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Não há simbolismo melhor: pouco antes de Kim Jong-Un se encontrar com Vladimir Putin no Cosmódromo de Vostochny, na Coreia do Norte eram disparados dois mísseis balísticos de curto alcance. Se dúvidas houvesse sobre o que líder norte-coreano pensa sobre as regras das Nações Unidas, a queda dos mísseis no mar do Japão diz tudo. Já na Rússia, pouco foi dito — pelo menos, em público — e será preciso esperar pelas fugas de informação (controladas pelo Kremlin) para se perceber o que ficou selado com o longo aperto de mão entre o Presidente russo e o Líder Supremo norte-coreano.
Certo é que, contra as “forças do mal” e o “imperialismo” (leia-se Estados Unidos), Kim ficará do lado da “guerra sagrada” conduzida por Moscovo. As relações com a Rússia, frisou Kim Jing-un no seu discurso feito ao lado do Presidente russo, “são a primeira prioridade”. Se podia ficar subentendido que o líder norte-coreano estava a oferecer militares a Putin para seguirem para a frente da batalha com a Ucrânia, o Kremlin pôs essa ideia de parte: não houve discussão sobre a possibilidade de envio de tropas norte-coreanas para a zona fronteiriça entre a Rússia e a Ucrânia.
Então, o que foi discutido à porta fechada entre os dois líderes? O acordo entre os dois países só aos dois países diz respeito, foi a resposta do porta-voz do Kremlin, quando os jornalistas pediram mais detalhes sobre as negociações, na ausência de um comunicado conjunto de Putin e Kim. Curiosamente, as palavras de Dmitri Peskov são quase ipsis verbis as de Mao Ning, a porta-voz da diplomacia chinesa, instada a comentar o encontro.
A China é um parceiro fundamental quer da Rússia, quer da Coreia do Norte e o ministro da Defesa russo já sugeriu exercícios militares tripartidos, como resposta à aliança EUA-Japão-Coreia do Sul.
Acabou por ser o próprio Presidente russo a revelar o que a Rússia está disposta a oferecer a Pyongyang: tecnologia para desenvolver um satélite espião, numa altura em que Kim prometeu um novo teste para outubro, depois de os dois últimos terem sido um fracasso.
“Foi por isso que viemos ao Cosmódromo de Vostochny”, respondeu Putin, questionado sobre se ajudará a Coreia do Norte a desenvolver satélites.
Numa intervenção anterior, nas primeiras horas de quarta-feira, o Presidente russo frisou que não há tabus: “Vamos falar sobre todos os assuntos, com calma. Temos tempo.”
Ainda segundo o Presidente russo, houve uma troca de opiniões muito franca sobre a situação no Extremo Oriente, a relação entre Rússia e Coreia do Norte e sobre possíveis formas de desenvolver relações no setor agrícola.
Mais sanções? “Nós, os chineses e os norte-coreanos, fomos enganados”
O desprezo pelas diretivas internacionais e pelas sanções impostas aos dois países foi algo que ficou claro durante esta quarta-feira, com Sergei Lavrov a dizer com todas as letras aquilo que Putin só disse pela metade.
“As sanções contra a Coreia do Norte foram adotadas numa situação geopolítica completamente diferente, quando havia problemas em estabelecer o diálogo (com Pyongyang), quando havia debates bastante sérios no Conselho de Segurança”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, um dos membros da comitiva russa. Nas entrelinhas lê-se que, na opinião de Lavrov, os debates sérios desapareceram do Conselho de Segurança. E que, por isso, também o próprio Conselho de Segurança é encarado em Moscovo como um organismo cada vez menos influente na hora de a Rússia tomar decisões sobre o seu posicionamento geopolítico.
Além disso, o chefe da diplomacia russa acusou o Ocidente de ter feito uma falsa promessa ao dizer que trataria dos problemas humanitários da Coreia do Norte. “Essa foi outra mentira. Nós, os chineses e os norte-coreanos, fomos enganados”, disse Lavrov, argumentando que foi isso que levou Moscovo e Pequim a bloquear, em 2022, novas resoluções do Conselho de Segurança para sancionar Pyonyang.
Num outro momento, questionado sobre se a Rússia iria fornecer armas à Coreia do Norte (ou vice-versa), Lavrov fugiu à questão. Disse apenas que o Ocidente violou “obrigações contratuais” ao fornecer armamento soviético à Ucrânia — uma referência aos países que faziam parte do Pacto de Varsóvia e agora pertencem à NATO, como a Polónia —, armas que não podiam ter sido passadas a terceiros sem a autorização de Moscovo.
Ou seja, para Lavrov, a má-fé é do Ocidente e não da Rússia e dos seus aliados.
Dos dumplings de caranguejo ao entrecosto com vegetais: a ementa do jantar entre Putin e Kim Jong-un
Mais subtil foi Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, que também foi questionado sobre a troca de armamento, o objetivo principal do encontro de Kim e Putin, segundo os serviços secretos norte-americanos. “A Rússia mantém a sua posição nas Nações Unidas e no Conselho de Segurança. Mas isto não pode, não deve e não será um obstáculo a um maior desenvolvimento das relações entre a Rússia e a Coreia do Norte.”
Sobre o mesmo assunto, Vladimir Putin lembrou que há “algumas restrições” à cooperação militar entre os dois países, e que a Rússia “cumpre essas restrições”, embora haja assuntos sobre os quais “se pode conversar, discutir e pensar”.
A resposta à dúvida sobre o que foi discutido pode estar na comitiva norte-coreana
A lista dos interesses norte-coreanos para “reagir à hostilidade dos EUA” é longa: Kim Jong-un quer garantir que o seu país tem um satélite espião operacional até 2026, um submarino nuclear, um míssil com várias ogivas, um míssil balístico intercontinental de propulsão sólida e um míssil hipersónico.
No entanto, os testes não têm corrido da melhor forma e a ajuda russa — que domina todas estas áreas — seria muito bem recebida. Em troca, segundo os mesmos serviços de informações norte-americanos, a Coreia do Norte entregará munição à Rússia para ser usada na guerra contra a Ucrânia.
Olhando para o grupo de pessoas que acompanhou Kim à Rússia, uma análise feita pelo jornal sul-coreano Korea Herald, parece óbvio que regressar à Coreia com tecnologia para desenvolver um satélite espião é a principal prioridade.
Pak Thae-song, um importante funcionário norte-coreano que se dedica ao desenvolvimento de um satélite espião, assim como Kim Myong-sik, responsável pelo desenvolvimento de um submarino tático com armas nucleares, estiveram no Cosmódromo de Vostochny.
Além disso, escreve o Korea Herald, duas figuras-chave que lideram o desenvolvimento de mísseis balísticos intercontinentais e satélites artificiais na Coreia do Norte (Jang Chan-ha e Kim Jong-sik) também acompanharam o Líder Supremo.
Análise política: sul-coreanos muito atentos ao que foi dito
“A Coreia do Sul é o país que mais perde com o estreitamento das relações entre a Coreia do Norte e a Rússia”, explicou o professor de relações internacionais Ramon Pacheco Pardo ao Observador. Se Pyongyang desenvolver ainda mais os seus programas de mísseis e nuclear, estes constituem uma ameaça para Seul.
Assim, o encontro foi seguido com atenção a partir da capital sul-coreana. A Coreia do Sul, recorda Pacheco Pardo, especialista em assuntos coreanos e professor da King’s College London, tem sido um dos poucos países fora da NATO a dar todo o seu apoio à Ucrânia, o que poderá trazer “consequências negativas para a sua própria segurança.”
Para Nam Sung-wook, da Universidade da Coreia, o encontro entre Kim e Putin funciona quase como uma afronta direta aos Estados Unidos.
“Ambos estão a passar a mensagem de que estão prontos para prosseguir com a sua cimeira, desconsiderando os avisos e objeções dos EUA e da comunidade internacional. A Coreia do Norte e a Rússia estão a sinalizar a sua intenção de ignorar as sanções do Conselho de Segurança da ONU e traçar o seu próprio caminho”, disse o professor ao Korea Herald.
Um helicóptero, 50 guarda-costas e lagostas vivas. O que se passa dentro do comboio de Kim Jong-un?
Nam Sung-wook fala ainda do simbolismo do lançamento de mísseis: “A Coreia do Norte está a transmitir a sua determinação”, defende. “Isto serve como mensagem simbólica, destacando a disponibilidade do país para se envolver plenamente com a Rússia, ao mesmo tempo que demonstra indiferença a quaisquer tentativas de interferência ou contenção dos EUA.”
A vontade de chegar à tecnologia russa não é de agora, argumenta, em declarações ao mesmo jornal, Lim Eul-chul, professor do Instituto de Estudos do Extremo Oriente da Universidade Kyungnam, em Seul.
“A Coreia do Norte está atrasada na tecnologia de satélites de reconhecimento militar e submarinos táticos”, olhando para os objetivos militares que estabeleceu para um período de cinco anos e que termina em 2026. “Há muito tempo que a Coreia do Norte olha para a tecnologia avançada da Rússia nessas áreas, e a guerra prolongada entre a Rússia e a Ucrânia permitiu-lhe aproveitar as oportunidades de abrir negociações com a Rússia.”
Ainda não é totalmente claro se Kim Jong-un conseguiu, de facto, aproveitar essa oportunidade no Cosmódromo de Vostochny. Mas não será preciso esperar muito: outubro está a poucos dias de distância e, com ele, chega também o terceiro teste do satélite espião. Se não for um novo fracasso, isso será um primeiro sinal daquilo que a Coreia do Norte conseguiu de Moscovo em troca de milhões de granadas de artilharia.