Índice
Índice
O caso da procuradora T.T., que deixou prescrever de forma total ou parcial pelo menos 89 processos e acabou condenada pelos tribunais por vários crimes, é insólito. Pela responsabilidade da magistrada do Ministério Público, alvo de duras críticas na Relação de Lisboa, mas também pela censura que o Supremo Tribunal de Justiça fez dos serviços de inspeção do Ministério Público (MP), da hierarquia direta da procuradora e da forma como funciona o sistema de avaliação da magistratura do MP.
Os conselheiros que apreciaram um recurso da procuradora T.T. reduziram o tempo da pena suspensa pela prática dos crimes de falsificação de documento (praticada por funcionário), denegação de justiça e prevaricação.
Procuradora condenada por “inércia” que levou à prescrição de 89 processos
Mas falam em “incúria” dos serviços da inspeção do MP que não detetaram numa primeira fase a “falsificação grosseira” levada a cabo por T.T. e, sem desvalorizar a responsabilidade da magistrada, dizem que a hierarquia do MP na comarca de Lisboa Norte deram um “grande contributo” de “inércia e de displicência” para o resultado final da prescrição de 89 processos.
O Supremo decidiu não afastar a procuradora agora condenada do serviço no MP, face à sua recuperação e à análise positiva do trabalho após a sanção disciplinar cumprida. Aliás, a magistrada T.T. já cumpriu pena de inatividade de dois anos (dos quais terá cumprido apenas oito meses, devido a alterações no Estatuto do MP), logo não poderá ser sancionada novamente pelos mesmos factos do ponto de vista disciplinar.
Seja como for, o caso de um magistrado em exercício de funções após ter sido condenado a pena suspensa pela prática de crimes, não é caso único.
89 processos prescreveram entre 2009 e 2018
A história da magistrada foi avançada no final de dezembro de 2024 pelo Jornal de Notícias, que contou como T.T., de 46 anos, foi condenada inicialmente pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) a uma pena suspensa de cinco anos de prisão por falsificação de documento (praticada por funcionário), denegação de justiça e prevaricação.
De 2019 trazia já uma pena disciplinar de dois anos de inatividade aplicada pelo CSMP, pela qual terá cumprido apenas oito meses (240 dias), devido a alterações no Estatuto do MP.
Inconformada com a decisão da Relação de Lisboa, T.T. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, no passado dia 31 de outubro, deu razão parcial aos seus argumentos e reduziu a pena para dois anos e dois meses, suspensa por três anos. A magistrada alegou em sua defesa o enorme volume de trabalho na comarca de Lisboa Norte e um estado de depressão major/burnout que a fez perder o controlo dos processos e a levou a ter pensamentos suicidas.
Entre os 89 processos que prescreveram entre 2009 e 2018 encontravam-se casos associados a crimes de burla, sequestro, maus tratos a menores, violência doméstica, detenção ilegal de arma, ofensas à integridade física, etc.
[Já saiu o terceiro episódio de “A Caça ao Estripador de Lisboa”, o novo Podcast Plus do Observador que conta a conturbada investigação ao assassino em série que há 30 anos aterrorizou o país e desafiou a PJ. Uma história de pistas falsas, escutas surpreendentes e armadilhas perigosas. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]
STJ aceita parcialmente recurso e determina que procuradora continua ao serviço
Apesar da confirmação da condenação, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não afastar a procuradora do serviço do MP.
Para tal decisão pesou a apreciação positiva do trabalho da magistrada desde a medida disciplinar de que foi alvo e a sua recuperação ao nível da saúde mental, depois de ter sido acompanhada em consulta de psiquiatria entre março de 2018 e fevereiro de 2020.
“Tendo sido declarada extinta pelo cumprimento a sanção disciplinar de dois anos de inatividade, e sendo atualmente a arguida considerada por todos com quem trabalha como magistrada trabalhadora, empenhada, disponível e competente, a proibição do exercício de profissão, neste momento, não contribuiria para a sua reintegração social“, lê-se no acórdão do STJ, assinado pela juíza conselheira relatora Ana Barata Brito e pelos conselheiros adjuntos Maria do Carmo Silva Dias e José Luís Lopes da Mota — antigo procurador também ele alvo de uma suspensão disciplinar por 30 dias decidida do CSMP em 2009 por ter pressionado os procuradores do caso Freeport a arquivarem suspeitas contra José Sócrates.
Os argumentos que levaram o STJ a reduzir a pena
Os conselheiros valorizaram as declarações da procuradora em sede de audiência no TRL, no qual rejeitou ter falseado despachos de conclusão de processos e declarou ter sempre agido “norteada por um fito maior de dar provimento ao excessivo e desproporcional volume de trabalho”, numa comarca com um quadro de magistrados “inadequado e manifestamente insuficiente”.
A magistrada do MP expressou ainda arrependimento pela situação e garantiu que não deixou de trabalhar, tendo “menosprezado e prejudicado gravemente a sua saúde física e mental”. Acrescentou ainda que o trabalho que estava a seu cargo acabaria por ser posteriormente distribuído por outros cinco magistrados.
Para exemplificar a sua dedicação ao trabalho, lembrou inclusivamente um louvor que lhe foi atribuído em 2015 pela ex-ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, então procuradora-geral distrital de Lisboa, por ter antecipado o regresso ao trabalho na sequência do nascimento da sua segunda filha. “As declarações da arguida afiguram-se verosímeis, verdadeiras e sinceras quando afirma que jamais pretendeu beneficiar-se”, refere o acórdão a que o Observador teve acesso.
Embora a Relação de Lisboa tivesse reconhecido que a procuradora tinha violado os deveres funcionais de zelo, de diligência e de prossecução do interesse público na realização da Justiça, além de prejudicar vítimas e beneficiar arguidos, o STJ deixou também duras críticas à inspeção realizada em 2014 à procuradora.
Para os conselheiros, a falta de verificação de 87 processos assinados em poucos minutos do mesmo dia (sem qualquer despacho efetivo) revelou falta de “cuidado, atenção e rigor” da inspeção: “A incúria, a desatenção ou a ausência deliberada de consulta desses 87 processos só ao sr. inspetor serão imputáveis e não à arguida“.
Nesse sentido, o acórdão considerou não existir um nexo causal entre a má prática da magistrada e a nota de mérito (Bom com Distinção) alcançada na inspeção realizada em 2014, tendo em conta que “a falsificação dos processos é grosseira” e deveria ter sido detetada pela inspeção do MP.
Sem deixar de criticar a conduta da procuradora T.T., o STJ responsabilizou também a sua hierarquia na comarca de Lisboa Norte por não ter acompanhado devidamente a evolução dos autos a cargo da magistrada e por não encontrado soluções de apoio. “Não há explicação possível para o serviço do MP ter chegado ao ponto catastrófico a que chegou, em 2018, por responsabilidade direta da arguida, é certo, mas com o grande contributo da inércia e da displicência da hierarquia”, indicou o acórdão.
No final, acabou por absolver a procuradora de um dos crimes de falsificação pelo qual tinha sido condenada na Relação de Lisboa, tendo também alterado o enquadramento no crime de denegação de justiça e prevaricação, o que resultou na redução da pena aplicada para dois anos e dois meses, suspensa por três anos.
87 processos assinados em 39 minutos e outros 179 levados para casa
Um dos aspetos mais insólitos foi o número de inquéritos que a procuradora levou para a sua própria residência: nada mais, nada menos do que 179 processos, com datas compreendidas entre os anos de 2004 e 2014.
No entanto, não pediu autorização para isso à sua hierarquia ou ao tribunal e nem essa atitude significou que a maioria dos processos fossem despachados em tempo útil. Entre esses inquéritos, estavam 65 que prescreveram em datas compreendidas entre 2009 e 2018, sendo certo que alguns dos autos que a magistrada levou para casa terão alegadamente desaparecido.
“A arguida não veio a despachar tais processos até 10/05/2018, nem posteriormente, não informando o Tribunal e a hierarquia do Ministério Público da falta de tramitação desses inquéritos por longos períodos de tempo, nem da sua inércia processual, nem ainda da prescrição do procedimento criminal em, pelo menos, 65 desses inquéritos”, lê-se na decisão do STJ, que referencia ainda a existência de outros 336 processos no gabinete da magistrada do MP.
Paralelamente, no dia 8 de abril de 2014, entre as 16:00 e as 16:39, T.T. integrou a sua assinatura eletrónica na plataforma Citius em 87 processos, com vista à sua tramitação sem efetuar qualquer despacho. Nesse sentido, os conselheiros assinalaram os “factos falsos juridicamente relevantes” inseridos com um propósito de obter “benefício ilegítimo”.
E qual seria esse benefício? A classificação de mérito — Bom com Distinção — que veio a obter e que depois, na sequência de uma inspeção extraordinária, passaria em 2019 a Medíocre. “A arguida quis, e conseguiu, convencer a Inspeção [do MP] ao seu desempenho de uma realidade que não existia“, sintetizou o acórdão.
Com essa “estratégia“, como rotulou o STJ, a procuradora retirou-os do lote de pendentes que poderiam estar sujeitos à inspeção de que era alvo e que abrangeria o período entre abril de 2010 e abril de 2014. Já a 10 e 11 de abril, determinou aos funcionários para abrir conclusões, por ordem verbal, em 80 inquéritos com conclusão aberta anterior e assinatura eletrónica de 08/04/2014.
“Não é humanamente possível despachar 87 inquéritos num único dia, ademais com atrasos de vários anos, o que postulava o seu estudo prévio e detalhado, quer para eventuais despachos finais de arquivamento ou de acusação”, salientou o acórdão.
Um pedido de aceleração processual ocultado à PGR
As falhas da magistrada foram detetadas de forma quase acidental, em fevereiro de 2018, graças a uma reclamação do Banco Português de Investimento (BPI) e que abriram caminho a uma inspeção extraordinária, realizada pelo procurador Orlando Romano.
O trabalho minucioso de Orlando Romano viria a dar lugar a uma classificação de “Medíocre” e um inquérito disciplinar em abril de 2018 que visou a procuradora em causa,
Uma das falhas apuradas foi um pedido de aceleração processual que foi ocultado à Procuradoria-Geral da República (PGR), lê-se no acórdão do STJ. Nesse processo, verificou-se a prescrição do crime em dezembro de 2014 e a magistrada não proferiu despacho de arquivamento.
No entanto, quando a empresa ofendida apresentou um pedido de aceleração processual em julho de 2015, ignorando que já tinha prescrito o processo, a magistrada não admitiu o requerimento por essa empresa não ser ainda assistente no inquérito (embora já tivesse manifestado intenção de pedir indemnização).
A procuradora T.T. comunicou ainda em agosto de 2015 que o despacho de encerramento de inquérito seria dado após férias judiciais, quando sabia que “o conteúdo desse despacho não correspondia à verdade“.
“A arguida, com a sua atuação, quis impedir, e impediu, que o pedido de aceleração processual chegasse ao conhecimento de Sua. Exa. a Conselheira PGR, e com isso a eventual averiguação das razões que motivaram o pedido, ou seja, a ausência de tramitação do processo por parte da arguida durante três anos e sete meses e a, decorrente, extinção do procedimento criminal por prescrição”, referiu o acórdão.
Uma pena de inatividade de dois anos no processo disciplinar aplicada pelo CSMP
A procuradora T.T. viu o plenário do CSMP confirmar na reunião de 30 de abril de 2019 a uma pena de dois anos de inatividade. Ao que o Observador apurou, o inspetor que ficou com o inquérito chegou a sugerir a pena de aposentação compulsiva. Porém, T.T. requereu uma audiência pública no CSMP para a apresentar a sua defesa.
A magistrada do MP alegou, entre outras matérias, o quadro de depressão/burnout como explicação para o sucedido. Perante as informações de um trabalho positivo anterior na área de família e menores, o CSMP foi sensível aos argumentos e mudou a pena disciplinar para a inatividade de dois anos.
No entanto, não deixou de apontar a “extrema gravidade” dos factos praticados e as consequências na defesa dos direitos dos cidadãos ofendidos e da ação penal pelo Estado, além de uma “atitude displicente” e de “falta de brio profissional” da procuradora. E, por isso, refletiu no relatório disciplinar, consultado pelo Observador, a existência da possível prática de crimes, agora confirmados em definitivo pelo STJ.
“Deve ser evidenciada a existência de indícios da prática de infrações criminais em virtude de ter colocado datas em despachos que não correspondiam às datas (…) e ainda de terem sido apostas assinaturas eletrónicas em despachos inexistentes para movimentar ilegalmente os processos. Em ambas as situações existiu flagrante violação das regras legais”, lê-se no relatório disciplinar.
O Observador questionou a PGR se poderia haver consequências para a procuradora caso a condenação transite em julgado, deixando-a com cadastro criminal ao serviço do MP, mas não foi possível obter resposta até à conclusão deste artigo.