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José Veiga não é o único acusado de corrupção ativa de Rui Rangel. O empresário Ruy Moura e o advogado José Santos Martins, igualmente alegado testa-de-ferro de Rangel, também foram acusados de terem corrompido o ex-juiz e a sua mulher Fátima Galante, ex-desembargadora da Relação de Lisboa que foi reformada compulsivamente pelo Conselho Superior da Magistratura.
Galante, que já tinha tido sido acusada de um crime de corrupção em 1997 no célebre caso Patuleia, volta a ser acusada, desta vez em regime de co-autoria com o marido Rui Rangel, de ter alegadamente “vendido” uma decisão judicial concreta. Enquanto nos anos 90 estava em causa uma alegada contrapartida de 10 mil contos (cerca de 50 mil euros), imputação da qual acabou absolvida numa decisão polémica da Relação de Lisboa, desta vez a suspeita é a de que terá recebido 100 mil euros em numerário nas contas que partilhava com Rui Rangel.
Pelo meio, o empresário Ruy Guerra tornou-se sócio de uma empresa de construção que tinha Rangel e Galante como sócios ocultos, e o pai da juíza aposentada como administrador, e ajudou a salvar a empresa de uma falência inevitável com mais de 335 mil euros, de acordo com o despacho de acusação a que o Observador teve acesso.
Caso Patuleia. A primeira vez que Fátima Galante foi investigada por corrupção
Fátima Galante é ainda acusada de ter escrito centenas de acórdãos de Rui Rangel, tendo sido mesmo a verdadeira autora não só do acórdão que deu a única vitória a José Sócrates na Operação Marquês, como também do acórdão que reduziu a pena de prisão efetiva de Duarte Lima de 10 para seis anos de prisão no chamado caso Homeland/BPN.
O salvador da empresa de Rangel e Galante
Uma das acusações mais surpreendentes do Ministério Público (MP) na Operação Lex prende-se com uma atividade empresarial oculta que Rui Rangel e a sua mulher Fátima Galante tinham, com a ajuda do advogado José Santos Martins, enquanto alegados verdadeiros sócios de diversas sociedades comerciais.
Uma delas chama-se Clavinvest e tinha a promoção imobiliária como objeto de negócio. Fundada em 2001 e hoje sob administração judicial devido a dificuldades financeiras (nunca deu lucro e recorreu constantemente ao crédito bancário), a sociedade tinha José Pinto Galante, pai de Fátima Galante, como administrador de nome, sendo o verdadeiro gestor o advogado José Santos Martins. Terá sido este, tido pelo MP como o alegado testa-de-ferro de Rui Rangel, quem acabou por trazer o empresário Ruy Moura para a Clavinvest, da qual Moura se tornou administrador único a partir de 2005.
Moura e Santos Martins tinham papéis claros na sociedade: o primeiro, que tinha facilidade em obter crédito bancário, ficou com a área comercial, enquanto o segundo ficou com a área jurídica. Foi Ruy Moura quem conseguiu salvar a empresa da bancarrota ao transferir um total de cerca de 335 mil euros entre 2008 e 2012 para saldar as diversas dívidas bancárias e de outra natureza que a Clavinvest foi acumulando ao longo do tempo.
Ruy Moura, contudo, tinha outras sociedades de construção e de promoção imobiliária. E foi uma delas (Valormor – Investimentos Imobiliários, Comércio e Serviços Lda) que levou a um conflito judicial com a empresa Argomaniz. Esta acusava a sociedade de Moura de ter tomado posse de forma ilegal do Hotel da Vila, em Cascais, e conseguiu ganhar uma ação cível na primeira instância a 28 de fevereiro de 2014. A Valormor não se ficou e recorreu para a Relação de Lisboa. E é aqui que entram em cena Rui Rangel e Fátima Galante — que, segundo o MP, eram os seus sócios ocultos da Clarinvest.
“Alô Presidente, Alô Presidente”
O recurso da Valormor e de Ruy Moura deu entrada na Relação de Lisboa no final de 2014 e tinha como autor o advogado José Santos Martins — que, nesta história concreta, assume o triplo papel de defensor de Ruy Moura, advogado de Fátima Galante e alegado testa-de-ferro de Rui Rangel.
A 19 de janeiro de 2015, um dia antes de a distribuição ser realizada, Rui Rangel envia um sms às 18h16m para Luís Vaz das Neves, então presidente do Tribunal da Relação de Lisboa:
“Boa tarde Luís Grande Presidente
Já lá está. É para amanhã. Por favor não te esqueças.
Abraço”
O assunto não está explícito no texto da comunicação telefónica mas o MP acredita ter prova indiciária segundo a qual Rangel estava a referir-se ao sorteio que seria realizado no dia seguinte. Ou seja, e tal como aconteceu com outros processos em que Rui Rangel tinha interesse, o então desembargador pretendia que Vaz das Neves impedisse o sorteio eletrónico (que assegura a aleatoriedade da decisão em nome do princípio do juiz natural) e que, enquanto líder da Relação de Lisboa, chamasse a si a distribuição do recurso de Ruy Moura.
Sem ter recebido uma resposta, Rangel insistiu às 18h37 junto de Vaz das Neves, de quem era muito próximo como da sua mulher Dina Vaz Neves, igualmente desembargadora na Relação de Lisboa:
“Alô, alô Presidente”
Só passadas três horas Vaz das Neves respondeu apenas: “Abraço amigo. Luís”
No dia seguinte, a 20 de janeiro de 2015, os autos, de facto, não foram alvo de distribuição informática, como deviam ter sido (visto que dava entrada pela primeira vez na listagem de distribuição da Relação de Lisboa), tendo sido ordenada a distribuição à desembargadora Maria de Fátima Galante da 6.ª secção cível.
“Rui, afinal são 250 em vez de 200.”
Diz o MP que as contrapartidas financeiras que fundamentam a imputação de um crime de corrupção passiva iniciaram-se ainda antes de o recurso dar entrada na Relação de Lisboa. Com efeito, e de acordo com o despacho de acusação, José Santos Martins apresentou as alegações do recurso na primeira instância no dia 17 de março de 2014 e no mesmo dia foi efetuado um depósito em numerário de 30 mil euros na conta de Fátima Galante e do seu filho João Rangel (filho que nasceu da relação de Galante com Rui Rangel) no BCP. Foram 40 notas de 50 euros e 1400 notas de 20 euros aquelas que foram depositadas. Galante, diz o MP, “teve o cuidado de informar Rui Rangel da entrada deste valor na referida conta bancária”.
Com esse montante, Galante pagou dívidas de um cartão de crédito e de empréstimos associados a contas de Rui Rangel (cerca de 16 mil euros) e transferiu cerca de 10 mil euros para uma conta sua e do seu filho.
Certo é que, depois de o processo lhe ter sido distribuído, Fátima Galante admitiu o recurso em junho de 2015 e notificou José Santos Martins do mesmo a 23 de junho. Mas a Argomaniz, a empresa que tinha colocado Ruy Moura em tribunal e tinha ganho em primeira instância, apenas foi notificada em novembro.
Ainda a 28 de outubro de 2014, Bernardo Santos Martins, filho do advogado e alegado testa-de-ferro de Rangel, envia a Ruy Moura o número da conta bancária do então desembargador (e que tinha Fátima Galante como procuradora) por sms. Minutos depois, uma segunda mensagem do filho de Santos Martins para o mesmo empresário, que a acusação relaciona com os depósitos em numerário de que beneficiaram Galante e Rangel: “Rui, afinal são 250 em vez de 200.”
Entre novembro e dezembro de 2014, aquela conta e outras de Fátima Galante e de Rui Rangel receberam cerca de 9.195 euros em ‘dinheiro vivo’, sendo que alguns talões desses depósitos foram enviados em novembro através de email por José Santos Martins para Fátima Galante.
Ao longo de 2015, continuaram os depósitos em numerário nas contas de Rui Rangel e de Fátima Galante, num total de 56 mil euros.
A “incompatibilidade ética” de Fátima Galante e a decisão esperada
Desse montante de 56 mil euros, uma parte (cerca de 20 mil euros) foi depositada entre janeiro e agosto de 2015. Um período em que foram tomadas decisões fundamentais por parte de Fátima Galante enquanto relatora do recurso de Ruy Moura e da sua sociedade.
Por exemplo, Galante admitiu o recurso mal lhe foi distribuído por alegadas ordens de Luís Vaz das Neves e a 14 de junho de 2015 inscreveu a decisão em tabela. Cinco dias antes, a 9 de junho, José Santos Martins depositou 7.500 euros em ‘dinheiro vivo’ numa das contas que Rangel e Galante tinham no BCP.
O MP acusa Fátima Galante de ter violado não só a lei, como a ética e a prática deontológica que o Estatuto dos Magistrados Judiciais impõe a qualquer juiz. E porquê? Porque Fátima Galante devia ter pedido “dispensa de intervir” numa causa em que intervinham as seguintes pessoas:
- José Santos Martins, além de advogado de Ruy Guerra, era igualmente defensor de Fátima Galante e do seu filho em diversos processos judiciais e contra-ordenacionais;
- A própria Fátima Galante não só recebia regularmente transferências financeiras de Santos Martins, como as solicitava – como aconteceu, entre muitas outras situações, a 26 e a 27 de novembro de 2014, para pagar uma prestação de um empréstimo na Caixa Geral de Depósitos.
- Ruy Moura era administrador de uma sociedade da qual, segundo o MP, Fátima Galante e Rui Rangel eram sócios ocultos.
Por isso mesmo, o MP acusa Fátima Galante de ter proferido sucessivos despachos e a decisão final “não obstante estar bem ciente de que estava comprometida com o apelante Ruy Carrera Moura e com o seu mandatário José Santos Martins. Os quais há largos anos que ocultavam a atividade comercial que Maria de Fátima Galante e Rui Rangel de forma indireta levavam a cabo, designadamente por intermédio da sociedade Clavinvest. Assim como ocultaram os rendimentos que daquela sociedade provinham e que eram usufruídos por aqueles magistrados.” Tudo isto foi ocultado por Fátima Galante dos dois juízes desembargadores com quem assinou o acórdão da Relação de Lisboa sobre o recurso da empresa de Ruy Moura. E tudo isto era do conhecimento de Rui Rangel — que, por isso mesmo, foi acusado do crime de corrupção passiva em regime de co-autoria com Galante.
E que decisão final foi tomada por Fátima Galante enquanto relatora? A 2 de julho de 2015, foi julgado procedente o recurso da Valormor. O acórdão de Galante contraria totalmente a sentença de 1.ª instância, ficando Ruy Guerra livre de ter restituir o Hotel da Vila.
A única vitória de José Sócrates e a “papinha toda” feita
Entre as várias centenas de acórdãos que foram feitos a meias entre Rui Rangel e Fátima Galante, uma prática já aqui descrita pelo Observador, encontram-se vários muito mediáticos. O principal é mesmo a única vitória que José Sócrates teve na Operação Marquês.
Entre os mais de 30 recursos apresentados pelos seus advogados João Araújo (recentemente falecido) e Pedro Delille, Sócrates só conseguiu vencer um relacionado com segredo de justiça dos autos. Rui Rangel foi o relator do acórdão em setembro de 2015. Sabe-se agora que Fátima Galante foi a autora desse acórdão.
“A 23 de setembro de 2015, Mária de Fátima Galante redigiu o acórdão para o processo 122/13.8 TELSB-Q.L1 [número dos autos da Operação Marquês acrescidos das últimas três letras que identificam o recurso de Sócrates que deu entrada na Relação de Lisboa] distribuído para relato a Rui Rangel”, lê-se no despacho de acusação.
Rui Rangel e Fátima Galante fizeram centenas de acórdãos a meias. Processos podem estar em risco
O mesmo aconteceu com um segundo incidente da Operação Marquês em 2017. Um novo recurso calhou por sorteio a Rui Rangel e o MP interpôs um incidente de recusa de juiz por entender que Rangel não era imparcial. Além de críticas públicas à prisão preventiva de Sócrates, (o que lhe valeu uma pena de multa disciplinar do Conselho Superior da Magistratura), o então desembargador tinha tido contactos com o ex-primeiro-ministro em setembro de 2014. Fátima Galante foi a autora da resposta de Rangel para o Supremo Tribunal de Justiça mas os conselheiros deram razão ao MP e impediram-no de decidir o recurso.
Outra colaboração relevante de Fátima Galante, a ghost writer de Rui Rangel, foi o acórdão que reduziu a pena de Duarte Lima por burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais de dez para seis anos. Aliás, todos os arguidos viram as penas reduzidas num acórdão que foi conhecido no dia das mentiras: 1 de abril.
Rangel justificou assim o pedido de ajuda à sua mulher — embora separados há muitos anos, ainda são formalmente casados — feito a 24 de março de 2016:
“Mami, Estou de rastos. Por favor envio-te para me ajudares a formatar o acórdão que eu não sei fazer no computador. Se não conseguires, vou pedir à minha escrivã. Já não posso ver esta merda. É demais. Não nos pagam para isto. 7 dias e noites a escrever sem parar. Obrigado. Beijinhos”.
Como em tantas outras vezes, Fátima Galante acedeu ao pedido e no mesmo dia reencaminhou o acórdão com uma retificação relacionada com pedido de indemnização cível que tinha sido interposto com a acusação.
O processo contra o Correio da Manhã e uma nova ajuda a Veiga
Luís Vaz das Neves, então presidente da Relação de Lisboa, acabou por ser acusado de corrupção passiva em regime de co-autoria com Rui Rangel, José Santos Martins e Otávio Correia (funcionário de Rangel na Relação) devido ao recurso de José Veiga no chamado caso João Vieira Pinto. Tal como o Observador já noticiou, o desembargador jubilado não terá recebido qualquer contrapartida de Veiga mas acabou por alegadamente o beneficiar ao impedir o sorteio eletrónico do recurso e ordenar a distribuição ao desembargador Rui Gonçalves (que veio a absolver o empresário) alegadamente em concertação com Rui Rangel — que terá recebido uma alegada contrapartida de cerca de 350 mil euros.
Mas essa não foi a única vez que Vaz das Neves terá alegadamente beneficiado Rui Rangel. Por exemplo, num recurso apresentado pelo próprio Rangel na Relação de Lisboa sobre uma decisão de primeira instância que absolveu o jornal Correio da Manhã de alegadamente ter difamado o agora ex-juiz, Vaz das Neves voltou a aceder a novo pedido de Rangel, enviando-lhe o seguinte sms a 9 de novembro de 2014 às 20h39m:
“Caro amigo Rangel, Estive na tua linda terra e acabo de aterrar no Rio em trânsito para São Paulo. Manda-me o nº. do processo para que possa pedir que não seja distr. Sem eu regressar. Abraço amigo”
Depois de Rangel ter respondido, Vaz das Neves impediu o sorteio eletrónico e distribuiu o recurso ao seu vice-presidente Orlando Nascimento — que veio a condenar o Correio da Manhã a pagar uma indemnização de 50 mil euros a Rui Rangel, a 17 de março de 2015. Nascimento, que se demitiu da liderança da Relação de Lisboa na sequência deste caso, não foi acusado na Operação Lex mas continua a ser investigado num novo processo.
O processo tributário de Veiga: Rangel resolve
Numa situação muito semelhante ao caso que esteve na origem da acusação contra Luís Filipe Viera pelo crime de recebimento indevido de vantagem, Rui Rangel também tentou ajudar José Veiga ‘a resolver’ um processo tributário.
Estavam em causa mais de 2,4 milhões de euros de impostos em falta (mais cerca de 500 mil euros em juros de mora) que o Fisco tinha liquidado adicionalmente a uma empresa de José Veiga. O antigo empresário de jogadores de futebol impugnou judicialmente essa decisão da administração tributária e ganhou em primeira instância. Contudo, a fazenda pública recorreu em outubro de 2012 para segunda instância mas o processo pouco se mexeu.
Em 2015, José Veiga queria entrar na banca nacional, como o Observador noticiou na altura. Com os bolsos carregados de petrodólares do Congo Brazzaville, facilmente conseguiu participação minoritária no Banco Carregosa mas, mais importante do que isso, queria comprar o Banco Internacional de Cabo Verde (BICV) ao Novo Banco. Na prática, Veiga já era o dono do banco pois detinha mais de 70% dos depósitos daquele banco onde as suas empresas congolesas tinham contas bancárias. Mas para comprar o BICV precisava de autorização e de uma declaração de idoneidade do Banco de Portugal — que nunca seria emitida enquanto decorresse aquele problema tributário. Daí a pressão sobre Rui Rangel para lhe resolver o problema.
MP diz que venda do ex-BES de Cabo Verde a Veiga é ilegal e Banco de Portugal anula contrato
Segundo o MP, Rui Rangel chegou a prometer-lhe que o “processo estaria resolvido” até ao final de 2015.
Diz o MP que Rui Rangel “visava obter novas vantagens pecuniárias provindas de José Veiga, nomeadamente o seu apoio financeiro na próxima campanha à presidência do Benfica e, nesta concreta ocasião, o apoio de Veiga junto de Luís Filipe Vieira que havia prometido a Rui Rangel um lugar na presidência da Assembleia Geral do Benfica, após uma aproximação recente entre os dois”.
Certo é que, além disso, entre 6 de agosto de 2012 e 25 de setembro de 2013, a conta de Bernardo Santos Martins (filho do alegado testa-de-ferro de Rangel) recebeu cerca de 250 mil euros das contas de José Veiga no BICV. Desse montante, cerca de 198 mil euros foram levantados em numerário (e depositados nas contas de Rangel, Fátima Galante, João Rangel e Rita Figueira) e o remanescente serviu para pagar despesas pessoais do ex-juiz desembargador, que foi expulso da magistratura em 2019.