Depois de avanços, recuos e algumas curvas no discurso público sobre a criação de uma taxa sobre os lucros inesperados das empresas de energia, o Governo dá sinais claros de que está pronto para avançar com uma contribuição sobre empresas de petróleo e gás, nos termos em que a Comissão Europeia propõe. Portugal, disse primeiro António Costa e reafirmou esta quarta-feira o ministro do Ambiente, apoia todas as propostas feitas por Bruxelas para lidar com a crise energética. Aliás, se o regulamento que a Comissão propõe for aprovado — basta maioria qualificada — Portugal teria mesmo de aplicar a taxa em 2023 (sobre os resultados de 2022) porque ela seria vinculativa.
Apesar da aprovação genérica — “Somos a favor deste tipo de intervenção, desta captura de ganhos excessivos e da sua mutualização a favor dos consumidores” — Duarte Cordeiro sinalizou que ainda falta conhecer detalhes sobre algumas dessas propostas que estão a ser alvo de uma análise técnica por parte de Lisboa.
Um dos temas que suscita dúvidas é a contribuição solidária e extraordinária proposta para as empresas de gás e petróleo, em particular em como conciliá-la com a contribuição extraordinária sobre o setor energético. (CESE) que Portugal já cobra às empresas do setor. “Temos já uma contribuição extra no setor energético e não sabemos como a Comissão vai avaliar essa situação“, referiu o ministro do Ambiente no Parlamento. E esta CESE rende 125 milhões de euros por ano, sublinhou, não referindo, contudo, que a Galp não só a contesta esta taxa, como não a paga. Nem que a CESE incide sobre os ativos das empresas e não sobre os lucros.
Além disso, acrescentou Duarte Cordeiro, “não sei se aplicando a fórmula europeia resulta alguma coisa de imposto”. A dúvida manifestada pelo ministro faz eco das reservas que têm sido feitas publicamente pelos responsáveis das Finanças sobre a eficácia da taxação dos lucros extraordinários, com Fernando Medina a apontar para as dificuldades sentidas nos países que o tentaram.
Porque resiste tanto o Governo a criar uma taxa sobre os lucros inesperados
No caso de uma contribuição que incida apenas sobre os ganhos das empresas de gás e petróleo, o universo de contribuintes é muito reduzido em Portugal e, no limite, cinge-se apenas a uma empresa ou a um grupo de empresas: a Galp. Esta é para já, sabe o Observador, a única companhia identificada como potencial pagante da contribuição nos termos em que foi proposta por Bruxelas, porque é a única empresa que está a lucrar mais, de forma visível, com a valorização dos preços do petróleo (neste caso mais do que o gás).
A Galp cumpre critérios de Bruxelas para pagar contribuição?
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A resposta só pode ser dada com exatidão depois de serem apurados os resultados deste ano, o que acontece nos primeiros meses de 2023. Mas os resultados do primeiro semestre parecem apontar nesse sentido. A Galp teve lucros de 420 milhões de euros, uma subida de mais de 150% face a 2021. O indicador que vale para a contribuição europeia são os lucros tributáveis. Os resultados antes de impostos até junho cresceram 111% face a 2021 para os 1,172 mil milhões de euros. Só que o grosso destes lucros foi feito no chamado upstream, atividade que integra a produção de petróleo e gás que não é desenvolvida em Portugal. O negócio que inclui a refinação viu o resultado operacional passar de prejuízos de 74 milhões para 168 milhões de euros.
A Galp não identifica nas contas que lucros tributáveis faz em Portugal, mas o Fisco tem essa informação já que a situação fiscal da empresa é monitorizada pela unidade dos grandes contribuintes da AT.
Mas o maior problema é que a grande fatia destes ganhos — os lucros da Galp subiram 150% no primeiro semestre — não está a ser gerada em Portugal (nem sequer na Europa), mas sim nos países onde a Galp produz petróleo e gás — sobretudo Brasil e Angola. Esses lucros são já taxados nos países onde são gerados e há acordos bilaterais de dupla tributação que impedem que os mesmos ganhos sejam taxados duas vezes em cada geografia. No local onde são apurados e no país sede da casa-mãe.
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Logo, a contribuição europeia só irá incidir sobre a atividade desenvolvida e tributada em Portugal que, neste caso, será sobretudo a refinação, cujas margens já estiveram este ano muitas vezes acima do normal. No retalho de combustíveis, mercado muito vigiado, não têm sido detetadas margens excessivas por parte do regulador da energia, a ERSE.
Esta segunda-feira, e numa conferência onde estava também o ministro do Ambiente, o presidente executivo da Galp avisou: “Infelizmente fazemos muito pouco dinheiro em Portugal”. Andy Brown afirmou que a venda de combustíveis em Portugal representa 3% dos resultados e sublinhou que a Galp perdeu dinheiro durante 18 anos no setor da refinação (o que levou ao fecho de Matosinhos). E, apesar disso, nunca deixou de investir nesta atividade. “Os nossos acionistas andaram a financiar as refinarias”. E agora que finalmente dá lucro, Bruxelas defende que esse lucro deve ser taxado em 33%. O gestor lembra ainda que a refinaria de Sines precisa de investimentos de reconversão para combustíveis sustentáveis para se manter viável.
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No gás natural, o gestor disse que a empresa até perdeu dinheiro no primeiro semestre — 135 milhões de euros — porque teve de ir ao mercado comprar gás caro para abastecer os clientes devido a falhas de entrega por parte da Nigéria.
Para além destes argumentos da Galp, as associações do setor petrolífero — portuguesa e europeia — que até mostraram abertura para colaborar na criação de uma eventual taxa — contestam o critério fixado pela Comissão Europeia de usar como referência os resultados dos últimos três anos (2019, 2020 e 2021). Dois destes anos foram marcados pela pandemia e por fracos resultados nas empresas de petróleo por causa dos confinamentos. Logo, a comparação com o resultado de 2022 (o primeiro ano normal) vai dar seguramente “lucro inesperado”, ou seja, muito superior à media dos três anos anteriores.
Bruxelas diz que a contribuição extraordinária e solidária se deve aplicar aos lucros tributáveis de 2022, apurados em 2023, na proporção que seja superior em 20% ao resultado médio anual dos três anos anteriores. A contribuição de solidariedade temporária (que não é tratada como um imposto) seria aplicada a todas as empresas que geram pelo menos 75% do seu volume de negócios no setor do petróleo e do gás, carvão e refinação. Esta receita será cobrada pelo Estado e redistribuída por cada país em políticas de apoio financeiro aos clientes finais de energia, famílias e empresas. O regulamento proposto indica ainda que os 33% são contribuição mínima que cada Estado pode aumentar.
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Bruxelas argumenta que a criação de uma taxa mínima num regulamento europeu respeita o princípio da proporcionalidade porque não retira margem às empresas para investirem, assegura condições de concorrência mais equilibradas entre as empresas uma vez que vários Estados introduziram já unilateralmente medidas da mesma natureza e dá mais proteção aos governos para se protegerem dos prováveis processos de impugnação e litígios. Dá ainda garantias adicionais às empresas de que a contribuição é mesmo extraordinária. Ou seja, dura apenas um ano e não se eterniza como outras. A Comissão espera que esta contribuição renda 24 mil milhões de euros.