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Reportagem sobre a Saúde Mental: Entrevista ao Presidente da Associação de estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, Duarte Tude Graça, e à Diretora do Gabinete de Apoio ao Estudante, Ana Rita Sobral. Também fotografias da biblioteca da FMUL, a fachada do edífício Egas Moniz e do Hospital Santa Maria, em Lisboa. 6 de Abril de 2023 Hospital Sta. Maria, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Crianças em pânico e pais a correr para as escolas. O massacre que não existiu não foi "só" uma "brincadeira de mau gosto"

Massacre anunciado esta semana no TikTok não aconteceu mas teve impacto em crianças e jovens, sobretudo nos que já sofrem de ansiedade. Psicólogas dizem que pode ser oportunidade para trabalhar medos.

“Massacre.” A palavra entrou no carro de Ana, 48 anos, na passada segunda-feira, de chofre, assim que apanhou a filha mais velha à porta da escola, em Campo de Ourique, no centro de Lisboa. “Mãe, os meus colegas estão a dizer que no dia 20 vai acontecer um massacre na escola… O que é um massacre?”, perguntou Diana, 12 anos.

No caminho de regresso a casa, com as duas filhas no banco de trás — Matilde, de 10, também ainda não estava familiarizada com o termo —, Ana e o marido explicaram, “dentro do possível”, o que significava aquela palavra e tentaram tranquilizar as crianças. “Isso só acontece nos Estados Unidos, não se preocupem.”

A seguir, e uma vez que perceberam que as explicações se estavam a revelar insuficientes (que é como quem diz, que Diana não dava mostras de se acalmar), sugeriram-lhe que no dia seguinte tentasse “armar-se em detetive” e apurasse de onde tinham afinal vindo os vídeos de TikTok de que os colegas falavam e que garantiam que na quinta-feira, dia 20 de abril de 2023, a escola ia estar sob ataque. “Se isso for mesmo verdade, é grave e é um crime. Portanto, vais tentar perceber mais e, se for caso disso, vais falar com a diretora de turma.”

Assim foi: na terça-feira, dia 18, findas as aulas, Diana entrou no carro da família a parecer outra. “Vinha muito satisfeita porque tinha feito o seu papel de detetive e percebido que aquelas ameaças já tinham acontecido noutros países, sem que houvesse qualquer massacre”, conta a mãe. “Os professores disseram-lhe para estar sossegada, que era só alguém a querer assustar as crianças. Na quarta-feira estava tranquila — se bem que continuasse a falar no dito massacre. Disse-lhe que, se fosse verdade, já havia notícias sobre isso em todo o lado, e não falou mais no assunto.”

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“Estava debaixo das escadas de um dos pavilhões, no escuro, a falar baixinho, cheia de medo. Contou-me que os colegas tinham passado a manhã a dizer que o massacre ia ser às 10h e que, mais ou menos a essa hora, os miúdos tinham fugido todos aos gritos do recreio"
Ana, mãe de Diana, de 12 anos

Foi só depois de as filhas irem para a cama, nessa mesma noite, que Ana percebeu que a história era bem maior e não estava circunscrita à escola básica que a filha mais velha frequenta. Uma sobrinha, auxiliar numa escola do ensino básico em Oeiras, telefonou-lhe preocupada: não sabia o que dizer às mães das crianças que não paravam de lhe ligar e mandar mensagens, a perguntar o que sabia “disto do massacre” e se achava se deviam ou não levar as crianças às aulas no dia seguinte.

Escolas. “Brincadeiras de mau gosto” investigadas desde o início do mês. O alerta interno da PSP no dia 13 e PJ em contactos internacionais

“Desliguei o telefone e fui pesquisar: no Brasil, a situação estava a ter uma grande dimensão, havia polícias em todo o lado, era o aniversário de Columbine e também do Hitler”, recorda. “Fiz rapidamente o filme: no Brasil estava a acontecer e há pouco tempo tinha havido um ataque a uma creche, os miúdos veem o TikTok e acham que aqui é igual. Nunca pensei sequer que fosse uma possibilidade acontecer alguma coisa em Portugal. Aliás, se tivesse tido receio não as tinha levado a escola.”

Como é do conhecimento geral, não aconteceu. Há semanas que a PSP e a PJ monitorizavam as redes sociais, depois de terem sido detetados alguns conteúdos com referências a um massacre, mas nenhum desses casos esteve sequer perto de se materializar. Ana sabia disso. Durante o dia de trabalho, manteve-se atenta às notícias e às declarações do diretor nacional da PSP, que cedo veio a público garantir que tudo não tinha passado de uma “brincadeira de mau gosto” e que não existiam indícios de qualquer risco.

"Teve aula de inglês e disse-me que a professora tentou acalmá-los, dizer-lhes que era uma invenção, mas sem sucesso. Algumas colegas choraram, outra trancou-se na casa de banho, muitos começaram a ligar para os pais, a pedir para ir para casa. Confesso: fez-me confusão vê-la no escuro. Quando vi a cara dela, toda encolhida no escuro, percebi que estava mesmo stressada e disse-lhe que a ia buscar”
Ana, mãe de Diana, de 12 anos

Por isso mesmo, quando Diana, que de manhã nem tinha feito qualquer menção ao “dia do massacre”, lhe enviou o primeiro SMS, a dizer que dois desconhecidos tinham tentado entrar na escola, que alguns colegas garantiam que tinha havido um ataque na escola ao lado, e que tinha muito medo, tentou tranquilizá-la.

Quando, por volta do meio-dia, depois de vários SMS e algumas notas de voz, estabeleceu finalmente contacto direto com a filha, através de vídeochamada, ficou com o coração nas mãos. “Estava debaixo das escadas de um dos pavilhões, no escuro, a falar baixinho, cheia de medo. Contou-me que os colegas tinham passado a manhã a dizer que o massacre ia ser às 10h e que, mais ou menos a essa hora, os miúdos tinham fugido todos aos gritos do recreio. Desde essa altura, não saiu mais do pavilhão”, descreve. “Teve aula de inglês e disse-me que a professora tentou acalmá-los, dizer-lhes que era uma invenção, mas sem sucesso. Algumas colegas choraram, outra trancou-se na casa de banho, muitos começaram a ligar para os pais, a pedir para ir para casa. Confesso: fez-me confusão vê-la no escuro. Quando vi a cara dela, toda encolhida no escuro, percebi que estava mesmo stressada e disse-lhe que a ia buscar.”

“Foi mais uma prevenção emocional do que medo de que lhes acontecesse alguma coisa”

Como Ana, garante a psicóloga especialista em adolescentes Bárbara Ramos Dias, muitas outras mães e pais saíram do trabalho mais cedo esta quinta-feira para ir buscar os filhos aterrorizados à escola.

“Passei o dia a falar sobre o assunto, tanto com os miúdos que foram à consulta e que se queixaram, porque tinham medo e os pais os obrigaram a ir à escola, como com mães, que me telefonaram a perguntar o que deviam fazer, porque os filhos estavam a pedir para ir para casa”, revela. “Não aconteceu nada, mas claro que isto não foi só ‘uma brincadeira de mau gosto’. Há consequências nos miúdos e depois também pode dar ideias a outras pessoas, começa a ter outras repercussões. Houve, por exemplo, uma ameaça de bomba na Universidade Nova, e tudo isso faz com que os miúdos agora estejam todos muito mais assustados.”

Mãe de três filhos, de 16, 14 e 10 anos, Bárbara Ramos Dias não passou pelo mesmo problema. Até porque, de véspera, quando o pânico começou a alastrar nos grupos de pais em que participa no WhatsApp, tomou logo a decisão de não os levar à escola. “Pediram-me para não ir e, em família, tomámos a decisão. Estavam muito ansiosos e não valia a pena estarem com aquela sobrecarga emocional o dia todo nas aulas. Foi mais uma prevenção emocional do que medo de que lhes acontecesse alguma coisa”, explica a psicóloga, que partilhou a decisão na sua página de Instagram.

“Não aconteceu nada, mas claro que isto não foi só ‘uma brincadeira de mau gosto’. Há consequências nos miúdos e depois também pode dar ideias a outras pessoas, começa a ter outras repercussões. Houve, por exemplo, uma ameaça de bomba na Universidade Nova, e tudo isso faz com que os miúdos agora estejam todos muito mais assustados”
Bárbara Ramos Dias, psicóloga

Apesar de ter tido várias respostas de pais a validar a posição e a dizerem que fizeram exatamente o mesmo, também houve quem a acusasse de “alimentar o medo”. “Não é um dia que lhes vai fazer mal. Para que é que os miúdos hão de estar ansiosos à espera que rebente uma bomba ou que apareçam facas? Não é alimentar o medo, é, sim, proteger, a nível emocional, crianças que já são ansiosas. Que já passaram por histórias de pandemia, por esta coisa toda da guerra, que tem estado a ver estas coisas todas diferentes, e agora mais esta”, justifica-se, concedendo que não existem respostas certas e que cada família deverá sempre decidir o que é melhor para si. “Crianças que não sejam ansiosas e que não tenham qualquer problemática, tudo bem, agora se temos crianças que estão ansiosas e que estão com medo, vamos obrigá-las a ir? Não, isto não é terapia de choque”, defende.

Os filhos de Bárbara Ramos Dias andam na escola em Carcavelos, um dos locais que as ameaças partilhadas via TikTok visavam. A filha de Ana frequenta o 5.º ano numa escola praticamente ao lado de uma esquadra e em frente a um organismo do governo, policiado 24 horas por dia.

“Se algum dia houver alguma coisa, não é ali”, ri-se, para depois admitir que, “durante um nanossegundo”, também ela, adulta, informada, teve medo de que as ameaças se materializassem — e se com ela foi assim, o que dizer, então, das crianças que encontrou em fila, à porta da escola, à espera de que os respetivos pais as fossem “socorrer”?

"Para que é que os miúdos hão-de estar ansiosos à espera que rebente uma bomba ou que apareçam facas? Não é alimentar o medo, é, sim, proteger, a nível emocional, crianças que já são ansiosas. Que já passaram por histórias de pandemia, por esta coisa toda da guerra, que tem estado a ver estas coisas todas diferentes, e agora mais esta”
Bárbara Ramos Dias, psicóloga

“Acho que houve ali uma histeria coletiva criada pelos próprios putos, que estavam todos na expectativa de que ia acontecer alguma coisa”, analisa, cerca de 24 horas mais tarde. E, ato contínuo, recorda como, quando estava à porta da escola, sugestionada por tudo o que estava a acontecer, também os habituais gritos vindos do recreio da escola primária mesmo ali ao lado lhe pareceram tudo menos normais. “Meti a Diana no carro e fui falar com o porteiro, para perceber o que tinha acontecido. Durante o tempo em que lá estive a gritaria na escola do lado era de facto arrepiante, parecia que estavam a cortar criancinhas. Se calhar aquele é o barulho normal na hora de recreio, mas quando acabas de ouvir estas histórias ficas na dúvida.”

Claro que o relato do porteiro, exasperado depois de uma manhã a tranquilizar pais e mães — como a senhora a tremer que nem varas verdes que lá chegou em pânico, a dizer que tinha ouvido que a escola tinha sido atacada e já havia três mortos —, acabou com todas as questões. “Não esteve aqui ninguém, não chamei a polícia, não aconteceu nada”, parafraseia Ana. “E na escola do lado também não.”

“Neste momento, as escolas devem dizer que são seguras e que têm espaços seguros”

Mais importante, aponta a psicóloga Catarina Marques, não será o que não aconteceu, mas o que esta a situação — que, enfatiza, “não deve ser empolada” — acabou por revelar. “Às vezes há crianças que têm medos sobre determinadas áreas e não sabem ainda falar sobre eles, e que acabam por canalizar tudo para uma situação destas, de medo da catástrofe, que é uma ansiedade muito grande de que algo mais genérico venha a acontecer. Isto pode dar-nos um sinal de que esta criança tem ali medos e que nos está agora a dar a oportunidade de poder vir a pensar sobre eles”, aponta a especialista.

“Não se pode empolar a situação, mas também não se pode fingir que ela não aconteceu, que houve este burburinho nas escolas e nos miúdos. Neste momento, acho que as escolas devem dizer que são seguras e que têm espaços seguros. E devem abrir um espaço para se poder falar sobre isto e sobre os medos dos jovens. Devem aproveitar isto para que os psicólogos que estão nas escolas possam dinamizar com cada turma um espaço de reflexão sobre que medos é que podem ser falados. Escolas, famílias, ATL’s, todos têm de estar cada vez mais atentos ao lado emocional dos miúdos, até porque ainda estamos a viver muitas das consequências de termos estado estes anos em pandemia — e os jovens foram dos que mais sofreram com essa realidade”, recorda a especialista, defendendo que será sempre necessário olhar para os dois prismas da questão e ajudar não apenas quem tem medo, mas também quem, tendo medo, escolhe aterrorizar os outros.

“Há muitos miúdos adolescentes que começam a desenvolver ataques de pânico. Na adolescência há toda uma revisão da identidade, que convida muito a que os jovens se questionem sobre quem são e que partes têm: ‘Tenho partes minhas capazes de destruir o outro?’. Temos de pensar nos dois lados: é o outro mas também sou eu, que me posso rever e projetar no outro e colocar tudo o que é mau de mim no outro, que me vem destruir”, problematiza.

"Não se pode empolar a situação, mas também não se pode fingir que ela não aconteceu, que houve este burburinho nas escolas e nos miúdos. Neste momento, acho que as escolas devem dizer que são seguras e que têm espaços seguros. E devem abrir um espaço para se poder falar sobre isto e sobre os medos dos jovens. Devem aproveitar isto para que os psicólogos que estão nas escolas possam dinamizar com cada turma um espaço de reflexão sobre que medos é que podem ser falados"
Catarina Marques, psicóloga

Em consulta, esta quinta-feira, também a psicóloga Catarina Marques se deparou com o tema do dia. “Tive uma sessão com uma criança que está a desenvolver uma vinculação cada vez mais segura numa família de acolhimento. Foi das crianças que teve mais medo que este massacre acontecesse, porque é quando temos mais esperança no futuro, sobretudo se não a tivemos antes, que temos mais medo de o perder”, descreve, explicando que, obviamente, nem todas as crianças e adolescentes reagem de forma igual à mesma ameaça.

“Nem todos se deixam levar pelo medo, quem está mais seguro nas suas vinculações e conhece melhor o sistema não se deixa abalar por uma situação cuja veracidade não se percebe. E claro que também depende um pouco da idade e da maturidade da criança”, explica.

Bárbara Ramos Dias não destoa. “Tem tudo a ver com a personalidade de cada um, os mais entusiastas e positivos não se deixam afetar, nem querem saber. Os mais ansiosos, e os que antecipam cenários negativos, claro que estão a sofrer muito mais”, diz, para depois voltar a recordar os danos provocados por mais de dois anos de pandemia e os efeitos adicionais que a situação do pseudo massacre poderá ter neles.

“Depois da pandemia, os miúdos ficaram muito mais ansiosos. É como se costuma dizer, ‘corpo parado, cabeça a mil’. Na pandemia estiveram muito parados, tiveram muito tempo para pensar e ficaram muito mais ansiosos, muito mais ansiosos. Com doenças psicossomáticas, com vómitos, com diarreias… Tenho miúdos que me dizem: ‘Vou na rua e acho que me vão raptar’. Tenho histórias destas todos os dias e com isto esses medos vão aumentar ainda mais. Agora, cabe-nos a nós, adultos, dar-lhes segurança.”

“É expectável que nos próximos dias algumas crianças tenham medo de ir para a escola. Mas o mais importante é que estes miúdos que não conseguem ir à escola tenham um acompanhamento em casa e que não fiquem em casa sozinhos, a jogar computador. É importante que tenham algum adulto que fale com eles sobre o que estão a sentir e, se isto for uma coisa persistente, que os levem a um profissional de saúde mental"
Catarina Marques, psicóloga

Esta sexta-feira, a filha de Ana disse-lhe que não queria ir à escola, ainda tinha medo. Já a irmã, de 10 anos, nunca esboçou sequer qualquer pedido do género. “É muito mais positiva, não se importa com o que os outros pensam. É do género: ‘Se alguém aparecer com uma arma dou-lhe um pontapé, tiro-lhe a arma e dou-lhe um tiro’”, ri-se a mãe, que passou as últimas horas do “dia do massacre” a conversar com a filha mais velha e a desconstruir-lhe os argumentos.

Quando chegou a hora de sair de casa para ir para a escola, nem deu hipótese a Diana: “Não vai acontecer nada hoje, era só ontem, vais para a escola”. Mas, se o tivesse feito, dizem as psicólogas ouvidas pelo Observador, também não teria sido grave.

“É expectável que nos próximos dias algumas crianças tenham medo de ir para a escola”, concede Catarina Marques. “Mas o mais importante é que estes miúdos que não conseguem ir à escola tenham um acompanhamento em casa e que não fiquem em casa sozinhos, a jogar computador. É importante que tenham algum adulto que fale com eles sobre o que estão a sentir e, se isto for uma coisa persistente, que os levem a um profissional de saúde mental.”

Esta sexta-feira, os três filhos de Bárbara Ramos Dias já foram à escola. “E foram tranquilos, porque se sentem seguros”, realça a psicóloga. “Perceberam que a escola estava cheia de polícia e que, afinal, as coisas são controladas. Porque aquilo de que eles têm medo é do desconhecido.”

Apesar de garantir que não existem receitas milagrosas, o conselho que deixa é igual para todos os pais de crianças e adolescentes, partindo do princípio de que não existem problemas associados. “O importante agora é ter uma conversa franca, honesta, com clareza e com amor.  Explicar o que se passou e dizer que, de facto, em princípio não vai acontecer [um massacre], mas, se acontecer, [explicar-lhes] o que devem fazer, para lhes dar confiança para irem à escola. Como fazemos com os terramotos”, compara. “Ontem e hoje passei o dia a repetir estas dicas. Quase todos me disseram que, se acontecesse, começavam a correr: ‘Não, não vais correr, porque aí dás mais nas vistas, escondes-te num sítio, sossegadinho, para que ninguém te veja’.”

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