Esta sexta-feira foi dia de festa em Moscovo. A Rússia quis celebrar as anexações das quatro regiões ucranianas parcialmente ocupadas onde avançou com supostos referendos favoráveis. Para a ocasião, Vladimir Putin discursou perante uma plateia cheia de aliados no Kremlin. Depois das palavras do Presidente, houve um concerto que juntou os melhores artistas russos, discursos dos líderes pró-russos das regiões ucranianas e um clima de festa que queria provar que o país está unido na guerra contra a Ucrânia (e numa “guerra híbrida” contra o Ocidente).
No entanto, apenas uma hora após Vladimir Putin discursar, surgia o contra golpe ucraniano que anulava todo o impacto mediático das palavras de Putin e dos actos de Moscovo. As notícias terão sido um balde de água fria para o Kremlin. Sabia-se que os líderes ucranianos estavam numa reunião à porta fechada a tentar delinear os próximos passos das suas ações. E o primeiro a ser divulgado atingiu em cheio um dos principais pontos de discórdia entre Kiev e Moscovo: a NATO. O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciou, sem ninguém esperar, que a Ucrânia ia pedir a “adesão rápida” à Aliança Atlântica, algo de que tinha admitido desistir logo no na fase inicial da guerra.
Uma das principais justificações da Rússia para o início da invasão foi exatamente o perigo que o Kremlin alega existir com a potencial entrada da Ucrânia na NATO — e os riscos que isso comporta para a sua integridade territorial, que, aliás, foram mencionados no discurso desta sexta-feira de Vladimir Putin. O Ocidente quer um “mundo que viva sobre as suas regras”, disse o chefe de Estado russo, apontando o dedo aos Estados Unidos que, voltou a repetir, querem “dominar o mundo”.
“Os Estados Unidos instalam novas bases militares em todos os lugares, expandem a NATO… Qualquer pessoa que desafie a hegemonia do Ocidente é automaticamente proclamada como uma ‘inimiga'”, insistiu novamente esta sexta-feira Putin, afirmando que esta “dominação total” é a razão que acaba por minar “outros centros soberanos de desenvolvimento global”.
Além disso, o chefe de Estado da Rússia acusou o Ocidente de tentar destruir a Rússia. “Os líderes ocidentais disseram durante séculos que estavam a trazer liberdade e democracia ao mundo. É exatamente o oposto”, sublinhou Vladimir Putin, acrescentando que o Ocidente é um “parasita” cujo objetivo “é roubar o mundo inteiro”.
Apesar do tom mais duro dirigido ao Ocidente, Vladimir Putin abriu a porta a futuras negociações com a Ucrânia. “Apelamos ao regime de Kiev que termine imediatamente as hostilidades, termine a guerra que começou em 2014 e regresse à mesa de negociações.”
Este pedido não deverá, contudo, materializar-se tão cedo. Primeiro, porque o chefe de Estado da Ucrânia garantiu que não vai falar com a Rússia enquanto Vladimir Putin estiver à frente do país; segundo, por causa da NATO. Com a adesão rápida à Aliança Atlântica e ao recusar a paz, Voldoymyr Zelensky consegue encurralar o seu homólogo russo.
Ao aderir à NATO, o perigo que Vladimir Putin alegou para o início da invasão russa permanece agora mais ativo que nunca — e retirar as tropas da Ucrânia seria encarado como uma contradição e até como uma derrota internamente. A argumentação do Presidente russo seria deitada por terra, obrigando-o a reagir. Por outro lado, ao rejeitar um cessar-fogo, Kiev também dá mais força ao facto de não legitimar a anexação de Kherson, Zaporíjia, Donetsk e Lugansk — e consegue reforçar o quão urgente e importante é o apoio do Ocidente.
⚡️Zelensky about applying for NATO membership:
"We are de facto allies already," he said. "De facto, we have already proven compatibility with Alliance standards."
"Ukraine is applying to confirm it de jure," Zelensky said, "by an expedited procedure."
????President's Office pic.twitter.com/HmWxvd8z3D
— The Kyiv Independent (@KyivIndependent) September 30, 2022
No discurso em que anunciava a adesão ao tratado da NATO, Volodymyr Zelensky destacou que estava a “tomar um passo decisivo para a segurança da comunidade das nações livres”. “Nós vemos quem nos ameaça. Quem está pronto para matar. Quem, para expandir a sua zona de controlo, não pára de fazer selvajarias”, afirmou o Presidente ucraniano, que também declarou que a “Rússia não pararia” na Ucrânia. “Outros Estados também estariam sob ataque, como os Estados Bálticos, a Polónia, a Moldávia, a Geórgia, o Cazaquistão…”
Numa mensagem destinada ao homólogo russo, Volodymyr Zelensky garantiu que “todo o território ucraniano será libertado do inimigo — o inimigo não só da Ucrânia, mas também da vida, da humanidade, do direito e da verdade”.
“A Rússia já sabe disso. Sente o nosso poder. Vê na Ucrânia a prova e a força dos valores. É por isso que está com pressa. Organiza esta farsa da anexação. Tenta roubar alguma coisa que não lhe pertence. Quer rescrever a História e redesenhar fronteiras com assassinatos, torturas, chantagens e mentira”, disse Volodymyr Zelensky.
Aos parceiros do Ocidente, o Presidente ucraniano lembrou que são “aliados”. “De facto, nós já completámos o nosso caminho para o NATO. De facto, nós já provámos que estamos de acordo as padrões da Aliança e que eles são reais para a Ucrânia — reais no campo de batalha e em todos os aspetos da nossa interação”, vincou Volodymyr Zelensky.
“A Ucrânia vai tentar que isso passe a de jure. Queremos uma adesão rápida à NATO”, reforçou o Presidente ucraniano, que disse que isso era “possível”. “Já vimos que a Finlândia e a Suécia começaram com o processo de adesão este ano sem um Plano de Ação”, lembrou. Volodymyr Zelensky adiantou também que a entrada de Kiev na aliança militar iria “desmantelar a influência da Rússia na Ucrânia, na Europa e no mundo”.
Como funciona a “adesão rápida” à NATO?
O Presidente ucraniano disse que a Finlândia e a Suécia também optaram pela “adesão rápida”. Os dois países nórdicos não terão de participar no “Plano de Ação”, um mecanismo que permite ajudar os países que não cumprem os requisitos necessários para entrar na Aliança a fazê-lo (neste momento, por exemplo, a Bósnia-Herzegovina está nesta fase). No entanto, no caso de Helsínquia e Estocolmo isso não é preciso, uma vez que não só já colaboravam com a NATO, como são duas democracias consideradas fortes com capacidades militares avançadas.
Espera-se que a Finlândia e a Suécia consigam aderir à NATO no início de 2023. No entanto, a sua entrada na aliança poderá até ser antecipada. Douglas Hickey, embaixador norte-americano em Helsínquia, prevê mesmo que as duas nações nórdicas se tornem Estados-membros do tratado militar “pelo Natal”, ou seja, seis meses depois da conferência de Madrid, em que os países oficializaram as candidaturas.
Na Ucrânia, o caso deverá ser diferente. Para um Estado entrar na NATO precisa, primeiro, de expressar a sua vontade em fazê-lo, algo que Kiev já manifestou múltiplas vezes. Mas a aliança transatlântica também tem outros requisitos, tais como “um sistema político democrático baseado numa economia de mercado”, o “tratamento justo das minorias”, “a habilidade e a vontade para realizar contribuições militares às operações da NATO”, o “compromisso para instituir relações democráticas entre a sociedade civil e os militares” e ainda o “compromisso para resolver conflitos pacificamente”.
É este critério, o de “resolver conflitos pacificamente”, que poderá ser um entrave à entrada do país na NATO, assim como o facto de os territórios que a Ucrânia reconhece como seus estarem parcialmente ocupados pela Rússia. Outro problema para a entrada de Kiev tem a ver com a necessidade de todos os 30 Estados-membros precisarem de estar de acordo e ratificar a decisão.
Ora, a Turquia obstaculizou a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO e não se sabe como é que o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, poderá reagir à entrada da Ucrânia, uma vez que tem tentado não hostilizar por completo Vladimir Putin. No entanto, caso houver vontade política, a adesão da Ucrânia na NATO poderá ser mesmo simplificada. Por exemplo, quando Ancara se recusou a concordar com a entrada de Helsínquia e Estocolmo na aliança militar, existiram inúmeros encontros entre os dirigentes suecos, finlandeses, turcos e da NATO, conseguindo-se alcançar um consenso.
O futuro dirá se a Ucrânia conseguirá entrar na NATO. Se assim for, decerto que não será um dia de festa para Moscovo.