com a subconcessão Douro Interior, ter sido submetido a visto prévio da 1.ª Secção daquele tribunal no dia 28 de dezembro de 2008, foram combinadas as primeiras reuniões entre a liderança do tribunal e representantes do Ministério das Obras Públicas e a EP. O Governo estava preocupado com os vistos prévios do Tribunal de Contas, o que se percebia devido à pressão de José Sócrates sobre o secretário de Estado Paulo Campos. “Havia uma pressão sistemática para a adjudicação de mais e mais obra. A posição do primeiro-ministro era essa. O sr. primeiro-ministro pressionava as estruturas políticas e o sr. secretário de Estado pressionava-me a mim”, reconheceu Almerindo Marques a 22 de março de 2013 durante uma inquirição na Comissão Parlamentar de Inquérito às PPP.
Logo no primeiro encontro, que terá ocorrido no final de 2008, Guilherme d’Oliveira Martins terá definido que José Tavares seria o interlocutor privilegiado do Governo para debater o tema dos vistos prévios dos contratos das subconcessões. Por isso mesmo, a missiva formal que Almerindo Marques e Gonçalo Reis (então n.º 2 da EP e hoje presidente da RTP) enviaram para o Tribunal de Contas começava assim: “Na sequência dos contactos mantidos com V.Exas. e dos esclarecimentos que nos foram prestados, que muito agradecemos, serve o presente para enviar o contrato de subconcessão celebrado entre a EP e a AENOR Douro – Estradas do Douro Interior”, lê-se na carta consultada pelo Observador no processo de visto prévio depositado nos arquivos do Tribunal de Contas.
O parecer de Marcelo Rebelo de Sousa
Os “contactos”, tal como a missiva explica, tinham uma razão de ser: a EP entendia que os contratos das subconcessões rodoviárias não estavam sujeitos a fiscalização do Tribunal de Contas. E porquê? Porque “a EP não terá qualquer encargo, seja a que título for, durante os primeiros cinco anos de vigência do mesmo” — logo, não estava ao abrigo da lei de organização e processo do tribunal. O adiar dos custos das novas PPP rodoviárias fazia com que o então provável Executivo do PS que iria sair das legislativas de 2009 não tivesse essa fatura no Orçamento de Estado durante o seu mandato até 2013.
Contudo, e à cautela, a EP enviou os contratos para o órgão fiscalizador das contas públicas. Era também esse o conselho de Guilherme d’Oliveira Martins e de José Tavares, segundo fontes da EP.
A concessionária pública nunca abandonou esse argumento. Tanto que a administração de Almerindo Marques solicitou mesmo um parecer ao jurisconsulto Marcelo Rebelo de Sousa em 2009, numa altura em que já decorriam os processos de visto prévio de quatro dos cinco contratos de subconcessões rodoviários que vieram a ser chumbados pelo Tribunal de Contas e quando já tinham ocorrido mais contactos entre José Tavares e o Governo de Sócrates e a EP.
Inquirido como testemunha em 2013, Almerindo Marques afirmou nos autos do caso das PPP que, além de Marcelo, também foram contratados pareceres a Sérvulo Correia, Mário Esteves de Oliveira e Eduardo Pais Ferreira. Tudo para que os juristas “se pronunciassem sobre a verificação da alteração das circunstâncias/caso de força maior” dos contratos das cinco subconcessões provocada pela crise financeira, lê-se no auto de inquirição consultado pelo Observador nos autos do caso das PPP.
Contudo, o parecer de Marcelo Rebelo de Sousa não foi sobre esse tema. Não só o próprio Presidente da República desmentiu ao Observador as declarações de Almerindo Marques, como os autos do processo de visto prévio da subconcessão do Douro Interior confirmam que Marcelo Rebelo de Sousa tem razão.
“É-nos solicitado parecer de direito acerca da existência de dever legal de a EP — Estradas de Portugal submeter a fiscalização prévia do Tribunal de Contas os contratos de subconcessão rodoviária que celebre. (…) É possível extrair a conclusão de que não existe dever legal de a EP submeter a fiscalização prévia do Tribunal de Contas os contratos de subconcessão rodoviária que celebre, a menos que envolvam financeiramente o Estado nos termos” da lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, lê-se no parecer emitido a 1 de junho.
Contactos com José Tavares aumentaram de intensidade ao longo de 2009
Os depoimentos dos ex-ministros Mário Lino, António Mendonça, Fernando Teixeira dos Santos e do ex-secretário de Estado Costa Pina nos autos das PPP, que ocorreram em 2013 na qualidade de testemunhas, indicam que os contactos com José Tavares só terão começado depois da recusa dos vistos por parte da 1.º Secção do Tribunal de Contas. Mas, na realidade, os contactos iniciaram-se no final de 2008 — um pouco antes dos contratos das subconcessões serem assinados e submetidos a visto prévio do Tribunal de Contas. O primeiro contrato foi precisamente o da subconcessão do Douro Interior, assinado a 25 de novembro de 2008.
Várias fontes do Governo Sócrates e da EP referem que os contactos com o conselheiro José Tavares foram aumentando de intensidade ao longo de 2009, muito por causa das dúvidas que os próprios serviços do tribunal iam colocando à EP. Os autos dos processos das subconcessões Douro Interior e Transmontana confirmam isso mesmo. A auditora coordenadora Ana Nunes enviou diversos pedidos de esclarecimentos para a EP em papel timbrado do “Tribunal de Contas – Direção Geral”, depois de os mesmos terem sido aprovados nas sessões diárias do visto.
Acresce que, de acordo com informação oficial do Tribunal de Contas, os autos dos processos de visto prévio das subconcessões do Douro Interior e da Transmontana foram abertos respetivamente a 29 de dezembro de 2008 e a 9 de janeiro de 2009 mas foram devolvidos à EP em cinco ocasiões, no caso do Douro Interior, e por quatro vezes, no caso da Transmontana.
De acordo com fontes do Governo Sócrates e da EP, os contactos que ocorreram nos primeiros seis meses de 2009 com José Tavares visaram, entre outros assuntos, a desistência do pedido de fiscalização prévia dos contratos de subconcessão.
Isso mesmo é confirmado por um conjunto de emails trocados entre o Ministério das Obras Públicas e a administração da Estradas de Portugal, a que o Observador teve acesso. Por exemplo, um email de 4 de junho de 2009 trocado entre Guilherme Dray, então chefe de gabinete de Mário Lino e futuro braço direito de José Sócrates em São Bento, e o gabinete de Paulo Campos. No referido email, Dray propunha a Carla Afonso Correia, “na sequência de contactos com o TC [Tribunal de Contas], a “remessa pela EP de uma carta” na qual a administração liderada por Almerindo Marques devia requerer “a desistência do pedido de fiscalização prévia dos contratos relativos às concessões rodoviárias do Litoral Oeste, Auto-Estrada Transmontana, Baixo Tejo, Douro Interior e Baixo Alentejo”.
Segundo os autos dos processos de visto prévio do Tribunal de Contas, consultados pelo Observador, esta missiva oficial foi efetivamente enviada pela EP a 5 de junho de 2009 para José Tavares, enquanto diretor-geral do tribunal. A 26 de junho de 2009, a empresa reforçou tal pedido de desistência com nova missiva para Tavares onde volta a afirmar “que não está sujeita à jurisdição do Tribunal de Contas no âmbito das suas competências de fiscalização prévia” por a EP não ser financiada, direta ou indiretamente, por receitas provenientes do Orçamento de Estado. A empresa juntou nessa missiva os pareceres de Marcelo Rebelo de Sousa e de Mário Esteves de Oliveira.
Em sessão diária de visto, o requerimento de desistência da EP é indeferido pela 1.ª secção — que assegura que a EP “está sujeita à fiscalização prévia do Tribunal de Contas”. E a empresa pública é obrigada a submeter os contratos novamente a 16 de julho de 2009.
Segundo fontes da EP, Almerindo Marques estava cada vez mais insatisfeito com José Tavares. Muito porque as reuniões e os sucessivos pedidos de informação não levavam a lado nenhum. Até os despedimentos formais das missivas endereçadas pelo líder da EP para o diretor-geral do Tribunal de Contas mudaram de “melhores cumprimentos pessoais” para “melhores cumprimentos respeitosos”.
O milagre para o visto: a reformulação dos contratos
O PS de José Sócrates já estava em fase de pré-campanha eleitoral no verão de 2009. A pressão do Governo sobre a EP era elevada e os contactos sucediam-se. Foi precisamente em julho que surgiu a ideia de reformular os contratos. Ou seja, dar uns passos atrás nos procedimentos contratuais e regressar à primeira fase para refazer as propostas. Os concorrentes, contudo, teriam de concordar.
De acordo com fontes do Governo de Sócrates e da EP, a ideia da reformulação dos contratos terá partido de José Tavares — o que foi confirmado por Carlos Costa Pina nas declarações que fez à Polícia Judiciária a 21 de maio de 2013 mas noutro contexto, como já veremos mais à frente. Em declarações ao Observador, José Tavares volta a desmentir peremptoriamente que tenha dado qualquer sugestão nesse sentido.
Certo é que a EP anunciou novo pedido de desistência do pedido de fiscalização prévia a 26 de julho de 2009 em nova carta de Almerindo Marques para o então diretor-geral do Tribunal de Contas já com a reformulação dos contratos em mente. “Ao longo do processo, (…) fomos cimentando a ideia de que deveríamos diligenciar no sentido da reformulação desse contrato, com vista a procurar ir ao encontro das dúvidas suscitadas por V.Exas.”, lê-se na carta da EP.
Com as dificuldades em concretizar tamanha tarefa de renegociar os concursos de cinco subconcessões, e com as eleições legislativas de 27 de setembro de 2009 como pano de fundo, a EP veio a solicitar a 9 de setembro nova prorrogação do prazo para apresentar os novos contratos. O que só aconteceu em 2010.
Pelo meio, e depois de José Sócrates ter tido uma vitória amarga nas legislativas de 27 de setembro com a perda da maioria absoluta, a EP veio a propor a 30 de outubro que fossem “constituídos novos processos de fiscalização prévia” para apreciar os cinco novos contratos.
A abordagem de Oliveira Martins na tomada de posse
Com a tomada de posse do segundo Governo de José Sócrates, no dia 26 de outubro de 2009, surge um dado novo: é o próprio Guilherme d’Oliveira Martins que vai falar do problema dos vistos prévios das concessões rodoviárias ao sucessor de Mário Lino como ministro das Obras Públicas.
Inquirido a 2 de maio de 2013 na Polícia Judiciária (PJ), António Mendonça revelou que “logo no dia da sua tomada de posse foi abordado informalmente pelo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, o qual o informou que havia ‘um pequeno problema para resolver’ no que dizia respeito às subconcessões. ‘Uma coisa simples'”, terá enfatizado Oliveira Martins.
Um ano antes da inquirição, António Mendonça já tinha assumido no seu círculo de amigos que Guilherme d’Oliveira Martins lhe tinha dito que a solução para o problema passava por um despacho conjunto do então ministro das Obras Públicas com o ministro das Finanças. Tal despacho devia referir que, assim que as condições financeiras melhorassem, seria feito o refinanciamento das subconcessões rodoviárias. Era essa a forma de resolver “as coisas”.
Convicto de que tal seria a solução para o problema dos vistos prévios, Mendonça contactou imediatamente Fernando Teixeira dos Santos. E o referido despacho do ministro com a tutela técnica da EP (António Mendonça) e do ministro com a tutela financeira (Fernando Teixeira dos Santos) foi emitido a 3 de novembro de 2009 e enviado pela EP para o Tribunal de Contas no dia seguinte. As suas determinações são claras:
- “A EP, logo que as condições dos mercados financeiros o permitam e nos termos das subconcessões”, desencadeará “um ou mais refinanciamentos daquelas, partilhando os respeitos benefícios”;
- “O presente despacho produz efeitos imediatos”, lê-se no documento que o Observador consultou nos autos dos processos de visto prévio das subconcessões Douro Interior e Transmontana.
Contudo, o despacho de nada serviu. Os juízes relatores da 1.ª Secção do Tribunal de Contas recusaram a 2 de novembro conceder o visto prévio aos contratos da Douro Interior e da Transmontana. Outros três chumbos dos restantes contratos verificaram-se a 17 e a 23 de novembro. Curiosidade: o juiz conselheiro relator que chumbou o contrato do Douro Interior chama-se João Figueiredo e tinha sido secretário de Estado da Administração Pública do primeiro Governo Sócrates.
Quando foi inquirido na Comissão Parlamentar de Inquérito às PPP rodoviárias a 19 de abril de 2013, Guilherme d’Oliveira Martins foi questionado pelo deputado Altino Bessa, do CDS, sobre a “assessoria jurídica” que o Tribunal de Contas prestou ao Governo de José Sócrates no âmbito dos contratos reformados, tendo respondido laconicamente e em tom irritado: “É falso!”. (Pode ver o vídeo da audição aqui)
Confrontado pelo Observador com estas as declarações de António Mendonça, Guilherme d’Oliveira Martins limitou-se a dizer duas coisas. Primeira: “Não intervim nesses processos”. Segunda: “Só o acórdão do Tribunal de Contas é relevante.”
A proximidade do Tribunal de Contas com o Governo Sócrates
A crise financeira dos Estados Unidos acabou por contagiar a Europa em 2009, o que provocou uma subida muito significativa dos juros e a alteração das propostas apresentadas pelos consórcios que participaram nos concursos das subconcessões. Estando em causa uma PPP, o investimento deveria ser feito pelos privados — que, por sua vez, se financiavam nos mercados financeiros. Subindo os juros, os concorrentes tiveram de subir igualmente a sua proposta da 1.ª fase para a 2.ª fase — o que contrariava expressamente a lei.
Entre outras, esta foi a razão fundamental que esteve na origem dos chumbos da 1.ª Secção — que não atenderam aos argumentos de alteração de circunstâncias do mercado financeiro.
Inquirido em 21 de maio de 2013 pela Polícia Judiciária (PJ), Carlos Costa Pina, secretário de Estado do Tesouro do Governo Sócrates, afirmou que, após os chumbos aos contratos, José Tavares foi indicado por Guilherme d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas, como o “interlocutor preferencial” com “o objetivo de ajudar a EP a encontrar uma solução técnica que ultrapassasse o entrave que representava a recusa de visto.”
José Tavares foi afastado por Vitor Caldeira do cargo que ocupava há 25 anos
Costa Pina referiu-se ainda a reuniões no Ministério das Finanças e no Tribunal de Contas. Das mesmas retiraram-se duas soluções que terão sido avançadas por José Tavares:
- “O recurso da decisão de recusa de visto”, afirmou o atual administrador da Galp.
- “A outra solução possível era a reforma do processo, uma solução que à semelhança da solução acima indicada, foi aventada pelo Tribunal de Contas, na pessoa do conselheiro José Tavares”, disse Costa Pina.
Foi precisamente a reforma dos contratos que foi escolhida e permitiu aos juízes conselheiros da 1.ª Secção darem o visto aos cinco contratos das PPP rodoviárias durante 2010. António Mendonça confirmou igualmente à PJ que a hipótese de reforma dos contratos surgiu em reuniões com o Tribunal de Contas e que foi avante através da “EP, em ligação com o Tribunal de Contas”.
A proximidade da liderança de Guilherme d’Oliveira Martins e de José Tavares ao Governo Sócrates é algo que chegou a ser discutido entre Paulo Campos e José Sócrates. Em setembro de 2012, pouco depois de uma operação de buscas judiciais do caso das PPP que foi noticiada pela comunicação social, Campos e Sócrates concordaram que o Governo de então só fez aquilo que o Tribunal de Contas mandou fazer ao mais alto nível. António Mendonça enfatizava na mesma altura aos seus amigos que tudo tinha sido feito de acordo com o que o José Tavares tinha aconselhado.
Os contratos que terão sido enviados para José Tavares
Mário Lino foi ainda mais longe do que Costa Pina nas suas declarações à Polícia Judiciária. Depois de ter indagado junto de Guilherme d’Oliveira Martins (sem sucesso, refira-se) se poderia falar diretamente com os juízes conselheiros do Tribunal de Contas, o ex-ministro das Obras Públicas assegurou às inspetoras Nádia Couto e Ana Matias a 8 de maio de 2013 que o “presidente do Tribunal de Contas disse que depois de [o Governo e a EP] mandarem os contratos reformados o José Tavares, secretário geral do Tribunal de Contas, que conhecia os critérios de avaliação deste Tribunal, poderia opinar sobre se as alterações feitas estariam conformes com as exigências dos juízes”.
Almerindo Marques também afirmou na Comissão Parlamentar de Inquérito às PPP a 22 de março de 2013 (pode ver o vídeo da audição aqui) que quem fez os novos contratos que viriam a ser apresentados ao Tribunal de Contas para contornar o chumbo de 2009 foram os serviços da empresa que então liderava. “Havia de facto um caminho a percorrer, havia procedimento a adotar e, para isso, sempre que necessário, o sr. dr. Tavares dava indicações: ‘A abordagem é fazer isto…’. Almerindo acrescentou ainda: “É verdade que a solução foi encontrada dentro do próprio poder fiscalizador, o Tribunal de Contas, a pedido dos membros do Governo [Sócrates].”
Fontes da EP garantem que José Tavares não só corrigia os documentos que recebia do Governo e da EP, como aconselhava diretamente como deveria ser a redação jurídica e formal dos mesmos.
Também em 2013, Almerindo Marques acrescentou à PJ nos autos do caso das PPP que recebeu “instruções do secretário de Estado Paulo Campos ao modo como a EP deveria proceder”, sendo que lhe chegaram “às mãos vários textos orientadores, contendo as soluções técnicas que vieram a ser plasmadas nos contratos reformados, remetidos pelo Tribunal de Contas, com expressas instruções de destruição após leitura.” Almerindo Marques não disse à PJ quem tinha enviado os textos que tinha de destruir.
Documentação a que o Observador teve acesso também confirma as declarações de Mário Lino e de Almerindo Marques. De acordo com um email enviado por Ana Sofia Tomaz, então assessora de Paulo Campos e futura administradora da EP, para Almerindo Marques a 28 de dezembro, José Tavares terá alegadamente recebido o contrato reformado da concessão do Douro Interior e o anexo com os pagamentos a que o contrato obrigava para validação jurídica. “Junto envio documentos que foram concluídos na passada 4.ª feira para o DI [Douro Interior] e remetidos ao juiz conselheiro José Tavares. Agradeço que o dr. Moreira da Silva [advogado da EP] prepare/atualize com base nestes, os mesmos elementos para as restantes concessões”, lê-se no email.
O contrato reformado do Douro Interior só deu entrada formal no Tribunal de Contas no dia 25 de janeiro de 2010 — isto depois de a própria EP, como descrito acima, ter proposto a 30 de outubro de 2009 ao Tribunal de Contas a abertura de “novos processos de fiscalização prévia” para apreciar os cinco contratos reformados.
De acordo com fontes da EP, o advogado José Moreira da Silva, antigo colega de faculdade de José Tavares, terá ido igualmente ao Tribunal de Contas entregar regularmente documentação em mão ao juiz conselheiro para ser validada.
José Tavares: “Poupamos milhões ao Estado. Voltaria a fazer o mesmo”
Toda estas afirmações colocam em causa o depoimento escrito que José Tavares enviou para o Ministério Público no final de 2019 e que o Observador revelou a 9 de outubro. O atual presidente do Tribunal de Contas afirmou que apenas foi “solicitado a cooperar no sentido de informar sobre jurisprudência do tribunal em casos semelhantes”, tendo acrescentado que o “tribunal não dá indicações às entidades sob sua jurisdição” e que ele próprio nunca discutiu com o Governo “as decisões do tribunal”. José Tavares afirmou ainda o seguinte: “Desconheço totalmente o conteúdo quer dos contratos iniciais, quer dos contratos alterados, para além do que resulta das decisões do tribunal.”
Em resposta às questões do Observador, o conselheiro José Tavares diz que mantém todas as respostas que fez ao Ministério Público, rejeita veementemente os termos das declarações de Mário Lino, António Mendonça e Carlos Costa e nega qualquer contradição ou que tenha violado a lei de organização e processo do Tribunal de Contas.
Para o atual presidente do Tribunal de Contas, “os gestores e demais responsáveis públicos merecem, à partida, a nossa confiança e a consideração de que estão a prosseguir o interesse público”. E acrescenta: “Nessa medida e para ajudar à melhor prossecução do interesse público têm toda a nossa colaboração possível, em cumprimento do citado artigo 11° da Lei 98/97”.
Foi precisamente nesse contexto de cooperação institucional, diz, que ocorreram reuniões e esclarecimentos ao ministérios das Finanças e das Obras Públicas e à EP. “São procedimentos frequentes, que, na minha vida como diretor-geral do Tribunal de Contas, totalizam centenas de ações de cooperação, com claros benefícios para o interesse público.”
José Tavares deixa bem claro que, enquanto diretor-geral do tribunal, nunca interveio “nos processos de fiscalização, nem os conhece, nem, muito menos, interage com os juízes conselheiros que decidem”. Referindo-se a reuniões com qualquer responsável político ou público, afirma, na resposta enviada ao Observador: “Dizemos sempre, no início da reunião, que as nossas opiniões não vinculam a qualquer título o Tribunal de Contas e que não há qualquer contacto com os conselheiros ou com o Ministério Público junto do tribunal“.
No que diz respeito aos casos de recusa de visto, esclarece: “A nossa resposta é sempre a mesma e muito simples: é necessário reformar os atos e contratos no sentido de expurgar as ilegalidades apontadas nos acórdãos. E, se houver jurisprudência, informamos em conformidade”.
No que diz respeito às declarações dos membros do Governo Sócrates que asseguram que receberam consultoria jurídica da parte de José Tavares, bem como sobre os indícios de que terá recebido o contrato reformado do Douro Interior para validar juridicamente o mesmo, o ex-diretor-geral rejeita veementemente as mesmas imputações. “Apenas conheço os acórdãos que são públicos e o relatório de auditoria que é publico”, afirma.
E insiste: “As nossas opiniões/esclarecimentos são, pois, meramente informativas e nunca são do conhecimento de quem decide. Ou seja, dos conselheiros da secção respetiva, sendo as decisões da Administração da sua inteira responsabilidade, como legalmente compete. Até hoje, em centenas de responsáveis que recebi, nunca alguém tentou pedir-me o que não devesse”.
“Não tenho dúvidas de que, com estas nossas ações, fizemos poupar ao Estado e outras entidades públicas milhões de euros. Termino, dizendo que hoje faria exatamente o mesmo, ou seja, participaria nessas ou noutras ações, com o mesmo objetivo”, conclui José Tavares.