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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Crónica de uma encenação anunciada. 83 dias de olheiras, emails e amuos em direto

Segundo OE pós-geringonça foi negociado à letra. PCP fingiu-se de morto mas Costa sempre soube que estava lá. BE perdeu trunfo de parceiro único. Os bolos foram os do costume. A paciência não.

Um pequeno dossier às vezes pode fazer toda a diferença. No caso, era um dossier grande — como convém num Orçamento do Estado — aquele que o dirigente comunista Vasco Cardoso foi buscar ao gabinete do PCP no dia 6 de outubro, ao fim da tarde, para levar para um encontro com o ministro das Finanças na sala do governo ao fundo do corredor. Vasco Cardoso, que por si só não é presença assídua no Parlamento, já tinha entrado na reunião ao lado de João Oliveira, Jorge Cordeiro e Duarte Alves, mas voltaria atrás para ir buscar o dossier. Foi isso que fez os jornalistas arregalarem os olhos e darem conta da movimentação. É que o Bloco de Esquerda já tinha agendado uma reunião com o Governo para essa noite, às 21h. Mas era o PCP que se estava a dirigir para lá… Eram 18h.

Não é costume o PCP evidenciar que tem uma reunião com o Governo, pelo menos enquanto decorre o processo de negociação de um Orçamento. Mas esta era diferente. E o PCP queria mostrar que era diferente. Tanto que a movimentação inicial aconteceu bem ali à frente de todos os jornalistas que tinham estado a acompanhar a estafa de audiências do ministro João Leão com os partidos e deputados únicos para apresentar as linhas gerais do Orçamento. Vasco Cardoso, dirigente e membro do Comité Central que faz parte da comitiva negocial comunista, entrou na sala do Governo, saiu, e voltou com um dossier grande que, por estas semanas, é sinónimo de Período Pré-Orçamental em Curso. Este era o primeiro sinal: o PCP já tinha feito o que tinha a fazer dentro de portas, de forma silenciosa e minuciosa, e podia, agora, de forma mais distendida, entrar no xadrez político que já se ia jogando nos corredores políticos e mediáticos.

Foi por isso que o PCP despachou a reunião orçamental da praxe em poucos minutos, e que depois voltaria mais tarde para se encontrar com o ministro das Finanças para os retoques finais antes de receber a última leva de documentação sobre as propostas que reivindicou para o Orçamento. Estava na reta final. E ainda faltavam seis dias para a data da entrega. No gabinete do grupo parlamentar comunista não se escondia a satisfação por o PCP ter ultrapassado o Bloco e ter ido à reunião primeiro que os parceiros/rivais.

António Costa a chegar à sede do PCP depois das eleições legislativas de 2019 para tentar encontrar um acordo para a legislatura, a 9 de outubro de 2019.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Silêncio Vs. Ultimato

Mas o primeiro take deste episódio já tinha acontecido dois dias antes, no domingo, em horário nobre na SIC, quando o comentador e ex-líder do PSD Luís Marques Mendes tinha anunciado aquilo a que chamou de “reviravolta” nas negociações do Orçamento do Estado: afinal o PCP, que alguns (sobretudo o Bloco de Esquerda) davam como certo que estaria fora de jogo, estava afinal de acordo fechado com o Governo. Iria viabilizar o Orçamento. “Já acertaram tudo o que é essencial”. “É o que está combinado”, dizia o antigo líder do PSD, mostrando-se muito confiante na informação que tinha.

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Certo é que nessa semana, no dia 30 de setembro, o PCP tinha voltado a sentar-se à mesa das negociações com António Costa pela primeira vez desde julho. Jerónimo tinha deixado o Governo às escuras durante praticamente todo o verão, tendo inclusive cancelado uma reunião que chegou a estar marcada para 28 de agosto — e à qual o Bloco foi — por motivos de “agenda”. Primeiro, havia a Festa do Avante, o tempo para falar aos militantes, e logo em ano de congresso e de autárquicas; só depois é que Jerónimo estaria novamente disponível para ouvir António Costa. As primeiras reuniões, de resto, tinham servido para isso mesmo: só ouvir. A comitiva comunista entrava muda e saía calada. Não fazia barulho mediático, não punha informações na comunicação social. E também pouco dizia sobre o que queria daquela negociação. Nada.

O Observador sabe que até meio de setembro tudo o que António Costa tinha para se agarrar do lado do PCP era o caderno de encargos que Jerónimo de Sousa tinha traçado no discurso de encerramento da Festa do Avante. Costa sabia que o PCP queria o aumento do salário mínimo nacional (para 850 euros); queria a criação de um suplemento remuneratório para os trabalhadores dos serviços essenciais e permanentes; um subsídio de insalubridade, penosidade e risco; uma compensação remuneratória e reconhecimento da proteção social dos trabalhadores por turnos e do trabalho noturno; o alargamento do acesso ao subsídio de desemprego; a eliminação dos cortes salariais associados ao lay-off; a proibição dos despedimentos; o fim da caducidade da contratação coletiva.

A lista era longa mas chegou ao destinatário. No debate sobre o Programa de Recuperação e Resiliência, no Parlamento, a 23 de setembro, Costa deu nota disso mesmo: “Retive mais uma vez, como tenho feito disciplinadamente desde a sua intervenção no encerramento da Festa do Avante, as múltiplas preocupações que revela e às quais procuraremos responder na apreciação conjunta que temos em curso“. As palavras não eram inocentes, foram escolhidas à medida dos ouvidos comunistas.

A cordialidade própria de parceiros estava lá, esteve sempre, e mesmo quando todos davam como certo que a distância do PCP era sinal de que os comunistas tinham um pé fora (as “teses” do partido ao Congresso, conhecidas um dia depois desse debate, ainda vieram dar mais força a isso por descolarem do PS e da geringonça), Costa agarrava-se à velha e infalível coerência comunista. É que já na negociação do Orçamento para 2020, a primeira da era pós-geringonça, tinha sido assim: com o PCP mais distante por não ter um acordo político, que o amarrasse, e mais focado em reuniões técnicas do que políticas, nem por isso deixaram de votar a favor. Nem de propósito, o primeiro-ministro não se cansava de recordar, a quem o quisesse ouvir, as palavras do líder parlamentar comunista, João Oliveira, depois do voto contra no Orçamento Suplementar: um voto contra no Suplementar diz apenas respeito ao Suplementar e não compromete negociações futuras.

Quando o PCP só dava silêncio, era a isso que o Governo se agarrava. E nunca achou que o PCP devia ser dado como perdido. Antes pelo contrário. Aliás, António Costa sempre teve a perceção — e isto já vem dos tempos da geringonça — que o PCP é o parceiro mais confiável e que nem é preciso nada escrito para o vincular a acordos. A comitiva comunista é muitas vezes elogiada, dentro de portas, pelo chefe do Governo, que tem especial apreço pela preparação dos elementos que integram as comitivas negociais do PCP. Por tudo isto, Costa não se deixa abalar facilmente com as mudanças de tom e de forma de participação nestes encontros orçamentais por parte dos comunistas. Sabe que no final vai e quase nunca racha, mesmo que os comunistas cinjam o negócio com o Governo a reuniões técnicas e menos políticas como eram as dos tempos da geringonça.

No lado do Bloco essa participação continua a não ser considerada suficiente. Catarina Martins entrou mesmo na penúltima reunião com o primeiro-ministro a pedir mais encontros de alto nível com o primeiro-ministro. O partido que lidera andava impaciente com a falta de avanços do lado do Governo quando se aproximava a data da entrega do Orçamento do Estado o Parlamento. E ficou especialmente irritado quando ouviu António Costa deixar um ultimato numa entrevista ao Expresso.

No fim de agosto, com as negociações suspensas há um mês, o primeiro-ministro fazia a rentrée com esta frase: “Se não houver acordo, é simples: não há Orçamento e há uma crise política”. O BE não gostou e a partir daí sentiu-se a tensão entre as partes. Os bloquistas dramatizaram a “chantagem”, dizendo que se for para isso então o Governo tem sempre o PSD para aprovar orçamentos. Marcelo pôs água na fervura, disse ‘crise política’ nem em sonhos, e na segunda reunião, segundo conta fonte bloquista, “o primeiro-ministro já apareceu com outra postura”.

João Leão, Ministro das Finanças e Cláudia Joaquim secretária de Estado do Orçamento à saída da conferência de imprensa para apresentação do Orçamento do Estado 2021, no Ministério das Finanças.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Leão “mais descontraído” do que Centeno e os “bolos” da praxe

É nesta fase que entram as reuniões técnicas, no Parlamento, para “partir pedra” e tentar aproximar medidas. O ministro das Finanças, João Leão, estava sempre lá, só variavam os ministros sectoriais, entre Trabalho, Saúde, Educação. Começavam depois do trabalho parlamentar, pelas 19h, e terminavam só pelas 2h da manhã. No dia seguinte lá apareciam os mesmos elementos, mal recuperados e de olheiras carregadas que nem as (agora) obrigatórias máscaras disfarçavam. Foi a estreia de João Leão nesta maratona, como ministro das Finanças, e entre os interlocutores há quem note as diferenças face ao antecessor: “mais descontraído”, mais “informal”.

E também bastante mais discreto do que Mário Centeno, tanto que quando na última semana esteve horas no Parlamento praticamente barricado numa sala a receber delegações dos partidos de enfiada, o ministro saía entre cada um dos encontros para apanhar ar cá fora, atravessava os corredores do Parlamento quase sem se dar por ele. Se não lhe dirigirem palavra, João Leão passa encolhido. Nada a ver com a postura altiva do seu antecessor, sobretudo nos últimos tempos de Governo.

Claudia Joaquim, João Leão e Duarte Cordeiro antes da entrega do Orçamento de Estado 2021 na Assembleia da República, a 12 de Outubro de 2020.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Centeno na fase final do seu percurso era muitas vezes motivo de queixa por parte dos parceiros que sempre que apresentavam uma proposta ouviam como resposta um verdadeiro mantra do então ministro: “Essa medida tem de ser avaliada tendo em conta o global do Orçamento”. Curiosamente foi com João Leão, que é mais acessível a este nível, que a negociação chegou a uma ameaça de voto contra por parte de um parceiro.

As reuniões noturnas já são um clássico orçamental entre estas partes. Noitadas sem jantar, onde o que vai orientando os estômagos das comitivas são os “bolos” que Duarte Cordeiro tem no seu gabinete. Quem os descreve é um dos participantes nestas reuniões. Uma herança que já vem de outros tempos, no mesmo gabinete, quando era Pedro Nuno Santos que fazia de pivot dos Orçamentos-geringonça. Pode faltar concordância e até paciência, mas nunca os bolinhos.

Mas desta vez o Bloco saía mais engasgado destas reuniões e o Governo saía impaciente com os ecos que o partido ia deixando na imprensa. Logo no episódio da “chantagem” de crise política, a coordenadora bloquista e vários dirigentes tinham ido para as redes sociais desmontar a tese.

https://www.instagram.com/p/CEeGXsxhnVh/

A 24 de setembro, quando António Costa aguardava em São Bento pela hora do encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, estava tudo pronto para uma receção no jardim, mas os jornalistas não podiam sair. Ainda estavam a decorrer outras reuniões privadas que Costa queria manter assim. Para não ter de passar pelos jornalistas, Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, acabou por ter de sair discretamente pelo portão do estacionamento.

Tinha acabado de haver uma reunião da coordenação política do Governo. O Observador ainda conseguiu ver, além de Ana Catarina Mendes, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva. Em preparação estavam as reuniões ao mais alto nível que estavam para vir, do primeiro-ministro com os líderes do PCP e do BE.

PCP e BE chamados a São Bento. Bloco avisou que quer mais reuniões com Costa presente

Se a partir desta reunião o PCP seguiu mais tranquilo, no Bloco de Esquerda, que até aqui era visto como o parceiro-mor, foi a partir daqui que o caminho se estreitou. Catarina Martins entrou nesta negociação com quatro pilares-chave à espera de conseguir chegar a meio caminho com António Costa: mexer na legislação laboral para proteger os trabalhadores contra os despedimentos; criar uma nova prestação social para quem perdeu o emprego durante a pandemia ou para quem teve uma quebra significativa da atividade; reforçar o investimento na Saúde, contratar mais médicos para satisfazer as necessidades acrescidas do SNS devido à pandemia; e resolver o impasse do Novo Banco — o BE não só não queria nem mais um cêntimo do Orçamento do Estado para o Novo Banco como não queria que o Fundo de Resolução tivesse autorizações de despesa para a Lone Star sem que antes fosse feita uma nova auditoria independente à gestão do banco.

António Costa à saída do debate bimestral a 7 de outubro de 2020.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

De documento em documento até ao e-mail final

As linhas vermelhas eram ditas e repetidas na praça pública a alta voz. A cada reunião, o Bloco saía a dizer que o Governo não se tinha aproximado. Não havia avanços. Mas o Governo ia repetindo que estava empenhado e a fazer um “enorme esforço” negocial com os bloquistas. Foi assim nos últimos 15 dias. Depois 10. Depois 5. O calendário começava a apertar e o Bloco sempre a dizer que as negociações eram “inconclusivas”. Célebre ficou o dia em que Mariana Mortágua deu uma conferência de imprensa na sede do partido para explicar a linha vermelha do Novo Banco quando, à mesma hora, Duarte Cordeiro marcava uma declaração à imprensa de última hora para dar conta dos “avanços” — sobretudo dos aparentes avanços no Novo Banco. “Nem mais um cêntimo do Orçamento do Estado no Novo Banco” foi a frase que começou a ser dita pelo Governo a partir deste dia. Dito assim parecia ir ao encontro do que o Bloco queria. Mas não.

Governo atropela BE para dar conta de “avanços muito concretos e muito significativos”

Era a guerra da “comunicação”. Ganha quem conseguir passar melhor a mensagem e a mensagem dos bloquistas é mais difícil de transmitir: envolve as palavras “Fundo de Resolução”, “ativos tóxicos”, “banca comercial”, “autorizações de despesa”. Daí que as reuniões técnicas que o Bloco tinha com o Governo fossem sempre sustentadas em documentos que serviam de suporte às reuniões. Era assim que as duas partes partiam pedra. “Recebíamos documentos do governo com formulações de medidas e reuníamos sobre esse documento, dizíamos ‘isto serve, isto não serve’, e na reunião seguinte igual”, relata uma fonte das negociações do lado bloquista. Era assim que os pequenos passos iam sendo dados, medida a medida.

Duarte Cordeiro à entrada do debate bimestral a 7 de outubro de 2020.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Foi assim durante três reuniões. Os documentos seguiam por e-mail, eram trabalhados e enviados de volta. Até ao e-mail final. Aí a tensão estava no pico. O Governo tinha feito chegar aos parceiros documentos com avanços concretos na negociação; o PCP apressou-se a responder. Faltava o Bloco. Foi nesse documento, enviado na última sexta-feira, que o Bloco de Esquerda manteve as suas exigências: os quatro pilares continuam sem resposta. Novo Banco, despedimentos, saúde e prestação social. A resposta do Governo chegou no domingo, num e-mail do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro. E dizia mais ou menos assim: ‘A nossa proposta é esta, e vamos entregá-la amanhã na Assembleia da República’.

No Bloco saltou logo a acusação de que o Governo tinha dado as negociações como fechadas de forma unilateral. E na Rua da Palma (onde fica a sede do BE, em Lisboa) a irritação subiu até à ameaça de votarem contra o Orçamento logo na primeira votação quando ouviram António Costa, no sábado, na Guarda, a dizer à margem da cimeira luso-espanhola que estavam “criadas as condições” para um acordo com o BE e o PCP: “Quanto ao essencial não vejo como pode não haver acordo com o BE e o PCP”.

O Bloco não gostou, esticou a corda mesmo no dia da entrega do Orçamento do Estado, com Catarina Martins a admitir à Antena 1 que tal como está o BE chumba a proposta, e o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares teve mesmo de fazer uma declaração pública nos Passos Perdidos, no Parlamento, a acalmar os ânimos e a garantir “disponibilidade total” para continuar a negociar. Antes disso, tinha telefonado pessoalmente aos parceiros bloquistas a esclarecer isso mesmo.

O Orçamento entrou quatro horas depois por aquele  mesmo corredor parlamentar onde estas declarações se tinham cruzado durante a tarde. Uma pen nas mãos do ministro, com horas de contactos e negociações tensas, que desta vez até entrou muito dentro da hora — coisa rara — no Parlamento. Mas o tempo extra ainda está para durar.

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