Ainda não está nada formalizado, mas os contactos internacionais decorrem ao mais alto nível e o Governo português deverá acionar em breve um conjunto de mecanismos europeus para que outros países — designadamente a Alemanha e a Espanha — possam ajudar Portugal no combate à Covid-19, numa altura em que o país atravessa a pior fase da pandemia e se destaca a nível mundial como aquele que tem mais casos e mortes por milhão de habitantes, bem como a maior taxa de contágios.
Fonte da embaixada da Alemanha confirmou esta sexta-feira ao Observador que decorrem neste momento contactos de alto nível entre os governos português e alemão, que estão a trabalhar no sentido de “encontrar uma solução assim que possível”. A mesma fonte reconheceu que os contactos estão a decorrer com noção da necessidade urgente e imediata de auxílio e que, por isso, não se deverão arrastar demasiado no tempo.
Para avaliar as necessidades portuguesas, o Ministério da Defesa alemão enviou a Portugal uma equipa de médicos militares, que visitou três hospitais e se reuniu com as autoridades de saúde portuguesas. Os médicos estiveram no nosso país entre os dias 26 e 28 de janeiro e já regressaram à Alemanha. Nesta altura, de acordo com a informação recolhida pelo Observador junto das autoridades alemãs, decorrem conversas de alto nível para determinar como é que a ajuda germânica se irá materializar. “Depois de avaliar os resultados da visita exploratória, a decisão sobre os campos concretos de cooperação vai ser tomada em coordenação próxima entre os dois governos”, confirmou um porta-voz do Ministério Federal da Defesa alemão, que salientou a existência de um “diálogo contínuo” entre os dois governos.
Esta sexta-feira, o Correio da Manhã noticiou que um avião-hospital das Forças Armadas alemãs já está pronto a ser enviado para Portugal com o objetivo de transportar doentes críticos para a Alemanha. Ao Observador, ambas as fontes governamentais alemãs disseram não poder ainda confirmar ou desmentir esta informação. Do lado português, os ministérios da Saúde e da Defesa não responderam aos vários contactos do Observador com o objetivo de confirmar a informação. Aqueles aviões já foram usados durante a primeira vaga da pandemia para transportar doentes de cuidados intensivos da Itália e de França para a Alemanha, quando a Covid-19 assolou de forma dramática aqueles dois países.
Além da Alemanha, também a Espanha poderá participar nestes esforços de ajuda a Portugal. Neste caso, o cenário em cima da mesa será o acolhimento de doentes portugueses em hospitais próximos da fronteira, que possam ser transportados por via terrestre. Esta informação foi inicialmente divulgada pelo médico João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos e responsável pela resposta em medicina intensiva no âmbito da Covid-19. João Gouveia adiantou esta informação ao jornal espanhol La Voz de Galicia, dando inclusivamente vários detalhes. “O pedido de ajuda já começou, ainda que não seja oficial”, afirmou, concretizando: “O lógico é que a transferência de doentes se faça por estrada entre hospitais que fiquem perto da fronteira, como fizeram outros países europeus que ativaram previamente este tipo de mecanismo de ajuda. (…) De Viana do Castelo, seguramente irão para Vigo; de Bragança, para Zamora; e do Alentejo, dependendo se estão internados em Portalegre, Évora ou Beja, para Badajoz ou Sevilha”.
Ajuda a Portugal. Médicos alemães já em Lisboa, Espanha a postos
Três dias depois, contactado pelo Observador, João Gouveia escusou-se a comentar aquilo que tinha dito ao jornal espanhol. “Ainda está tudo a ser programado”, limitou-se a dizer.
Que cenários de ajuda internacional para Portugal?
Nos últimos dias, os governantes portugueses têm-se multiplicado em respostas vagas sobre o pedido de ajuda internacional. Na quarta-feira, em declarações aos jornalistas, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, dizia que o Governo português estava a “equacionar” a ativação de “mecanismos de cooperação internacional, nomeadamente mecanismos ao nível da Comissão Europeia”, mas advertia logo de seguida que se trata de um processo “ainda não formalizado completamente”. Questionado sobre o tipo de ajuda, Sales falou de “material” e de “recursos humanos”, acrescentando que “a área dos recursos humanos é sempre difícil para nós”. Antes, a ministra da Saúde, Marta Temido, confirmara que o Governo estava a equacionar “todos os mecanismos de que dispõe, designadamente no quadro internacional, para garantir que presta a melhor assistência aos doentes”.
Covid-19. Governo está a acionar “todos os mecanismos” no quadro internacional, afirma Marta Temido
Os mecanismos europeus pensados para a cooperação transfronteiriça durante a pandemia da Covid-19 incluem três cenários:
- A cedência de equipamentos médicos por parte de países com excesso de equipamento a países onde faltam materiais;
- A cedência de profissionais de saúde por parte dos países menos atingidos pela pandemia num dado momento a países onde a pressão é maior;
- O acolhimento de doentes dos países mais sobrecarregados em hospitais de países onde a pandemia está mais controlada.
De acordo com o Governo, a principal necessidade de Portugal neste momento é de profissionais de saúde. O secretário de Estado António Lacerda Sales já o tinha dito e o primeiro-ministro confirmou-o, sublinhando que Portugal precisa de médicos e enfermeiros — e não de mais material.
“A senhora Merkel, no princípio da semana, manifestou-me a disponibilidade da Alemanha para apoiar. Está [em Portugal] uma missão, que tem estado a avaliar. Tudo aquilo que temos pedido, infelizmente, não há condições, designadamente disponibilizar médicos, disponibilizar enfermeiros. Aquilo que a Alemanha tinha condições, até agora, de disponibilizar, nós efetivamente neste momento não necessitamos. Por exemplo, mais ventiladores. Temos, neste momento, ventiladores suficientes. Não é isso que neste momento nos está a faltar”, disse António Costa na quarta-feira, durante uma entrevista no programa Circulatura do Quadrado, na TVI.
Para já, portanto, não falta material em Portugal, pelo que o primeiro cenário não deverá ser ativado. O que é preciso no país, segundo o primeiro-ministro, são profissionais de saúde do estrangeiro que possam vir ajudar durante este pico. Porém, esse cenário também tem problemas, de acordo com o bastonário da Ordem dos Médicos.
Na quinta-feira, numa intervenção em direto na TVI, Miguel Guimarães disse que seria melhor para o país enviar doentes para outro país do que receber médicos em Portugal. “A transferência de doentes é mais complexa para as famílias, mas provavelmente é melhor para o país”, afirmou o médico. “Os cuidados intensivos não são só as camas, os ventiladores, aqueles equipamentos todos com aquelas luzinhas todas. Os principais meios dos cuidados intensivos são as pessoas”, acrescentou, sublinhando que integrar médicos estrangeiros nas equipas portuguesas podia revelar-se pouco produtivo.
“A equipa, a forma como as coisas funcionam, é como um jogo de futebol, em que os jogadores já estão entrosados, já sabem quais são os hábitos, já sabem onde é que vão estar, já se conhecem uns aos outros. É completamente diferente”, assinalou Miguel Guimarães. “A integração das equipas não é uma coisa tão simples quanto isso. As equipas funcionam tanto melhor quanto melhor as pessoas se conhecem e conhecem os seus hábitos. Mais rotinadas. Nós em Portugal temos medicina de excelência. Temos excelentes profissionais. Conseguimos tratar os nossos doentes sem a ajuda internacional. O que não conseguimos é tratar tantos doentes, sobretudo doentes que acabam por não ter acesso a cuidados intensivos se for necessário.”
A ajuda internacional a Portugal poderá então passar pelo terceiro cenário: o envio de doentes para países menos afetados pela pandemia da Covid-19.
A notícia avançada pelo Correio da Manhã relativamente ao estado de prontidão de um avião-hospital alemão destinado a transportar doentes para a Alemanha, bem como as informações avançadas pelo médico João Gouveia ao La Voz de Galicia, indiciam que o cenário de transferir doentes para Alemanha e Espanha está em cima da mesa como uma das principais opções para o país, que está a esgotar a capacidade de internamento dos hospitais. Esta sexta-feira, três doentes internados nos cuidados intensivos da região de Lisboa (dois do Hospital Beatriz Ângelo e um do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental) foram enviados para o hospital Nélio Mendonça, no Funchal, depois de a região Autónoma da Madeira se ter disponibilizado a receber doentes críticos do continente. O governo regional dos Açores também já se disponibilizou para receber doentes do continente. Mas a capacidade hospitalar das ilhas tem limitações e tudo indica que será preciso recorrer à ajuda estrangeira.
Nesse caso, que doentes serão transferidos? Não é claro, pelas declarações públicas dos últimos dias, de que modo será feita a seleção.
Na mesma intervenção na TVI, o bastonário da Ordem dos Médicos salientou que o mais acertado é que sejam transferidos doentes prioritários, que precisem de cuidados intensivos, independentemente de estarem ou não infetados com Covid-19, uma vez que o objetivo da medida é aliviar a pressão sobre os cuidados intensivos portugueses, atualmente no limite. “Um dos aspetos é nós podermos transferir doentes para outro país. Doentes Covid ou não Covid, porque isso vai aliviar de alguma forma os hospitais. Têm é de ser doentes prioritários, doentes que precisem de facto de internamento e que nós não conseguimos tratar todos ao mesmo tempo”, disse Miguel Guimarães.
Já António Costa, na entrevista na Circulatura do Quadrado, sugeriu que a opção seria distinta, quando confirmou que, nas discussões com a Alemanha, se falou da possibilidade de acolhimento de doentes. “Pusemos essa hipótese, se podiam acolher doentes. Não estou a dizer doentes Covid, mas doentes de outras patologias, cujo tratamento não-prioritário tem estado a ser adiado, se era possível acolher. Essa ideia de que há um estrangeiro para onde é possível enviar doentes… Convém ter alguma cautela”, disse Costa. “É diferente um país que tem a posição geográfica de Portugal, que de um lado tem o Atlântico e do outro lado tem a Espanha, de um país que está no centro da Europa e que tem vários países com quem faz fronteira, e onde essa cooperação transfronteiriça é muito mais habitual e muito mais fácil.”
No mesmo dia, a agência Lusa noticiava, citando fonte do Ministério da Defesa, que Portugal e Alemanha estavam a avaliar a possibilidade de transferir para aquele país alguns doentes não-Covid, mas que precisassem de cuidados intensivos, com o objetivo de libertar camas de cuidados intensivos em Portugal.
O Observador contactou várias vezes ao longo desta sexta-feira os gabinetes dos ministros da Defesa e da Saúde — os dois ministérios que estarão envolvidos neste processo — para tentar clarificar a que doentes se dirigiria a operação de transferência, mas nenhum dos ministérios respondeu às diferentes tentativas de contacto.
Alemanha já acolheu doentes Covid de França e Itália
Apesar da incerteza sobre a operacionalização do processo em Portugal, os exemplos que já ocorreram noutros países permitem ter uma ideia de qual tem sido a prática corrente.
Em março do ano passado, quando a primeira vaga da pandemia atingiu de modo particularmente duro a França e a Itália, a Alemanha chegou-se à frente para receber doentes daqueles dois países. Na altura, um conjunto de hospitais alemães recebeu vários doentes franceses e alemães infetados com a Covid-19 e que necessitavam de cuidados intensivos. Só em março, cerca de 50 doentes italianos e pelo menos 130 doentes franceses foram levados para a Alemanha, que naquela altura tinha uma capacidade de cuidados intensivos significativamente superior à de França e Itália. Os doentes foram transportados pela própria Força Aérea alemã, em aviões especializados no transporte de doentes de risco. “Queremos preservar o espírito europeu”, disse na altura o governador regional da Renânia do Norte-Vestefália, Armin Laschet, quando chegaram os primeiro doentes oriundos do norte de Itália, onde se deu o epicentro da Covid-19 na Europa — apanhando de surpresa um sistema de saúde impreparado para lidar com uma crise de saúde pública daquela dimensão.
Em novembro, durante a segunda vaga da pandemia, França voltou a precisar de enviar doentes graves para a Alemanha. Com os hospitais franceses a chegar ao limite, vários doentes foram transferidos para zonas do país onde a pandemia estava mais controlada, mas a operação interna não foi suficiente — e acabou por ser necessário voltar a recorrer aos hospitais da Alemanha, que novamente se disponibilizou para fazer o transporte dos internados. Nas várias situações, os doentes foram transportados em aviões especializados da Força Aérea da Alemanha.