910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Batatas fritas, conservas e margarinas são alguns dos produtos cuja composição terá de mudar.
i

Batatas fritas, conservas e margarinas são alguns dos produtos cuja composição terá de mudar.

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Batatas fritas, conservas e margarinas são alguns dos produtos cuja composição terá de mudar.

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Da lata de atum ao pacote de batatas fritas. Como a guerra já está a mudar o que comemos

Sem óleo de girassol, por conta da invasão da Ucrânia, a indústria alimentar teve de deitar mãos à obra e inventar novas receitas. Há substitutos pouco consensuais, e até os rótulos são um problema.

Quanto mundo pode caber numa lata de atum? O suficiente para que o estalar de uma guerra obrigue uma indústria inteira a mergulhar em fórmulas e laboratórios para mudar o que lá vem dentro. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, atacou também o chamado “celeiro” da Europa. O impacto do conflito sentiu-se de imediato nos preços de matérias-primas como o trigo ou a cevada, que dispararam face aos receios de escassez. Por força da guerra, a primavera ucraniana também não viu florir os seus extensos campos de girassóis.

O país invadido pela Rússia é responsável por 55% da produção mundial de óleo de girassol. O mesmo que depois é vertido em garrafas, mas também em margarinas, conservas, molhos, batatas fritas, aperitivos e barras de cereais. Juntos, Ucrânia e Rússia representam 80% da produção mundial. Com as torneiras vedadas, a indústria teve de pôr mãos à obra para encontrar soluções em tempo recorde. Sem girassol, o que vai ser dos alimentos como os conhecemos?

Portugal é um grande importador de óleo de girassol da Ucrânia, e por isso estamos a sofrer muito o impacto da guerra. Antes da invasão, o preço do óleo de girassol rondava os 1620 dólares por tonelada métrica, e hoje está entre os 2000 e os 2250 dólares”, contextualiza Miguel Mira, diretor de planeamento da Unilever e presidente da Associação Nacional dos Industriais de Gelados Alimentares, Óleos, Margarinas e Derivados (ANIGOM), que tem como associadas a Unilever, que detém marcas como a Calvé e a Hellmann’s, a Sovena, dona dos óleos Fula, a F. Lima, que detém, entre outras, a Savora, a Extraoils, a Gelgurte, a Torrejana e a Upfield, detentora de marcas como Flora, Becel e Planta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O primeiro impacto da crise do girassol começou a ser sentido no início de março pelos consumidores, não só no preço mas também nos limites impostos à compra de óleo nos supermercados. Três garrafas por clientes, por dia, é a norma. A distribuição justifica a medida como prevenção contra possíveis açambarcamentos.

O óleo de girassol utilizado por esta indústria era “praticamente todo” importado da Ucrânia, pelo que o estalar da guerra obrigou as empresas que dele dependem a um trabalho intenso de prospeção de mercado. Sem girassol, restam à indústria duas alternativas viáveis – a soja e a colza –  e uma problemática – a palma. Para a indústria portuguesa, o foco está nas duas primeiras. Em vez de carregamentos da Ucrânia, as empresas passaram a negociar importações da América Latina, sobretudo do Brasil e Argentina, e da América do Norte. Mas também aqui nem tudo tem sido fácil. “Infelizmente a campanha na América do Sul correu muito mal, por causa da seca. Tiveram perdas de 13% a 15%”, conta Miguel Mira. A esperança reside agora a norte.

“A sementeira na América do Norte decorre em abril e maio, e a colheita entre julho e agosto. Se tudo correr bem, sem problemas climatéricos, teremos este ano óleos alternativos, de soja e colza”, adianta o responsável. O desafio da indústria passa por proceder às alterações sem alterar as características dos produtos, nomeadamente o sabor. “Têm de ser feitas mudanças aos blends (misturas), mas a nossa  indústria tem departamentos de investigação e desenvolvimento muito bons, que está a tentar fazer blends com estes óleos alternativos”, refere Miguel Mira.

Menos óleo, mais azeite

Por toda a Europa, são várias as empresas que já começaram a estudar, e a implantar, as novas fórmulas. Na mais recente apresentação de resultados, no início de abril, o diretor-geral da Nestlé Portugal, Paolo Fagnoni, admitiu que, por causa da falta de óleo de girassol, “vai ser preciso mudar algumas receitas e optar por produtos substitutos”, não detalhando os bens em causa. “Está claro que a situação mundial vai mudar e nós somos parte dessa mudança”, sublinhou o responsável.

Por cá, diz o presidente da ANIGOM, “fala-se que a indústria conserveira pode passar a usar azeite em vez de usar óleo de girassol, tendo em conta que Portugal tem uma produção significativa de azeite e Espanha é um dos grandes produtores mundiais. As empresas estão preparadas para fazer essas substituições”, assegura.

A Ucrânia e a Rússia são responsáveis por 80% das exportações mundiais de óleo de girassol.

Cover/Getty Images

Para já, há empresas que ainda vão resistindo à mudança. É o caso da Bom Petisco, uma das principais marcas de conservas do mercado português. “Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance para não alterar as receitas, nem a qualidade das nossas conservas, salvaguardando o regular funcionamento da nossa atividade”, refere fonte oficial da empresa ao Observador. Por outro lado, acrescenta, “estamos a envidar todos os esforços para conter ao máximo o impacto dos preços no consumidor final, por forma a não penalizar o orçamento das famílias”.

Outras, como a Iglo, especializada em refeições congeladas, referem que o impacto da falta de óleo de girassol da Ucrânia na produção e nos níveis de serviço tem sido, para já, limitado ou inexistente.

Em Espanha, a empresa de conservas Calvo optou por outra estratégia. “Por cada lata, vamos manter a gramagem de atum, mas reduzimos a quantidade de óleo. Primeiro, porque os consumidores acabam por deitar fora uma grande parte deste óleo. Segundo, por causa do preço abusivo que está a ser praticado no mercado”, afirmou ao jornal El País a responsável de marketing da empresa, Marta Gutiérrez.

O regresso de um indesejado

Além das conservas, também a produção de batatas fritas e outros aperitivos tem estado a cozinhar fórmulas alternativas às atuais. Mas aqui, além do óleo de colza, a indústria europeia tem optado por uma alternativa menos consensual: o óleo de palma. No Reino Unido, a cadeia de supermercados Iceland viu-se forçada a assumir um revés. A empresa, que, em 2018, anunciou o compromisso de eliminar o óleo de palma da composição dos seus produtos próprios, foi derrotada pelas circunstâncias. No mês passado, a Iceland Foods foi obrigada a introduzir novamente na composição das suas receitas o óleo mais odiado pelos ambientalistas, porque os custos do girassol tornaram-se incomportáveis.

“Quando a Iceland eliminou o óleo de palma dos seus produtos de marca própria em 2018, de forma a marcar uma posição contra a desflorestação tropical, aumentámos muito a nossa dependência de óleo de girassol. Agora que, de repente, se tornou incomportável, ou impossível de obter, estamos a trabalhar de perto com os nossos fornecedores para encontrar alternativas. Em muitos casos, é possível substituir por óleo de colza, mas há algumas receitas em que o único substituto viável para o óleo de girassol é o óleo de palma, devido às suas propriedades de processamento ou ao sabor”, justificou o diretor-executivo da Iceland, Richard Walker, num post publicado no blog da empresa.

epa08220221 A worker shows an oil palm fruit, in Maria La Baja, Colombia, 14 February 2020 (issued 15 February 2020). Colombian palm oil producers believe there are 'commercial reasons' behind the restrictions that the European Union (EU) and Norway have imposed on biofuels produced with that resource, claiming they do not come from clean crops and they cause deforestation. The EU is planning to phase out palm oil in biofuels by 2030.  EPA/RICARDO MALDONADO ROZO

A Indonésia, maior produtor mundial de óleo de palma, impôs limites às exportações.

RICARDO MALDONADO ROZO/EPA

Citado pelo Politico, Pietro Paganini, da consultora de desenvolvimento sustentável Competere, afirma que “muitas mais empresas” estão a seguir o mesmo caminho, sobretudo as de mais pequena dimensão, já que as maiores, além de terem stock de óleo de girassol para algum tempo, estão preocupadas com as questões reputacionais. Grandes empresas, como a italiana Barilla, que produz massas e molhos, já vieram a público rejeitar o regresso ao óleo de palma.

Já o grupo norueguês Orkla, que detém mais de 20 marcas de produtos alimentares, admitiu que, depois de ter reduzido em mais de 90% o seu uso de óleo de palma nos últimos 14 anos, poderá ter de voltar a enveredar pelo caminho do óleo maldito para produzir, por exemplo, margarina.

“Digo isto com muita tristeza, mas a única alternativa ao uso de óleo de palma nas atuais circunstâncias seria retirar dos nossos frigoríficos e prateleiras uma grande gama de produtos, incluindo batatas fritas congeladas e outros produtos à base de batata”, refere o responsável da Iceland.

A empresa garante que irá usar apenas óleo de palma com certificação de sustentabilidade enquanto último recurso e como medida estritamente temporária numa gama limitada de produtos de marca própria, que deverão começar a chegar às lojas em junho. A indicação sobre o uso do óleo de palma irá aparecer nas embalagens. “Não mudei de ideias em relação ao óleo de palma, e é por isso que esta é uma medida temporária, que não tomaríamos se houvesse alternativas viáveis. A procura massiva por óleo de palma significa, inevitavelmente, continuar a pressionar as importantes zonas de floresta tropical onde a palma é cultivada, e eu mantenho-me cético em relação à existência de óleo de palma sustentável disponível no mercado massificado no qual a Iceland opera”, concluiu o responsável.

Mas nem aqui a indústria tem a vida facilitada. A Indonésia, principal exportador mundial desta matéria, impôs limites às vendas de óleo de palma ao exterior, ao abrigo de uma lei protecionista que obriga as empresas a vender no mercado interno 30% do que tinham previsto exportar. A medida entrou em vigor em março e vai produzir efeitos durante, pelo menos, seis meses. “Antes da invasão russa, o preço do óleo de palma rondava os 1700 dólares por tonelada métrica, e estabilizou nesses valores. Mas os preços estão inflacionados, porque em abril do ano passado estava nos mil dólares”, diz Miguel Mira. Em Portugal, não há, para já, indícios da introdução de óleo de palma nas receitas das empresas como substituto do girassol.

O insustentável preço dos rótulos

As mudanças nas receitas implicam, além do trabalho de laboratório, outra preocupação acrescida para os produtores: a rotulagem. “É um dos maiores desafios”, revela o presidente da ANIGOM. “A indústria tem quantidades significativas de materiais de embalagem já impressos com as formulações antigas e, ao fazer essas mudanças, tem obrigatoriamente de fazer alterações aos rótulos”, explica.

A questão é mais complicada do que possa parecer, diz Miguel Mira, e acrescenta pressão a um setor já esmagado pelos preços da energia, pelo aumento dos custos com logística e pela inflação. “Há um grande problema que é a zona de impressão, que é muito pequena. São precisos mais caracteres e a impressão inkjet (jato de tinta) não o permite. A alternativa são autocolantes, mas é muito caro e de complexa execução. Estamos a tentar arranjar uma opção mais flexível”, refere.

Nesse sentido, foram feitos contactos com a Direção Geral de Alimentação de Veterinária (DGAV), no sentido de esta permitir alguma flexibilidade na rotulagem. E a iniciativa deu frutos. A DGAV reconheceu que “os óleos vegetais, em particular o óleo de girassol, são ingredientes vastamente utilizados pela indústria nacional, não só na produção de conservas, como também noutros bens alimentares”. E que Portugal “não é autossuficiente na produção de óleo de girassol, pelo que depende de mercados externos, nomeadamente da Ucrânia, de forma a garantir um abastecimento adequado às necessidades nacionais”.

"Há um grande problema que é a zona de impressão, que é muito pequena. A alternativa são autocolantes, mas é muito caro e de complexa execução".

Face ao contexto da guerra, a DGAV autorizou “a adoção de medidas excecionais direcionadas à rotulagem dos géneros alimentícios, evitando o descarte do material de embalagem e rotulagem existente, sem comprometer a informação aos consumidores sobre a substituição de matérias-primas”. As empresas podem assim “corrigir a informação da rotulagem relativa aos ingredientes, preservando a embalagem existente, informando o consumidor dessa substituição através de etiquetas autocolantes ou de impressão por inkjet junto à marcação do lote e da data de durabilidade mínima – com a indicação de que o género alimentício contém outro óleo vegetal “óleo de girassol substituído por…”.

A disrupção inesperada levou a indústria a pensar mais além. “Já estamos a preparar o futuro. Estamos a tentar encontrar formas de os rótulos já incluírem a possibilidade de flexibilizarem indicações sobre o uso de óleos alternativos em função da situação contextual, sejam eventos climáticos ou outras condicionantes da oferta”, conta o líder da associação.

Com a autorização da DGAV, que está sob a alçada do ministério da Agricultura, veio a constatação de um facto que o setor tem vontade de mudar: o de que “Portugal não é autossuficiente na produção de óleo de girassol, pelo que depende de mercados externos”.

Para Miguel Mira, esta posição, agravada pela conjuntura atual, deveria ser “um convite aos agricultores de Portugal e Espanha”, para que passem a produzir óleo de girassol. “As características são boas, esta não é das culturas mais onerosas e também não é das que consome mais água”. O responsável lembra que Portugal já produziu girassol, e só deixou de o fazer porque “havia origens alternativas, nomeadamente a Ucrânia, com preços mais competitivos”. Tendo em conta que as probabilidades de haver campanha de girassol na Ucrânia no próximo ano são escassas, “o mercado ibérico pode afirmar-se como alternativa”, considera Miguel Mira. Mas, para isso, “são necessários incentivos financeiros”, sintetiza. Com a guerra na Ucrânia a revelar-se um verdadeiro teste de stress para o setor agroalimentar, a indústria reinventa-se. Uma lata de conservas de cada vez.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.