A ideia de um jantar que só termina de madrugada costuma ser agradável. Se é certo que no final alguém terá sempre de lavar a loiça, também é verdade que à inevitável tarefa doméstica se antecedem, se tudo tiver corrido bem, conversas e gargalhadas movidas pela cumplicidade que junta amigos repasto após repasto.
Esta quarta-feira à noite, também os líderes dos 28 países da União Europeia se sentaram à mesma mesa para jantar — e também só se levantaram já de madrugada, com os ponteiros do relógio a bater nas 4h35. Só que há muito que a mesa de jantar do Conselho da Europa deixou como a mesa imaginada no parágrafo anterior. Ali, as conversas já pouco ou nada se fazem de cumplicidade, são raras as gargalhadas que se ouvem e cada vez mais são as dúvidas de que haja amigos à mesa.
A cimeira do Conselho Europeu desta quarta e quinta-feira não era para ser sobre a crise migratória. Na agenda, estavam temas como a reforma da moeda única e uma maior integração. Mas a agenda de dois países sobrepôs-se à da Europa. Primeiro, porque em Itália passou a governar Giuseppe Conte (do Movimento 5 Estrelas) e Matteo Salvini (da Liga). Deste último, resultou a decisão de impedir que dois navios com centenas de migrantes atracassem em portos italianos. Depois, porque na Alemanha o governo de Angela Merkel foi palco de uma revolta interna, por parte dos parceiros de coligação da CSU, com os conservadores a quererem apertar as regras para a presença de requerentes de asilo em solo germânico.
Assim, sob pena de irritar aquela que é a quarta maior economia da UE ou de involuntariamente derrubar o governo da maior potência europeia, os líderes dos 28 sentaram-se à mesma mesa e deixaram o mais complicado — o tema da crise migratória — para o fim.
O resultado da noitada dos líderes europeus é, entre os outros temas abordados ao longo do dia, um acordo dividido por 12 pontos. Neles, destacam-se as seguintes ideias:
- O acolhimento de refugiados e requerentes de asilo passa a ser feito em “centros controlados criados nos Estados-Membros” e “numa base voluntária”, ao contrário do anterior sistema de quotas;
- Será explorada a possibilidade de construir “plataformas de desembarque regionais” em “países terceiros pertinentes”, que poderão servir para selecionar quais migrantes serão elegíveis para o estatuto de refugiado;
- A agência de proteção das fronteiras da União Europeia, a Frontex, vai ter um “aumento dos recursos” e o seu mandato vai ser reforçado.
Acolhimento de refugiados na UE passa a ser feito numa “base voluntária”
Contactadas pelo Observador, três especialistas no tema das políticas migratórias olham para o acordo atingido esta madrugada com ceticismo e tecem-lhe várias críticas, nomeadamente à forma vaga como aborda questões muito concretas.
“Este Conselho Europeu não está preocupado com a operacionalização dos acordos a que a chegou, mas antes em entregar algo. Está na consciência de todos que estes mecanismos não são para funcionar de forma sustentada e pensada”, diz Patrícia Lisa, investigadora do think-tank espanhol Real Instituto Elcano. “É uma manta de retalhos.”
Com este acordo, fica consumado o fim anunciado do sistema de quotas, anunciado em setembro de 2015 para distribuir de forma obrigatória pelos 28 países da UE, e ao longo de dois anos, um total de 160 mil refugiados localizados em três países: 54 mil na Hungria, 50 400 na Grécia e 15 600 em Itália. Porém, este sistema acabou por não ser respeitado a nível europeu, tendo sido distribuídos apenas 34 690 pessoas ao fim de quase três anos.
Esta é uma alteração de base na política europeia para os refugiados, que surge numa altura em que o número de entradas atinge os valores mais baixos dos últimos anos. Depois do pico de pedidos de asilo de 2015 (1,3 milhões), os números desceram consistentemente: 1,2 milhões em 2016; 704 mil em 2017; e 131 mil no primeiro trimestre de 2018, o que representa um decréscimo de 25% no período homólogo do ano anterior.
Alguns dos países, como a Grécia e Itália, quiseram levar para a mesa a discussão do Tratado de Dublin, que refere que cada requerente de asilo deve permanecer no país em que é registado à entrada na Europa. Uma vez que a maior parte das chegadas de migrantes nos últimos anos tem sido naqueles dois países, a par de Espanha, é para eles uma prioridade a alteração destes termos. Porém, os países que não têm uma fronteira externa demonstram pouca abertura para esta ideia. Ainda antes da cimeira, o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, dizia que a obrigação era a de haver um registo no país de chegada e nunca noutros, como o seu, sem fronteira com o Mediterrâneo. “Qualquer um sabe que, tendo em conta a situação geográfica da Áustria, eles só poderiam chegar de paraquedas”, ironizou, em declarações ao Politico.
Como sublinha Patrícia Lisa, a discussão de Dublin acabou por não ser um tema desenvolvido nesta cimeira. “A discussão das regras comuns para o sistema de Dublin não aconteceu e foi completamente ultrapassada por uma situação que não se justifica, no sentido em que a UE até estava a conseguir diminuir as taxas de entrada irregulares”, diz. “Só que era preciso haver um acordo, desse por onde desse. E a ideia da base voluntária é, no fundo, a solução encontrada para evitar dizer que se falhou redondamente nas negociações de Dublin”.
Ainda assim, sobram dúvidas quanto à eficácia do sistema desenhado esta madrugada pelos 28 líderes da União Europeia. “Estou cética quanto à capacidade de este acordo lidar com este problema, porque a política de refugiados na Europa está dividida entre visões nacionais e está a afastar-se dos princípios da solidariedade e da responsabilidade partilhada”, diz ao Observador Petra Bendel, do Expert Council of German Foundations for Integration and Migration.
A investigadora alemã refere que, neste momento, existem quatro blocos dentro da UE para lidar com a política de refugiados. O primeiro diz respeito aos países que estão nas fronteiras externas, mais expostos ao fenómeno das migrações, como é o caso de Grécia e Itália; o segundo, que está “a ficar cada vez mais pequeno”, inclui países que “ainda defendem uma solução europeia para esta questão”, elencando entre estes o caso de Portugal; o terceiro, onde inclui países como a Áustria, estão a “cada vez mais restringir as políticas de integração de refugiados e a abdicar da solidariedade”; e, por fim, o quarto grupo, onde se encontram os países do Grupo de Visegrado, com a Hungria à cabeça, que são contra a entrada de refugiados de forma geral. A Alemanha e a França, acrescenta a investigadora, “estão a entrar e a sair continuamente do segundo e do terceiro grupo”.
Para Susi Dennison, especialista em políticas para a migração e refugiados do think-tank European Centre for Foreign Relations (ECFR), a inclusão do voluntarismo como conceito-chave para o acolhimento de requerentes de asilo neste acordo é “o mais longe que os defensores do federalismo europeu e de um modelo integracionista podiam estar de um triunfo”.
Ao Observador, a investigadora do ECFR coloca um prazo de validade a este acordo: “Uma vez que ele é muito pouco claro em vários pontos, a Europa ficará com ele provavelmente até chegar uma nova crise de refugiados. E isso é impossível prever”.
Ainda antes da cimeira, Donald Tusk reagiu às críticas que alguns fizeram às suas propostas para esta cimeira — e que acabaram, em matéria de imigração, por ser aprovadas quase na sua plenitude — acenando com o fantasma do populismo. “Há quem possa pensar que eu sou demasiado duro nas minhas propostas para as migrações. Mas, acreditem, se não chegarmos a acordo em torno destas propostas, então vamos ver outras verdadeiramente duras a serem propostas por tipos verdadeiramente duros”, advertiu o presidente do Conselho Europeu.
Patrícia Lisa descreve o momento sendo de um “clima de pânico” instaurado entre os líderes do mainstream político europeu, o que os levou a tomar medidas que em 2015 tomavam como impensáveis. Porém, Susi Dennison acredita que, ao aprovar um acordo que agrada acima de tudo ao bloco mais conservador da Europa, não se encontrou um antídoto para o problema. “Antes pelo contrário, na verdade só vai ajudar ainda mais os populistas. O que a AfD, Marine Le Pen, Salvini e tantos outros vão retirar desta cimeira é que eles sempre estiveram certos e que os partidos do mainstream finalmente aceitaram as suas ideias”, diz a investigador do ECFR.
Plataformas de desembarque em África: mais perguntas do que respostas
Uma das medidas mais importantes, mas não por isso mais detalhada, deste acordo é a intenção – a ser explorada “rapidamente” – de abertura de “plataformas de desembarque regionais” em países-terceiros da União Europeia, com a cooperação do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM). A ideia não é nova — só que, até agora, nunca tinha reunido consenso na Europa.
O primeiro a propô-la foi Tony Blair, em 2003, altura em que ainda era primeiro-ministro do Reino Unido. Dois anos depois, em 2005, foi a vez do então ministro da Administração Interna da Alemanha, Otto Schily. Com a crise de refugiados de 2015, a ideia voltou a ser proposta, então pelo primeiro-ministro de Itália, Matteo Renzi, e pelo seu homólogo húngaro, Viktor Órban. A estes, entretanto, juntou-se a Áustria, França, Espanha e Dinamarca.
No acordo assinado esta madrugada, esta proposta vê enfim a luz verde, com os 28 países da União Europeia a assinarem por baixo. Mas a questão não se adivinha tão simples como aquele documento parece querer torná-la. Até porque, na antecipação da aprovação desta medida, já três países fora da UE vieram dizer que não estão disponíveis para fazerem parte deste programa. São eles a Tunísia, Marrocos e a Albânia. Assim, olhando estritamente para o Norte de África, sobra a Argélia, a Líbia e o Egito.
“O conceito destas plataformas regionais de desembarque continua a ser completamente confuso e podemos até estar perante um eufemismo”, refere Petra Bendel, que acaba por admitir que tem mais perguntas do que respostas sobre esta medida, que desta vez foi colocada em cima da mesa após proposta do presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk.
Ao Observador, a investigadora alemã faz a longa lista de perguntas que importa fazer e às quais o acordo não oferece resposta: “Onde é que os barcos vão desembarcar? Em que países é que elas vão estar e, entre estes, quais é são países-terceiros seguros? Vão ser recebidos antes, durante ou depois da viagem? E estas plataformas vão servir para redistribuir ou para processar pedidos de asilo? Se for esse o caso, quem é que trata do processamento? E no caso de conseguirem asilo, para onde vão as pessoas? Suécia ou Hungria? E no caso de serem rejeitados, vão voltar mesmo para os seus países de origem? E se não voltarem, o que é que lhes acontece e o que é que isso quer dizer para o país anfitrião?”.
Sobre este tema, Petra Bendel conclui que sobram “demasiadas questões quanto à legalidade e exequibilidade” do que ficou acordado.
No acordo, lê-se ainda que estas plataformas “deverão funcionar mediante a diferenciação das situações individuais, no pleno respeito pelo direito internacional e sem criar um fator de atração”.
Patrícia Lisa coloca algumas dúvidas em relação à capacidade de países-terceiros gerirem estas plataformas, comparando-os com a Turquia, com quem a UE assinou um protocolo em 2016, onde ficou estabelecido que em troca de 3 mil milhões, o país de Recep Tayyip Erdoğan se comprometia a receber todos os migrantes irregulares que chegassem à Grécia e a impedir que mais chegassem dessa forma à Europa.
“A externalização é sempre complicada e funciona de forma trémula. Estamos a falar de estados que não estão ao nível da Turquia e que não têm a mesma capacidade de implementação de medidas desta dimensão que a Turquia tem, apesar de as coisas terem estado longe de correr bem naquele caso”, disse a investigadora portuguesa sediada em Madrid.
Porque é que os refugiados não querem voltar para a Turquia?
Insistindo na sua crítica de que o acordo é pouco específico em questões onde importa sê-lo, Susi Dennison refere: “O acordo usa uma linguagem vaga, provavelmente de forma intencional, porque desta forma estão escondidas diferentes interpretações que podem ser feitas consoante o seu autor. Por isso, Giuseppe Conte pode chegar a Roma e dizer que conseguiu a solidariedade da Europa e, ao mesmo tempo, Angela Merkel pode chegar a Berlim e dizer que há um entendimento europeu que lhe permite ter o assunto controlado”.
Em casa onde não há pão, cada um puxa a brasa à sua sardinha
Na conferência de imprensa que deu depois da cimeira, Angela Merkel falou abertamente da crise interna no seu governo, aberta com a tomada de posição do parceiro de coligação CSU, que pediu à chanceler a aprovação de uma série de medidas restritivas à entrada de refugiados e requerentes de asilo na Alemanha.
Para já, a chanceler alemã pode respirar de alívio — ou pelo menos acredita que assim deve ser. Admitindo que a “tensão na Alemanha” funcionou como um “impulso” para chegar a “soluções que talvez não teríamos alcançado de outro modo”, Angela Merkel disse acreditar que estas medidas são suficientes para convencer a CSU a ficar do seu lado. “Se implementarmos tudo o que o acordámos a 28 e bilateralmente, então é mais do que equivalente [ao que a CSU exigiu], é até melhor”, disse. “Mas eu só vos posso dar a minha opinião.”
Também Giuseppe Conte procurou dourar a sua pílula, recusando ter acedido à pressão da chanceler alemã. “Eu não assinei nenhum acordo específico com Merkel”, disse na conferência de imprensa. E, quanto ao acordo que assinou com os restantes 27 países da UE, e cujas negociações chegaram a estar bloqueadas perante a sua própria ação, Giuseppe Conte disse que Itália conseguiu “70% daquilo que queria”.
Já Emmanuel Macron, que falhou o seu objetivo de tornar esta cimeira num palco para o seu impulso federalista, atribuiu a França um papel essencial a uma mesa de negociações: “Fomos facilitadores de posições que eram de conciliação difícil, entre a crise política italiana, a crise política alemã e as tensões com Visegrado”.
Apesar de ser novato nestas andanças, também Pedro Sánchez procurou projetar este acordo. Apesar de dizer que “não foi o melhor dos acordos possíveis”, acrescentou que “a partir de agora, quando alguém chega a Malta, Espanha, Itália ou Grécia, essa pessoa está a chegar à União Europeia”. Faltou, porém, acrescentar, que essa mesma pessoa chega à UE que tiver propensão para o voluntarismo.
E em nome dos quatro países do Grupo de Visegrado — Hungria, Polónia, Eslováquia e República Checa — falou o primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki. Contente com o resultado da cimeira, que deitou por terra a obrigatoriedade de receber refugiados que estes países tanto criticaram, o líder conservador disse: “Falámos a uma só voz e convencemos os outros da razão da nossa argumentação”.
Quem também falou foi o primeiro-ministro, António Costa. “Esta foi uma cimeira seguramente muito difícil e onde num aparente consenso expresso no documento não disfarça as divisões profundas que hoje ameaçam a União Europeia em matéria de valores e migrações”, começou por dizer chefe do governo português. No entanto, referiu que Portugal não vai fazer parte dos voluntários a receber os centros de refugiados. “Portugal não se candidata, nem havia razões para isso”, disse, acrescentando que o “país tem tido uma política coerente e constante em matéria de migrações” que se pauta pela “solidariedade interna, participação ativa no controlo das fronteiras externas e ação de cooperação em África”.
O primeiro-ministro não o fez, mas talvez a maneira mais adequada para comentar o desfecho da cimeira (e o jantar) seria a junção de dois ditados portugueses: em casa onde não há pão, todos puxam a brasa à sua sardinha. O problema é que, neste caso, ninguém sabe ao certo quem, como e quando vai lavar a loiça depois do repasto.