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NurPhoto via Getty Images

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Da marca de calçado que passou a fazer botas de combate à app que alerta para ataques: como as empresas ucranianas ajudam a guerra

Têm planos para mudar sedes e fábricas para fora, mas muitas ficam no país até à última. Viram a guerra suspender-lhes o negócio, mas tentam dar a volta. E, à sua maneira, ajudar o exército ucraniano.

Se a guerra não tivesse chegado à Ucrânia, março era mês de nova coleção para a Kachorovoska, uma marca ucraniana de calçado feminino que tem no catálogo desde sapatos de salto agulha a botas de couro. “Estávamos a preparar uma nova coleção primavera/verão, criámos um editorial bonito. Estava tudo pronto para ser apresentado aos nossos clientes”, conta ao Observador Mariia Slenzak, diretora de marca, a partir da rede de mensagens Telegram.

Assim que a guerra começou, foi preciso mudar os planos: a marca precisou de uns dias para colocar a equipa em segurança e organizar-se para não ficar parada. Começou por coser os cintos usados pelos militares do exército ucraniano, mas a diretora de produção e fundadora, Olena Kachorovoska, queria mais. Juntou-se a duas outras marcas para fazerem aquilo que melhor sabem fazer: botas, mas adaptadas às necessidades da guerra.

“Uma das fábricas concedeu solas, outra o couro, a terceira deu os trabalhadores e, juntas, começámos a produção de botas de combate para as nossas forças armadas”, descreve Mariia. As marcas confecionaram, sozinhas, as primeiras 500 botas, mas era preciso continuar a pagar salários. “Pedimos ajuda. Criámos uma conta de Instagram para donativos e investimos todo este dinheiro em materiais para fazer as botas”, sem cobrar por elas. Já fizeram 1.326 pares.

Marca de calçado Kachorovoska começou a fazer botas para o exército ucraniano

“Os pares de botas foram cosidos sob o som constante de sirenes, sob a ameaça de ataques aéreos, bombardeamentos de cidades. É precisa uma coragem gigantesca para a nossa equipa trabalhar nestas condições”, salienta Mariia, que prefere não revelar a localização das fábricas por receio de eventuais bombardeamentos.

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A guerra paralisou a atividade de muitas empresas e obrigou-as a delinear em dias planos de sobrevivência, a mudar sedes e fábricas de sítio, o tipo de produção, a adaptarem-se às necessidades da guerra. E a encontrarem formas de, dentro do seu negócio, ajudarem o exército ucraniano a vencer. “Não conheço nenhuma empresa que não esteja a fazer algo pela Ucrânia. Todos os empresários que conheço estão a tentar fazer algo. Mesmo que estejam fora do país, continuam a tentar organizar a logística para fornecer recursos, toda a gente está a ajudar”, diz, por sua vez, Oleksandr Kosovan, CEO da MacPaw.

O CEO que não quer sair de Kiev

Oleksandr Kosovan e os colegas tentam manter uma vida o mais normal possível dentro do escritório, em Kiev — embora lá fora quase nada esteja normal. Quando alguém faz anos, continua a haver bolo — o de Oleksandr foi de chocolate — e presentes — um “baby yoda” falante foi o que recebeu pelo 35.º aniversário, celebrado já em guerra. Mas não houve espaço para grandes comemorações nem brindes — a venda de álcool é proibida e precisam de se manter “focados e em alerta em caso de emergência”, indica ao Observador, numa conversa por Zoom, ladeado pela célebre fotografia de Steve Jobs com os dedos no queixo e por uma janela pequena que é mantida coberta todo o dia.

"Kiev é como uma fortaleza. Nestas semanas tivémos tempo suficiente de preparar as linhas de defesa. É muito pouco provável que [os militares russos] consigam entrar na cidade agora."
Oleksandr Kosovan, CEO da MacPaw

A imagem de Jobs não é inocente. A MacPaw, que Oleksandr fundou em 2008, é uma conhecida empresa ucraniana que desenvolve aplicações para utilizadores da Apple, como a CleanMyMac, com clientes em vários países (os EUA são um dos principais mercados). É ali, no escritório de Kiev, que o CEO está a morar com mais cerca de 20 colegas desde que a guerra começou — depois de ter levado a família (mulher, mãe e duas crianças menores) para um país da Europa ocidental. Ainda que Oleksandr e os seus colegas não pudessem sair do país (a lei marcial impede homens dos 18 aos 60 anos de abandonarem), poderiam ter procurado refúgio em cidades mais seguras. Mas preferiram ficar na capital, para ajudar a aprovisionar o exército ucraniano e os cidadãos que não querem sair.

Kiev é como uma fortaleza. Nestas semanas tivémos tempo suficiente de preparar as linhas de defesa. É muito pouco provável que [os militares russos] consigam entrar na cidade agora. Podem continuar a bombardear Kiev, infelizmente, com recurso à aviação e a bombas, como fizeram em Kharkiv, Mariupol e noutros sítios. Mas é muito difícil tomarem Kiev agora”, defende. A equipa que continua em Kiev tem acesso a internet, a telefone e aquecimento, essencial para os dias e as noites frias do inverno ucraniano. “Estamos bem, por enquanto”, diz Oleksandr. Nem os bombardeamentos recentes na capital os demoveram de ficar.

Dormir não tem sido fácil. As sirenes tocam várias vezes durante a noite, pelo que a alternativa aos sofás e aquecimento do escritório de Kiev foram os colchões que alinharam na cave. Outros preferem dormir nos carros no parque de estacionamento, como Oleksandr, que equipou o seu Tesla com um colchão e mantas para quando os alertas disparam. As sirenes normalmente tocam sete vezes ao dia, duas durante a noite. São tantas as vezes que, admite, por vezes já nem liga. No dia da conversa com o Observador, o CEO tinha dormido no escritório, apesar dos alarmes sonoros. “Estava demasiado cansado para ir para o estacionamento. Sim, ignorei por meu próprio risco, o que é mau, mas pronto”.

Quando as sirenes tocam, os funcionários da MacPaw vão dormir para a cave ou para os carros na garagem

Ao todo, a empresa tem 400 trabalhadores, metade continua na Ucrânia (e apenas cerca de 20 na sede). Os restantes ou saíram entretanto ou já estavam fora antes da guerra, a trabalhar remotamente. Gerir uma empresa à distância, entre sons de sirenes, notícias de bombardeamentos e aproximação do exército russo não tem sido fácil, mas a MacPaw encontrou estratégias para manter os trabalhadores em contacto.

Todos os dias, ao meio-dia, hora de Kiev, é feito um “checkup” através de uma ferramenta interna criada de propósito para informarem sobre a sua segurança, o seu paradeiro e se têm ou não condições para trabalhar. “Acompanhamos toda a gente e temos canais internos de comunicação e informação sobre como podemos organizar a ajuda”, explica Oleksandr.

A empresa dá apoio aos trabalhadores que queiram sair do país, desde alojamento e transporte, e está a abrir um novo escritório em Praga, na República Checa — que, espera, será apenas temporário. Também pagou um mês de salário de avanço para ajudar as famílias nessa mudança.

Ainda assim, o trabalho da MacPaw foi reduzido ao mínimo. Os planos “ambiciosos” para este ano incluíam o lançamento de novos produtos e funcionalidades, mas está tudo em banho-maria. “O nosso objetivo neste momento é garantir a segurança da nossa equipa e tentar organizar o nosso quotidiano numa nova realidade. Vamos tentar perceber o que podemos fazer nestas condições para continuar o nosso negócio”, descreve o CEO.

As equipas que estão operacionais são as que estão fora da Ucrânia e dedicam-se a assegurar que os produtos já existentes não falham, ou a apoiar clientes. Não há novas aventuras, novos lançamentos, novos riscos. É preciso focar os esforços em garantir que o que já existe funciona bem. “Não estamos a desenvolver nada novo de momento. Só mantemos a funcionar os serviços já existentes e damos apoio aos nossos clientes”, adianta. Os produtos da MacPaw, aliás, nunca deixaram de funcionar e Oleksandr assegura que os dados dos utilizadores não estão em risco — não estão alojados em nenhuma infraestrutura ucraniana, mas na AWS [plataforma da Amazon na nuvem].

Depois do plano A, o B e o C

Há duas perguntas que deixam Oleksandr hesitante. Uma — e a mais visível — é sobre a família, com quem fala todos os dias por telefone. “Claro que gostavam de me ver o mais rapidamente possível. Querem que este pesadelo termine, mas temos de proteger o nosso país e eu não vou desistir. Porque se o fizermos será pior do que [quando havia] a URSS”, defende.

Outra é sobre quanto tempo a empresa aguenta nas condições atuais. A guerra praticamente destruiu o mercado que a MacPaw tinha na Ucrânia e a empresa decidiu recentemente deixar de aceitar novos clientes da Rússia (só se mantêm os antigos até verem as suas licenças expirar). Embora o mercado russo não tenha grande peso na empresa, os negócios em todo o mundo foram, de alguma forma, afetados, ainda que indiretamente, pela guerra, e isso notou-se nos utilizadores da MacPaw.

Faz uma pausa, pensa: “Tínhamos algumas reservas antes da guerra. Por isso conseguimos manter-nos ao mesmo nível do que antes da pandemia. Mas não sei por quanto tempo, talvez teremos de ajustar os nossos planos e operações. Estamos a fazer tudo o que conseguimos para continuar as nossas operações e conseguir pagar aos nossos colaboradores e ajudá-los”, explica. Ivan Kuziv, diretor de marketing da tecnológica, acrescenta ao Observador que, apesar da guerra, as receitas estão dentro do esperado para o primeiro trimestre.

"Temos de proteger o nosso país e eu não vou desistir."
Oleksandr Kosovan, CEO da MacPaw

A Ajax Systems, uma empresa fundada em 2011 que desenvolve alarmes e outros dispositivos para a casa, também tinha vários planos para 2022. A pandemia não travou o negócio, que até subiu 60% em 2021 face ao ano anterior, e este ano a ideia — que, acreditam, ainda vão conseguir manter — era lançar uma nova linha de alarmes com fios e outra linha de detetores de fumo, em mais de 30 produtos ao todo, e chegar ao mercado americano.

Só que a guerra trouxe disrupções ao negócio, sobretudo às operações: era em Kiev que estavam as duas fábricas, a partir de onde vendiam para vários países. O conflito obrigou-os a pensar num plano B, já posto em prática: deslocalizar as unidades produtivas para a parte ocidental do país, que não está por enquanto sob tão intenso ataque como a capital ou o leste, assim como os escritórios, de Kiev para Lviv.

É aí que, esperam, vão conseguir reunir num único espaço, numa espécie de “hub”, as equipas que não só não podem trabalhar remotamente pela natureza do negócio, como têm mesmo de estar lado-a-lado. Dos 2.000 trabalhadores, 700 já estavam, no final da semana passada, no ocidente da Ucrânia ou noutros países da Europa. “O plano ainda está em marcha porque há pessoas que não estão a conseguir sair das cidades, por exemplo por causa de familiares, ou então porque estão em cidades ocupadas, não conseguem sair.”

É Valentine Hrytsenko, 31 anos, diretor de marketing da Ajax Systems, quem conta ao Observador o esforço logístico que requer mudar uma sede de cidade, no meio de uma guerra, em poucos dias, com as disrupções naturais que daí advêm. “Precisamos de mais de 160 camiões para as mudanças, demora algumas semanas, ainda estamos a mudar-nos”, indica.

Além disso, com a pressa em sair das cidades, muitos trabalhadores deixaram para trás computadores, tablets. “Estamos a tentar encontrar estes equipamentos para lhos enviar para as novas localizações de forma a que recomecem a trabalhar. Neste momento, é o único problema, mas estamos a conseguir resolver.” Valentine diz ainda que embora muitos pudessem sair do país (mulheres ou pais com três ou mais filhos menores), a maioria preferiu ficar na Ucrânia — só terão ido para o estrangeiro entre 20 e 30 trabalhadores.

Quanto a Lviv, a nova localização, para já é um sítio seguro, acredita. Mas se a guerra escalar também aí, há um plano C? Sim, e chama-se Polónia. É lá que a Ajax Systems tem já um armazém e onde está a estabelecer uma fábrica. “Vai levar o seu tempo. A nossa prioridade agora é a produção no ocidente da Ucrânia. A segunda prioridade é que é a Polónia”, sublinha.

"Os nossos produtos foram desenvolvidos quando a guerra começou no leste há alguns anos. O nosso objetivo sempre foi encontrar mercados internacionais para que fôssemos estáveis."
Valentine Hrytsenko, diretor de marketing da Ajax

A produção e as exportações da empresa estiveram paradas durante as primeiras semanas da guerra, mas a Ajax Systems quer reativar a atividade rapidamente — a nova fábrica deverá estar operacional até abril e o desenvolvimento de software e hardware será retomado progressivamente, à medida que os trabalhadores se mudam para locais mais seguros e ficam disponíveis para trabalhar.

À semelhança da MacPaw, a Ajax Systems também perdeu os mercados ucraniano — “simplesmente deixou de funcionar” —, que representava uma parte significativa do negócio, 10% a 15%, e o russo, com menos peso, que a própria empresa decidiu fechar.

Enquanto tentam sobreviver, as empresas também “entram” na guerra

A Ajax Systems resiste em sair da Ucrânia. “Sinto-me seguro aqui, em Lviv. Se estiver aqui, estou bem. Os nossos produtos foram desenvolvidos quando a guerra começou no leste há alguns anos. O nosso objetivo sempre foi encontrar mercados internacionais para que fôssemos estáveis”, diz Valentine. Por isso, tem tentado encontrar formas de ser útil para a população e o exército.

Especialista em alarmes, a Ajax desenvolveu, em poucos dias, uma aplicação móvel que alerta os utilizadores quando as sirenes disparam. É que aos bunkers e a certas localidades o som dos alertas militares nem sempre chega. A aplicação, que teve o apoio do governo ucraniano, já tem mais de dois milhões de utilizadores e está no top das mais descarregadas na Ucrânia.

“A aplicação recebe informação de cada centro de controlo regional. Nesses centros há pessoas que ativam as sirenes para as cidades e nós demos-lhe uma interface especial onde podem ativar estes alarmes para quem tem a aplicação”, explica Valentine. Quando as sirenes disparam, o utilizador recebe um “alerta crítico” — só que o som é “forte” e já há clientes a pedirem que haja outras opções, menos alarmantes.

O projeto foi desenvolvido em cooperação com o governo da Ucrânia e teve o apoio da Google, que promoveu a app gratuitamente na Google Store da Ucrânia. As empresas também já começam a pedir parcerias, assim como estações de televisão locais, que querem poder transmitir o aviso assim que ele é ativado nas centrais.

A pressão financeira, para já, ainda não se faz sentir sobre a empresa, que tinha “reservas de anos anteriores”. “Mas ninguém sabe quanto tempo é que esta guerra vai durar. Estamos a trabalhar num regime de guerra na empresa”, observa.

A Ajax também tenta mobilizar parceiros internacionais a fornecer ajuda ao exército e ao povo ucraniano. “Envolvemos os nossos parceiros internacionais para nos ajudarem a encontrar o equipamento necessário para o exército e medicamentos. Têm enviado os bens para o nosso armazém na Polónia e é a partir de lá que enviamos para a Ucrânia”, conta.

Já dentro do escritório, a Ajax tenta que a vida seja o mais normal possível. Os colegas continuam a chegar às horas normais, sentam-se na secretária em frente ao computador. Mas as conversas estão diferentes, dominadas pela guerra. As formas de distração também e os memes de que se riem são “a gozar com soldados russos”. “Nós, ucranianos, adoramos humor, há muitas piadas sobre o assunto”. A eleição de Zelensky, ex-humorista, a presidente é disso espelho. “Não votei nele, mas toda a gente o apoia neste momento. Quando ganharmos a guerra teremos tempo para analisar tudo, mas agora estamos todos focados em ganhar”, afirma Valentine.

A família do diretor de marketing da Ajax está com ele, em Lviv, mas diz que não hesitará em levá-los para o estrangeiro se a situação piorar. O irmão já saiu do país, dois dias antes de fazer 18 anos, para casa de familiares, em Viena, onde vai prosseguir os estudos. A partir dessa idade, já não poderia sair. “Claro que muita a gente tentou enviar os familiares para o estrangeiro. Mas sabe como são as mulheres ucranianas — não querem ir sozinhas. Por isso, muitas ficaram.”

“Envolvemos os nossos parceiros internacionais para nos ajudarem a encontrar o equipamento necessário para o exército e medicamentos. Têm enviado os bens para o nosso armazém na Polónia e é a partir de lá que enviamos para a Ucrânia."
Valentine Hrytsenko, diretor de marketing da Ajax

É também para a guerra que as atenções do marketing da MacPaw estão viradas. Ivan Kuziv, diretor de marketing, era, antes da guerra, responsável por pôr em marcha a estratégia de comunicação e marketing da empresa. Agora, foca-se nas campanhas de “contrapropaganda”, como a MacPaw lhes chama. É uma forma de lutar sem usar as armas convencionais, acreditam.

A empresa arranjou forma de quebrar as firewall [software que protege sistemas de ataques externos] russas e introduzir nos seus produtos acedidos pelos clientes da Rússia links com informação sobre o conflito na perspetiva ucraniana — que, acreditam, é a correta. “Estamos a mostrar a verdade sobre a guerra, porque eles têm muitos recursos bloqueados e muita propaganda russa que não é verídica”, defende Ivan.

Oleksandr complementa: “Quando abrem o CleanMyMac, por exemplo, conseguimos mostrar-lhes através da nossa interface algumas notícias sobre a guerra na Ucrânia. Estamos a tentar mostrar-lhes a informação objetiva e dar-lhes links com fontes de informação fidedignas. Temos muitos utilizadores na Rússia e tentamos mostrar-lhes através dos nossos produtos o que realmente está a acontecer aqui”. Por dia, os anúncios da MacPaw são vistos por 200 mil pessoas a partir da Rússia.

Esse é um dos motivos que pesa na decisão de Oleksandr e dos colegas continuarem em Kiev: a crença de que, não sabendo disparar uma arma, possam ser úteis às forças ucranianas de outra forma, “usando o cérebro”. “Não tenho experiência com armas, mas posso usar o meu cérebro, posso usar os meus conhecimentos e recursos para combater esta guerra de informação ou a ciberguerra”, diz Oleksandr.

O colega, Ivan Kuziv, estava de férias quando a guerra começou. O regresso para Kiev estava marcado na véspera de os tanques russos entrarem na Ucrânia, mas decidiu mudar os bilhetes para a Grécia. Não chegou a voltar ao país e fixou-se em Praga, para onde a empresa está a mudar (temporariamente, pelo menos) o escritório. É a partir da República Checa que também ajuda a angariar donativos (incluindo material e equipamento) para “ajudar o exército e os nossos cidadãos a lutar e a sobreviver”. Oleksandr faz o mesmo a partir de Kiev: “Já que estou cá, tento usar os meus contactos para encomendar produtos de fora para ajudar as pessoas aqui. Estamos muito confiantes que o nosso exército vai conseguir conter a agressão e potencialmente ganhar a guerra. Fazemos o que conseguimos para que isso aconteça.”

A empresa de distribuição que se dedica agora à ajuda humanitária

A cada três horas, a Nova Poshta, uma empresa de distribuição de mercadorias (uma espécie de CTT ucranianos), reavalia e adapta o plano de funcionamento: se há ataques ou outras ameaças numa determinada localidade, os serviços são rapidamente encerrados ou os horários alterados.

No dia da invasão russa, a 24 de fevereiro, os postos de serviço não abriram, “toda a gente temia pela vida”, conta o gabinete de comunicação da Nova Poshta ao Observador. “Em poucos dias, o território com confrontos ativos expandiu-se significativamente. O acesso aos nossos postos de serviços e centros de distribuição em muitas cidades foi bloqueado”, explica. Alguns foram mesmo “bombardeados e saqueados pelos militares russos”.

Um posto de Kharkiv onde os cidadãos podem ir buscar bens essenciais

O país paralisou e, durante a primeira semana da guerra, o volume de entregas caiu 95%. Se antes do conflito, a empresa transportava um milhão de encomendas por dia, passou a transportar cerca de 50 mil por dia. A migração dentro do próprio país também levou a que as pessoas não recolhessem as suas encomendas nos postos de serviço, o que “levou a um colapso” por falta de espaço de armazenamento. Mesmo agora, cerca de dois milhões de encomendas estão por levantar.

Nestas condições, a faturação ressentiu-se fortemente (caiu 90%). “Nos primeiros dias não sabíamos o que fazer nem como dar continuidade ao negócio”, reconhece a empresa que acabou por perceber que ainda havia necessidades a que poderia responder, nomeadamente no envio de bens essenciais. “A sobrevivência do nosso povo e do nosso país durante a guerra depende do nosso trabalho”, acredita.

Foi por isso que mudaram a estratégia: redesenharam a logística e dedicaram-se às entregas mais essenciais — medicamentos, comida, documentos, serviços financeiros, roupa e ajuda humanitária. Hoje, têm abertos 29 centros de distribuição (em 141) e 1.500 postos de serviço, um quinto da rede total. “A principal dificuldade é o trânsito nas estradas devido aos checkpoints, em que são verificados documentos de condutores e a carga, e às pontes destruídas. Muitas estradas principais foram também destruídas e temos de encontrar novas rotas entre aldeias. Além disso, há um recolher obrigatório na Ucrânia e os carros não podem sair durante a noite, o que impossibilita a entrega 24 horas por dia. Tudo isto complica o movimento e o tempo de entrega aumenta”, lamenta.

Noventa por cento das encomendas que entregam são agora bens humanitários. Todos os dias, a Nova Poshta está a transportar gratuitamente 500 toneladas de bens, metade da qual é ajuda internacional dos EUA, França, Roménia, Polónia, Turquia, entre outros. Também recebe bens dos próprios ucranianos. Aliás, nalgumas das cidades mais afetadas, como Kharkiv ou Mykolaiv, alguns dos postos só permitem a recolha de bens de emergência — e quem precisa pode ir lá buscar ajuda. Além disso, doaram a frota de camiões e outros 100 veículos para o exército e voluntários. Só que “os recursos estão a esgotar-se”, daí que também estejam a angariar fundos para combustível, para a manutenção da frota, para o aluguer de aviões.

Um dos pontos de distribuição, em Lviv, para onde chega ajuda humanitária da Europa

A empresa empregava, antes da guerra, 42 mil pessoas, a maioria na Ucrânia. Muitos viviam em cidades afetadas pelos ataques, como Kharkiv e Kiev, e mudaram-se para localidades que são, neste momento, mais seguras. “Na medida do possível, ajudamo-los com emprego nos nossos postos de serviço, um sítio para morar. Mas agora só um quinto dos nossos postos estão ativos, não conseguimos encontrar trabalho para toda a gente, muitas pessoas perderam o emprego que tinham” antes da guerra.

Ainda assim, a Nova Poshta relata como, apesar do desemprego, muitos ucranianos ficam no país para ajudar o exército ou outros concidadãos, sem receber nada em troca. “Toda a gente se entreajuda e entende que tem uma grande responsabilidade social em cima, estamos todos muito unidos.”

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