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Israeli attacks on Gaza
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Várias fotografias têm mostrado o sofrimento de crianças em Gaza — mas as redes sociais têm-se enchido também de informações, no mínimo, duvidosas

Anadolu Agency via Getty Images

Várias fotografias têm mostrado o sofrimento de crianças em Gaza — mas as redes sociais têm-se enchido também de informações, no mínimo, duvidosas

Anadolu Agency via Getty Images

Crianças como ferramenta de manipulação, números errados e desinformação. Como distinguir factos e propaganda na guerra em Gaza

Nas redes sociais multiplicam-se fotografias de crianças nos destroços de Gaza. Algumas reais, outras nem tanto. O fenómeno não é novo num conflito que tem matado inocentes dos dois lados.

No dia 29 de outubro de 2000, exatamente um mês depois de uma visita de Ariel Sharon ao Monte do Templo, em Jerusalém, ter espoletado a onda de violentos protestos palestinianos contra a ocupação israelita que ficaria conhecida como a Segunda Intifada, o fotógrafo da Associated Press Laurent Rebours capturou uma das fotografias mais emblemáticas do longo e intrincado conflito israelo-palestiniano. A imagem tornar-se-ia num símbolo de desigualdade: perante uma imponente coluna de tanques militares israelitas, Faris Odeh, 14 anos, de sandálias, calças de ganga e camisola colorida preparava-se para atirar uma pedra.

Uma pedra contra um tanque. David contra Golias — com o detalhe da pedra a dar um toque literal à comparação que se tornaria num lugar-comum da guerra israelo-árabe.

Faris morreria dez dias depois. Como contou o The Washington Post em dezembro de 2000, o rapaz fugia de casa frequentemente para passar os seus dias na linha de frente dos combates, atirando pedras aos militares israelitas em Karni, um dos checkpoints da fronteira entre Israel e a Faixa de Gaza, enclave costeiro palestiniano controlado pelo grupo terrorista Hamas. O diretor da escola enviava recados aos pais de Faris. A mãe procurava-o pelas ruas em desespero e o pai batia-lhe quando chegava a casa — mas Faris continuou a sair. Até ao dia 9 de novembro, o adolescente voltara sempre para casa. Nesse dia, porém, não aconteceu: quando se baixava para apanhar mais uma pedra, foi atingido por uma rajada de tiros disparada do lado israelita contra os combatentes palestinianos.

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Depois de morto, Faris Odeh tornou-se num ícone para os palestinianos, celebrado em grafittis, cartazes e primeiras páginas de jornais.

Embora não retratasse todo o cenário, nem do conflito nem da realidade de Faris, a fotografia ganhou rapidamente um significado político próprio. Os líderes palestinianos não tardaram a perceber como a imagem ajudaria a causa: ao mostrar de modo tão evidente uma enorme desigualdade de forças — mesmo que não necessariamente precisa, uma vez que o arsenal militar da Palestina não se resume a pedras —, o martírio de Odeh poria a opinião pública global do lado palestiniano. “Estes tanques não conseguem assustar o povo valente”, disse em 2002 o então presidente da Autoridade Palestiniana, Yasser Arafat, perante uma multidão de jovens e crianças em Ramallah, numa manifestação em que o martírio dos jovens em nome da Palestina foi glorificado. “Temos de nos lembrar que estes tanques foram combatidos pelo herói Faris Oudeh.

"Estes tanques não conseguem assustar o povo valente. Temos de nos lembrar que estes tanques foram combatidos pelo herói Faris Odeh."
Yasser Arafat, presidente da Autoridade Palestiniana, em 2002

Desde aquela altura, a opinião pública global viria a ser confrontada com muito mais fotografias do mesmo estilo — usando a inocência das crianças que nascem, vivem e muitas vezes morrem em ambiente de guerra para mostrar o lado dos palestinianos. Por estes dias, duas décadas depois da Segunda Intifada e com vários outros episódios da longa guerra pelo meio, as tensões entre Israel e a Palestina agudizaram-se novamente depois de um conjunto de protestos motivados pela expulsão de famílias palestinianas do bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém. A repressão policial às orações de fim de Ramadão dos palestinianos na mesquita de Al-Aqsa (o terceiro lugar mais sagrado do Islão) intensificou os protestos na cidade e a violência escalou em poucos dias para um conflito armado na Faixa de Gaza, onde as forças de Israel e o Hamas se têm batido de forma violenta.

Mas, na era das redes sociais, os mísseis já não são as únicas armas.

O que levou ao aumento da violência entre Israel e Palestina? E o que pode acontecer a seguir? 10 perguntas e respostas

Nos últimos dias têm-se multiplicado pela internet as imagens que mostram o desespero de crianças palestinianas nos lugares de Gaza bombardeados por Israel. Algumas são verdadeiras, outras encenadas e várias estão descontextualizadas — mas o que é certo é que essas fotografias têm contribuído decisivamente para aumentar a comoção global relativamente ao conflito e para inclinar o plano da opinião pública. E se do lado palestiniano é notória uma forte aposta nas imagens comoventes com recurso a crianças, do lado de Israel disseminam-se a grande velocidade informações falsas sobre a Palestina com o objetivo de instigar a fúria dos israelitas contra os árabes.

De ambos os lados, a manipulação e o enquadramento da informação e das imagens têm servido para contar duas versões diferentes de uma mesma história. Pelo meio, têm sofrido os inocentes de ambos os lados. De acordo com um balanço desta segunda-feira, desde o início desta vaga de confrontos já tinham morrido 212 palestinianos (incluindo 61 crianças). Em Israel, defendido pelo poderoso sistema Iron Dome, capaz de intercetar 90% dos rockets disparados pelo Hamas, o número de mortes é menor, mas com uma igualmente triste proporção de crianças: dez mortes, incluindo duas crianças.

O foco nas crianças e as imagens que não contam a história toda

Também várias crianças têm protagonizado as mais comoventes imagens que chegam ao mundo a partir da Faixa de Gaza. A história de Suzy Eshkuntana, uma menina de 6 anos apoteoticamente resgatada dos escombros da sua casa bombardeada por Israel, correu os meios de comunicação social de todo o mundo. Suzy e o pai foram os únicos sobreviventes da família — a mãe e os irmãos morreram todos no bombardeamento. Atordoada ao fim de sete horas debaixo das ruínas do prédio, Suzy foi retirada do meio das pedras por uma multidão exultante. As roupas infantis de cor rosa contrastam com a desolação que rodeia a mensagem mais dramática de todas: no meio da guerra, há crianças a crescer.

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A imagem do resgate de Suzy Eshkuntana dos escombros tornou-se já num ícone do atual conflito em Gaza

AFP via Getty Images

A história de Suzy é real — e ajuda a credibilizar dezenas de imagens que têm inundado as redes sociais com o objetivo de comover a opinião pública. Outras nem tanto.

Uma das fotografias mais partilhadas dos últimos dias mostra uma criança com um vestido azul e uma boneca cor-de-rosa no meio dos escombros de um prédio em Gaza. A imagem, capturada pelo fotógrafo profissional Shaban El Sousi, faz na verdade parte de uma sessão fotográfica que inclui várias fotografias e que foi partilhada pelo próprio fotógrafo no Instagram. A análise das imagens não deixa margem para dúvidas: trata-se de uma sessão fotográfica com várias poses encenadas. Numa das imagens, a criança, Celine, empunha até uma bandeira da Palestina. Na descrição das fotografias são dados poucos detalhes sobre quem é Celine e qual a relação da criança com o prédio destruído em que se encontra.

Foi encenado. É muito claro que foi encenado. Numa delas, tem a bandeira e tudo, e não sabemos se ela vivia ali”, diz ao Observador a partir de Jerusalém o analista político israelita Arieh Kovler, que faz investigação independente sobre a desinformação enquanto arma no conflito. Apesar de israelita, Kovler não vê na fotografia uma tentativa de manipulação da opinião pública. “Se perguntar ao fotógrafo, ele não lhe dirá nada que contradiga que a fotografia foi encenada. Toda a gente quer contar a sua história da forma mais emocional possível e não há nada de fundamentalmente errado nisso. Há muitas crianças a sofrer e muitas crianças a morrer. Se esta fotografia é deliberada? Claro que é. Mas e depois?

Está visto que algumas das imagens com as quais nos cruzamos não representam um episódio específico real, mas pretendem ilustrar a ampla realidade das crianças que têm sofrido na Palestina. Todavia, há ainda um terceiro tipo de fotografias a tornarem-se virais nas redes sociais nas últimas semanas — as falsas.

Já se cruzou com a imagem da pequena Malek, alegadamente morta pelas bombas dos ocupantes israelitas? Trata-se de uma fotografia de uma menina russa chamada Sophie partilhada no Instagram pela sua mãe há dois anos.

E esta fotografia de uma menina em pranto que tem sido usada para ilustrar como as crianças têm sido um alvo direto de ataques israelitas? Circula na internet pelo menos desde 2014 para ilustrar diferentes conflitos armados — incluindo na Síria e no Afeganistão.

Em simultâneo, diversas fotografias antigas de outros conflitos, sobretudo da Síria, têm surgido nas redes sociais com descrições anti-Israel. Esta semana, a emissora alemã Deutsche Welle publicou um extenso artigo identificando dezenas de fotografias virais dos últimos dias que, na verdade, dizem respeito a conflitos antigos, a situações noutros lugares ou até a crianças que em nada estão envolvidas na questão israelo-palestiniana — mas que são usadas como ferramenta de propaganda para atrair a atenção internacional para o conflito.

"Toda a gente quer contar a sua história da forma mais emocional possível e não há nada de fundamentalmente errado nisso. Há muitas crianças a sofrer e muitas crianças a morrer. Se esta fotografia é deliberada? Claro que é. Mas e depois?"
Arieh Kovler, analista político israelita

Gadi Wolfsfeld, professor de comunicação política na universidade israelita IDC Herzliya, onde se tem dedicado a estudar o papel dos media no conflito, concorda que “a experiência sugere que algumas [fotografias com crianças] são, de facto, encenadas, e algumas são reais”. O académico israelita assume ao Observador que “algumas crianças palestinianas morreram, mas é difícil saber quantas”, devido à pouca credibilidade dos números que vêm do lado do Hamas. “O que é claro é que o Hamas usa estas imagens como uma poderosa maneira de mobilizar a comunidade internacional”, acredita Wolfsfeld. Assumindo que há informação falsa a circular nos dois lados do conflito, o investigador sublinha que o recurso a imagens desenquadradas do real contexto é mais comum do lado do Hamas. “É extremamente improvável que isto aconteça em Israel, porque os meios de comunicação social tradicionais israelitas descobririam imediatamente e condenariam esse tipo de manipulações.”

Mesmo quando as fotografias que se tornam virais na internet são reais, nem sempre contam a história toda.

Foi isso que aconteceu em novembro de 2012, quando o The Washington Post publicou, na primeira página, uma impressionante fotografia que por estes dias voltou a surgir nas redes sociais a propósito do reacendimento das tensões entre Israel e o Hamas. Na fotografia, é possível ver o jornalista Jihad Masharawi, correspondente da BBC em Gaza, em lágrimas, com os olhos fechados e o rosto virado para o céu, enquanto carrega o corpo do seu filho de 11 meses, envolvido num lençol branco. A notícia de manchete dava conta de uma ronda de ataques israelitas contra a Faixa de Gaza, que teria resultado na morte de um importante líder militar do Hamas, mas com grande perda de vidas humanas civis. A imagem comoveu o mundo, tornou-se num novo ícone do conflito e, uma vez mais, colocou a opinião pública global contra Israel.

A primeira página do The Washington Post do dia 15 de novembro de 2012

The Washington Post

Contudo, poucos meses depois, a história conheceu um revés. Através de um relatório independente das Nações Unidas, percebeu-se que, afinal, o filho de Masharawi não morrera vítima de um míssil israelita, mas de um rocket disparado pelo Hamas, que — como acontece frequentemente — não chegou a Israel e caiu dentro de Gaza. Como explica o The New York Times, os números de vítimas mortais disponibilizados pelo Hamas não discriminam o número de pessoas que morreram devido a bombas israelitas e as que acabaram por ser vítimas dos frequentes rockets palestinianos que falham o alvo.

Desinformação intencional? “A maioria das pessoas não quer fazer figura de idiota”

Para os dois académicos israelitas ouvidos pelo Observador, a esmagadora maioria das fotografias, informações e vídeos falsos ou distorcidos não são propagados intencionalmente pela maioria das pessoas apanhadas na corrente das redes sociais — e muitas vezes nem sequer são intencionais na origem.

Acontece em ambos os lados”, diz Arieh Kovler, lembrando casos em que dentro de Israel correram fotografias antigas de uma sinagoga queimada. “As pessoas que mostravam a fotografia não querem mentir, querem ilustrar uma situação. É como acontece nos jornais: às vezes, usam-se fotografias antigas, de arquivo, não do que está a acontecer, mas da última vez que algo aconteceu. Mas nesse caso é escrito na legenda que a fotografia é do ano tal. É uma fotografia antiga para ilustrar a verdade”, continua Kovler, insistindo que esse argumento explica tanto as fotografias de crianças na Palestina como as fotografias que correm em Israel ilustrando os mísseis do Hamas. “Ambos os lados querem contar a sua história.”

Kovler destaca que o fenómeno não é novo, mas sublinha que atualmente há uma atenção maior ao problema das fake news. “Não havia este misinformation beat até há cinco anos”, afirma, apontando um paradoxo: se, por um lado, é verdade que o uso generalizado das redes sociais nos tornou mais suscetíveis de partilhar imagens que mexem com as nossas emoções com um simples clique, antes de lermos toda a história, também é verdade que estamos todos a um igualmente simples clique de descobrir uma fraude. “Basta ir ao Google Images”, sublinha Kovler, acrescentando que qualquer utilizador comum da internet consegue fazer uma pesquisa invertida de uma imagem, encontrando a sua versão original em poucos segundos — aliás, é isso que muitos órgãos de comunicação social, incluindo o Observador, têm feito para desmontar várias informações erradas que circulam na internet.

"Infelizmente, isto tornou-se numa parte de todos os conflitos violentos. A má notícia é que é muito prevalente. A boa notícia é que estas imagens antigas são muito fáceis de identificar e extremamente embaraçosas quando são reveladas."
Gadi Wolfsfeld, professor de comunicação política na universidade israelita IDC Herzliya

“Não acredito que as pessoas queiram deliberadamente usar imagens erradas. Se o quisessem fazer, faziam-no bem. A maioria das pessoas não quer fazer figura de idiota. Só têm sido preguiçosas. Em alguns casos, é possível que alguém no início da cadeia tenha percebido que não é verdade. Mas quem vai partilhando não faz ideia. Simplesmente foi ao Google e pesquisou ‘vídeo Gaza’, e partilhou”, comenta o académico, apontando dois exemplos de formas usadas para contornar a deteção: inverter as fotografias (para que não surjam em pesquisas invertidas) ou então mudar-lhes o enquadramento, cortando apenas parte do fotograma. “Isso acontece em algumas vezes, mas não na maioria. Portanto, será a desinformação operada por pessoas inteligentes e maldosas? Na maioria das vezes, são erros preguiçosos que ficaram virais.”

Kovler explica porque é que a maioria das pessoas que partilham fotografias erradas não as apagam quando percebem que cometeram um erro: “As pessoas não querem apagar coisas que ficaram virais, que tiveram milhares de gostos ou comentários. Muitas vezes, foi a primeira vez que sentiram que alguém as viu.”

Gadi Wolfsfeld concorda, em parte, com a justificação para a tese de que a maioria das partilhas sejam inocentes. “Infelizmente, isto tornou-se numa parte de todos os conflitos violentos. A má notícia é que é muito prevalente. A boa notícia é que estas imagens antigas são muito fáceis de identificar e extremamente embaraçosas quando são reveladas”, diz o académico israelita, assumindo que existem casos em que a imagem antiga ou descontextualizada surge sem qualquer intenção — e outras em que há uma clara intenção de caracterizar o outro lado como terrível.

Um dos exemplos mais recentes aconteceu no início deste mês e precisamente do lado israelita: Ofir Gendelman, o porta-voz do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, publicou na sua conta de Twitter um vídeo de 28 segundos descrevendo-o como uma imagem de fundamentalistas islâmicos palestinianos a disparar rockets contra Israel a partir de uma região densamente povoada. Porém, rapidamente se percebeu que o vídeo não só não era de Gaza como não era de agora: já circulava na internet desde pelo menos 2018 e já havia sido atribuído a extremistas islâmicos na Síria e na Líbia. Não foi preciso ir muito longe ou usar tecnologia sofisticada de serviços secretos para detetar a mentira: o vídeo antigo está disponível no YouTube. Confrontado com a informação de que o vídeo não correspondia à verdade, o porta-voz de Netanyahu retirou-o do Twitter.

Talvez eu esteja a ser ingénuo, mas não acredito que ele o tenha feito de propósito”, diz Arieh Kovler. “Seria mesmo parvo”, acrescenta o investigador israelita, sublinhando o embaraço que um episódio destes representa para um agente político. “Acho é que ele também caiu naquilo e foi negligente. Enquanto porta-voz do primeiro-ministro, tinha uma responsabilidade especial de ir ao Google confirmar a veracidade da informação. Foi negligente, mas não acredito que o tenha feito de propósito”, continua Kovler. Nos casos em que há uma intencionalidade, os iniciadores nunca são personalidades oficiais, explica o académico. “São aquelas contas de Twitter com 10 seguidores, sem nome e criadas há pouco tempo. Esses é que são os iniciadores.”

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As imagens do funcionamento da Iron Dome são impressionantes e explicam a desigualdade de vítimas mortais: 90% dos rockets do Hamas são intercetados por Israel

AFP via Getty Images

Contudo, os exemplos continuam a multiplicar-se, não apenas no caso das imagens de crianças palestinianas, mas também com uma grande quantidade de desinformação que circula dentro de Israel para caracterizar os palestinianos como terroristas. Por exemplo, nas contas das redes sociais pró-israelitas tornou-se recentemente viral um vídeo que, supostamente, mostraria um grupo de palestinianos a encenar um funeral de um civil que teria morrido devido a um míssil israelita disparado sobre Gaza, com o objetivo de comover a opinião pública a favor da Palestina. Como explica a BBC, o vídeo mostrava um episódio bizarro: um grupo de jovens transportava em ombros uma plataforma carregando um corpo envolvido em lençóis. Porém, a dada altura do vídeo, é possível ouvir sirenes e, com medo, os jovens largam o corpo no chão e fogem; poucos segundos depois, o alegado “cadáver” também se levanta e foge. Muitos “influenciadores” israelitas publicaram este vídeo numa tentativa de desvalorizar o drama vivido pelas famílias palestinianas — e até um conselheiro do ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel o partilhou. Porém, o vídeo tem mais de um ano e na verdade terá ocorrido na Jordânia. Um tweet de março de 2020 já mostrava aquela filmagem e, de acordo com a legenda, tratar-se-ia de um grupo de jovens da Jordânia que inventou um funeral como modo de sair à rua furando as restrições impostas pela pandemia da Covid-19.

Como muitos outros, o vídeo foi partilhado com a “hashtag” #Palywood, que tem sido usada por pró-israelitas para classificar as imagens que chegam da Palestina como produções ficcionadas.

Outro exemplo é um vídeo que mostra um camião carregado de mísseis no meio de uma rua de habitações — onde se ouve a voz de uma criança. Muito partilhado por ativistas pró-Israel, o vídeo foi descrito como comprovando que o Hamas dispara os seus mísseis a partir de zonas habitadas, usando a povoação como escudo humano para dissimular as suas posições militares. Contudo, como escreve também a BBC, o vídeo original viria a ser mais tarde encontrado na internet contando uma história diametralmente oposta: publicado no Facebook em novembro de 2018, a imagem terá sido captada na vila de Abu Snan, em Israel, e exibe, na verdade, armamento israelita.

Do outro lado, o mesmo cenário. Nos últimos dias, tornou-se viral nas redes sociais um vídeo que, supostamente, mostra a mesquita de Al-Aqsa em chamas. Situada em Jerusalém Oriental, aquele é o terceiro lugar mais sagrado para os muçulmanos (depois de Meca e Medina), mas também é o lugar mais sagrado do judaísmo, uma vez que era ali que se situava o antigo templo de Salomão. A mensagem por trás do vídeo era simples: Israel tinha, deliberadamente, deixado a mesquita arder. As imagens inflamaram os ânimos contra Israel, mas em pouco tempo foi possível perceber que, afinal, o ângulo do vídeo enganava: uma árvore situada a 10 metros da mesquita é que pegou fogo (a polícia israelita diz que foi devido a fogo de artifício usado pelos palestinianos que ali rezavam; os palestinianos dizem que foram as granadas de atordoamento lançadas pela polícia para dispersar a multidão que causaram o fogo). De qualquer modo, apenas a árvore ardeu, os bombeiros apagaram o incêndio e a mesquita não sofreu qualquer dano. Verdadeiras serão, porém, as celebrações dos israelitas perante o fogo. Segundo a BBC, a multidão que se vê nas imagens entoava um cântico anti-palestiniano.

Também pelas redes sociais surgiram recentemente várias supostas capturas de ecrã mostrando alegados tweets do exército israelita com frases como “adoramos matar” e “acabámos de bombardear uns miúdos”. Contudo, basta consultar a conta oficial do exército israelita para perceber que os tweets são falsos — embora seja verdade que as forças armadas de Israel usem o Twitter para criar um ambiente de descontração em torno da ação militar na Palestina. (Por exemplo, alegando ser o exército “mais vegan do mundo”.)

Na maioria dos casos, a informação errada, antiga ou descontextualizada é divulgada na internet de modo a moldar a opinião pública num sentido ou no outro — e acaba por cair num ciclo de auto-alimentação do qual é difícil sair: quanto mais pessoas partilharem, mais pessoas vão partilhar. É assim que as fotografias enganadoras se tornam virais, mesmo que de início não tenha havido uma intenção óbvia de enganar. Porém, em alguns casos, a informação errada é deliberadamente colocada no espaço público com objetivos mais profundos do que influenciar a opinião pública: instigar uma ação militar.

Aparentemente, terá sido isso que aconteceu recentemente com o coronel Jonathan Conricus, o porta-voz do exército israelita responsável pelas comunicações em língua inglesa. Através do Twitter, o exército disse no dia 13 de maio: “As tropas de infantaria e a força aérea estão neste momento a atacar a Faixa de Gaza”. O anúncio era de importância global — Israel tinha invadido Gaza — e os principais meios de comunicação social do mundo difundiram-me em poucos minutos. Porém, rapidamente tiveram de corrigir as notícias: não tinha havido invasão terrestre de Gaza, apenas tiros na fronteira. Foi a partir do momento da correção da notícia que começou a confusão sobre o que verdadeiramente acontecera. Jonathan Conricus, o porta-voz que havia confirmado em inglês a notícia aos jornalistas internacionais, assumiu todas as responsabilidades e disse que a fonte do erro foi um desentendimento entre as fontes no terreno e o gabinete de comunicação. Porém, nos jornais israelitas surgiu outra versão, em hebraico: não tinha sido nenhum erro de comunicação. Antes, o exército israelita tinha deliberadamente decidido lançar a informação para o espaço mediático global para fazer os militantes do Hamas acreditar que a invasão estava em curso e, assim, dirigirem-se em peso para a fronteira, para serem aniquilados pelas tropas israelitas.

Ao Observador, o analista israelita Gadi Wolfsfeld tende a seguir a versão de Jonathan Conricus e a sustentar que nada foi deliberado. “A publicação deliberada de informação falsa também faz parte de qualquer conflito moderno. Mas o meu entendimento é o de que em Israel isso é muito mais provavelmente feito por não profissionais, enquanto o Hamas não hesitaria em fazê-lo por si próprio”, considera Wolfsfeld. “Não adoro o termo ‘manipulação’. As tentativas de que está envolvido em conflitos de explorar os vários meios de comunicação social para promover a sua causa pode ser encontrada pelo menos desde o século XVIII (se não antes). O advento da era digital alterou radicalmente a velocidade a que as mensagens se disseminam e o tamanho da audiência. Mas, no geral, a estratégia está implementada há muitos, muitos anos.”

"Genericamente, há mais imagens emotivas a sair de Gaza do que de Israel. (...) Aqui ninguém tira fotografias a pessoas feridas nos hospitais nem a corpos mortos. Não é que os corpos não existam, mas não é uma coisa que façamos."
Arieh Kovler, analista político israelita

Certo é que o conflito israelo-palestiniano tem sido um dos assuntos mais discutidos nas redes sociais nos últimos dias — e o sentimento que ali se respira é, essencialmente, pró-Palestina, devido às muitas imagens comoventes que de lá chegam (ou que ali são atribuídas) envolvendo crianças. Para Arieh Kovler, há uma explicação para este desequilíbrio na perceção pública. “Genericamente, há mais imagens emotivas a sair de Gaza do que de Israel. Por exemplo, hoje morreram duas pessoas em Israel, mas foi longe, nos campos, um agricultor. E não estava lá ninguém para tirar fotografias. Além disso, aqui ninguém tira fotografias a pessoas feridas nos hospitais nem a corpos mortos. Não é que os corpos não existam, mas não é uma coisa que façamos”, afirma. “Em 2003 e 2004, durante a Segunda Intifada, Israel decidiu mostrar imagens e não foi nada popular. Não acontece desde então, só muito raramente.”

A informação que vem de dentro de Gaza é de confiar?

Alguns factos são indesmentíveis neste conflito. Um é o mais óbvio: o número de vítimas mortais do lado palestiniano é desproporcionalmente maior do que do lado israelita. Nesta ponderação, será útil não esquecer que o sistema de defesa militar de Israel tem sido capaz de intercetar nove em cada 10 rockets disparados pelo Hamas. Porém, vários analistas internacionais têm posto em causa a credibilidade dos números que vêm de Gaza — não necessariamente dos números absolutos de vítimas, mas da sua caracterização. De acordo com o The New York Times, que cita investigadores independentes ligados à luta pelos direitos humanos, os números de mortes disponibilizados pelo Hamas são geralmente precisos, mas nunca incluem uma caracterização precisa sobre quem foram: quantos eram militantes do Hamas e quantos eram civis — ou quantos morreram devido aos bombardeamentos israelitas e quantos devido aos mísseis do próprio Hamas que falharam o alvo e caíram em Gaza.

O elevado número de civis (e sobretudo crianças) mortos tem sido usado pelo Hamas como modo de contrariar um dos argumentos centrais de todo o conflito — o de que Israel está a atirar sobre alvos militares. Israel tem justificado alguns dos seus ataques, como o que destruiu o edifício da Al Jazeera e da Associated Press em Gaza, com a narrativa de que o Hamas usa este tipo de instalações civis como escudo para instalar os seus próprios quartéis militares. Por isso, Israel tem avisado com antecedência que vai destruir determinados prédios, dando tempo aos civis de evacuarem as instalações. Todavia, o Hamas tem desmentido sempre a utilização desse tipo de instalações — e Israel tem sido acusado diretamente de atirar sobre civis.

A dúvida sobre as estatísticas que chegam de Gaza não é nova. Durante a guerra de 2014, esse foi uma dos principais fontes de discórdia, como escreveu na altura na revista Time o analista norte-americano Steven Stotsky, membro de um think-thank que se dedica a denunciar aquilo que considera ser um viés anti-israelita nos meios de comunicação social. À época, como modo de argumentar que Israel estava a matar um número desproporcionado de civis, o Hamas emitia listas em que a maioria das vítimas não era identificada como combatente do grupo fundamentalista. Porém, uma significativa desproporção de vítimas masculinas entre os 17 e os 30 anos de idade (com o pico a ocorrer entre os 21 e os 27 anos) levou alguns observadores a desconfiar de que muitos deles não seriam civis — mas sim membros do Hamas, que correspondiam àquelas idades e ao facto de serem homens. Segundo o grupo, 82% das vítimas palestinianas seriam civis.

Israeli forces destroy building in Gaza City where Al-Jazeera, Associated Press had their offices

Israel tem atacado alvos específicos em Gaza, alegando que edifícios civis escondem posições estratégicas do Hamas

Anadolu Agency via Getty Images

Já em 2014 o assunto não era novidade. Segundo Steven Stotsky, aquele já tinha sido um dos principais pontos de discórdia na guerra de Gaza em 2009. Nesse ano, o Hamas também alegou que a esmagadora maioria dos mortos do lado palestiniano haviam sido civis — apenas 236 militantes do Hamas morreram. O elevado número de civis inocentes mortos moldou definitivamente a narrativa internacional sobre aquele episódio da guerra. Foram esses os números que surgiram inclusivamente em relatórios das Nações Unidas, contra a estimativa inicial de Israel, segundo a qual 709 militantes do Hamas haviam morrido. Todavia, um ano depois, em 2010, o ministro do Interior de Gaza veio revelar novos números: entre 200 e 300 guerreiros do Hamas haviam morrido, a que se somaram 250 “mártires” de várias milícias associadas ao Hamas e cerca de 150 membros das forças de segurança. Ou seja, o número real de militantes mortos ficaria entre os 600 e os 700, em linha com a estimativa israelita — e muito mais do que o primeiro número avançado pelo Hamas.

O que mudou num ano para que o Hamas tenha mudado a estatística? Steven Stotsky sugeria uma explicação: “Inicialmente, falando para o público internacional, era importante para o Hamas reforçar a imagem de que a ação militar de Israel era indiscriminada e desproporcional, enfatizando o grande número de civis e o baixo número de combatentes do Hamas entre as mortes. Porém, mais tarde, o Hamas teve de lidar com o outro lado da moeda: os eleitores do próprio Hamas, ou seja, a população de Gaza, sentiu-se abandonada pelo governo do Hamas, que não tinha feito esforços para a proteger.

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