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“Destralhar”. O verbo tem vindo a ganhar adeptos nos últimos anos e as plataforma de venda de bens, muitas vezes em segunda mão, e de prestação de serviços, têm conquistado utilizadores. A Vinted é o exemplo de sucesso mais recente, mas antes dela já havia quem vendesse de tudo um pouco no OLX ou usasse o Marketplace do Facebook. Na área da prestação de serviços, surgiram opções como a Oscar, para a prestação de pequenos trabalhos domésticos, ou a Fiverr, onde é possível contratar um freelancer em praticamente qualquer área.
Mas, à medida que a economia digital cresceu, também começou a crescer o sentimento de uma espécie de “faroeste”. Isto porque nem todos os rendimentos estariam a ser declarados às autoridades fiscais. É por isso que a Comissão Europeia fala num cenário com um “número crescente de situações complexas relacionadas com a fraude, a evasão [recurso a instrumentos ilegais para evitar pagar impostos] e a elisão fiscal [uso de instrumentos legais para pagar a menor quantidade de impostos possível]”. Além disso, é ainda mencionada a dimensão transfronteiriça destas plataformas, algo que “cria um ambiente complexo” quando é hora de garantir o cumprimento das obrigações fiscais dos utilizadores.
É nesse contexto que entra em cena a DAC7, uma diretiva comunitária para a cooperação administrativa, que determina que as plataformas e aplicações têm de prestar informação às autoridades fiscais sobre as transações relevantes feitas pelos utilizadores. Ou seja, vão ter de recolher, verificar, armazenar e reportar essa informação à autoridade fiscal do país onde estão sediadas. Mas, uma vez que fica reforçada a cooperação entre entidades, a informação sobre atividade relevante (um determinado número de transações) também vai ser partilhada com a entidade fiscal do país do utilizador. Por exemplo, a informação reportada à Airbnb por um utilizador português vai ser comunicada com a autoridade irlandesa, onde a plataforma tem sede. Que, por sua vez, vai partilhá-la com o Fisco em Portugal. A ideia é que as diferentes autoridades tributárias possam comparar esses dados com a informação de rendimentos que é apresentada pelos contribuintes anualmente.
Esta diretiva com efeitos na área da fiscalidade vai afetar várias plataformas digitais, em áreas como a venda de artigos, arrendamento, prestações de serviços ou aluguer de meios de transporte, a partir de 1 de janeiro de 2024. As plataformas que não comunicarem a atividade relevante dos utilizadores – por número de vendas ou valor monetário – arriscam-se a pagar coimas, que em Portugal poderão chegar até aos 22.500 euros.
Há razão para quem utiliza plataformas do género estar apreensivo por o Fisco saber quantas vendas fez na Vinted, por exemplo? A menos que faça disso profissão, nem por isso, consideram os especialistas ouvidos pelo Observador. O principal objetivo é só um: tentar “caçar” uma parte da economia paralela e garantir que os rendimentos relevantes são devidamente tributados.
“Eu vinto, tu vintas, nós vintamos.” Um ano de Vinted, o fenómeno das compras e vendas online
Em que consiste a diretiva?
Nuno de Oliveira Garcia, sócio responsável pelo Departamento Fiscal da Gómez-Acebo & Pombo em Portugal, explica ao Observador que esta diretiva, a 2021/514 do Conselho de 22 de março de 2021, faz parte de um conjunto de “iniciativas que visam o combate à fraude e à evasão fiscal”. A cooperação entre as diferentes entidades fiscais europeias, que vão tentar perceber quem está a escapar à tributação nas transações feitas online, é um “movimento imparável”, diz, recordando que a DAC7 é já a sétima alteração à diretiva de cooperação administrativa. “Parece-me que o mecanismo para atacar este fenómeno da evasão fiscal não é tanto através de listas negras, crimes, controlos policiais e outras coisas, mas sim através da troca de informações.”
O tal movimento chegou agora ao meio digital, diz Oliveira Garcia. “O conjunto de comércio feito através de plataformas é muito significativo”, descreve este especialista, especialmente no espaço europeu. Mas as autoridades também começaram a aperceber-se de “um fenómeno de rendimentos que acabam por não ser declarados”. “O que se pretende com a DAC7 é capturar para a economia declarada as novas formas de comércio online ou das atividades de plataformas online que têm em, alguns casos, uma componente transfronteiriça importante”, diz por sua vez Pedro Vidal Matos, sócio coordenador da área de Fiscal da Cuatrecasas.
Sendo uma diretiva comunitária, os diferentes Estados-Membros têm de usar as regras europeias como base e adaptá-las à lei nacional. Cada país tem a liberdade para “estabelecer as regras relativas às sanções aplicáveis” adotadas com a diretiva, que devem ser “efetivas, proporcionadas e dissuasivas”, explica ao Observador Patrick Dewerbe, sócio da área Fiscal da sociedade de advogados CMS Portugal.
Ficou definido que os Estados-Membros (EM) teriam até 31 de dezembro de 2022 para fazer a transposição da diretiva. Portugal atrasou-se neste processo, mas não foi o único, salientam Alexandra Courela e Susana A. Duarte, da Abreu Advogados. “Dada a sensibilidade das medidas em causa, podemos dizer que Portugal esteve em situação comparável aos restantes EM.” No final de 2022, apenas cinco países (Áustria, Dinamarca, França, Hungria e Eslováquia) tinham concluído a transposição dentro do prazo. “A maioria dos outros Estados-membros tinham o processo de transposição para a ordem interna em curso, sendo que apenas Portugal, Malta, Grécia, Letónia, Chipre e Roménia não possuíam sequer um projeto de lei a tramitar nos seus parlamentos nacionais”, acrescentam as duas especialistas.
Como foi transposta a diretiva comunitária para a lei portuguesa?
O Conselho de Ministros aprovou a 16 de fevereiro deste ano a proposta de lei que estabelece o regime de troca automática de informações comunicadas pelas plataformas no âmbito da DAC7. O tema deu entrada na Assembleia da República a 28 de fevereiro e após várias etapas e discussão, foi aprovado na generalidade a 6 de abril. Pelo meio, foram pedidos pareceres a três entidades: à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), à Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) e à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT). O texto final da proposta de lei que transpõe a diretiva foi publicado a 31 de maio, após a reunião da Comissão de Orçamento e Finanças, mas ainda aguarda publicação em Diário da República. Ao longo de 192 páginas, são detalhadas as responsabilidades de comunicação das plataformas e também as sanções a quem não cumprir as regras.
São consideradas plataformas “quaisquer softwares, nomeadamente sítios web” e “aplicações móveis” que permitam ligar vendedores a utilizadores. A DAC7 vai afetar diversas empresas, já que são consideradas atividades relevantes o arrendamento de bens imóveis, a prestação de um serviço pessoal, a venda de bens ou o aluguer de qualquer modo de transporte. A título de exemplo, a DAC7 afetará companhias como a Vinted, os marketplaces da Amazon ou do Facebook, mas também a Airbnb ou a Booking.
Há uma razão para a definição de plataforma ser ampla neste texto, notam as especialistas da Abreu Advogados, salientando que está em linha com o que é usado no texto da diretiva. “Temos de ter presente que, sendo a intenção combater a fraude, evasão e elisão fiscais, impõe-se que a legislação seja capaz de acompanhar a evolução (célere) que se verifica no mundo digital”, explicam Alexandra Courela e Susana A. Duarte. “Um conceito demasiado restrito rapidamente se poderia tornar obsoleto. Isto sem prejuízo, naturalmente, das precisões e clarificações que sempre são necessárias quando falamos de alterações legislativas significativas.” Patrick Dewerbe, da CMS Portugal, tem uma visão semelhante. “Penso que é sempre mais arriscado procurar definir conceitos que rapidamente se desatualizam e geram assim mais problemas”.
No texto final, os utilizadores das plataformas são descritos como “vendedor” e é detalhado que quem tenha menos de “30 atividades relevantes” (transações) ou que “não tenha excedido os 2 mil euros” em operações não estará sujeito a comunicação. É possível que um vendedor seja uma pessoa singular ou uma empresa. As plataformas vão ter de recolher um conjunto de informação sobre os utilizadores que sejam mais ativos nas vendas, como nome próprio, número de identificação fiscal (NIF) e qual o país que emitiu o NIF, morada, nome do titular da conta para onde seguem os ganhos das operações, data de nascimento (para os vendedores individuais), o montante total ganho por trimestre e também as taxas, comissões ou impostos retidos.
As plataformas que não apresentem a informação necessária ou que o façam fora do prazo – a comunicação deve ser feita até 31 de janeiro do ano seguinte ao ano civil em que tenham sido feitas as operações – arriscam uma coima que pode ficar entre os 500 a 22.500 euros. As omissões ou inexatidões também podem valer uma coima entre 250 a 11.250 euros, assim como o “incumprimento dos procedimentos de diligência devida, de registo e conservação dos documentos destinados a comprovar o respetivo cumprimento”, um comportamento que pode ser punido com uma coima também entre 250 a 11.250 euros.
Numa primeira redação desta transposição existia ainda um ponto que podia sancionar também os utilizadores pelas omissões ou inexatidões, que podiam ir igualmente dos 250 a 11.250 euros. O PS apresentou uma proposta para eliminar esse ponto, justificando que “face à inexistência da definição da obrigação de comunicação pelos utilizadores, consequentemente não existirá norma infringida.” A proposta de eliminação foi aprovada com os votos a favor do PS e PSD.
Maior responsabilidade fica do lado das plataformas
Nesta tentativa de encontrar situações de economia paralela, a diretiva comunitária e a transposição para a lei portuguesa deixam a maior dose de responsabilidade para as plataformas. “Criou-se um dever de as plataformas serem obrigadas a solicitar essa informação às pessoas, obrigadas a confirmar se essas informações são fiáveis, mas a responsabilidade pela fiabilidade dessa informação é das plataformas. Até ao final do ano têm de reportar isso”, destaca Nuno de Oliveira Garcia.
Pedro Vidal Matos, da Cuatrecasas considera que, uma vez que as empresas podem ser sancionadas por omissões ou inexatidões na informação recolhida, há alguns cenários mais prováveis do que outros. “A omissão, em teoria, será, à partida, mais rara”, acreditando que as inexatidões vão ser “mais frequentes”, os casos em que “não são declarados bem os dados”. Por exemplo, apresentar um NIF que corresponde a outra pessoa. “As declarações têm de ser feitas de forma séria e completa.”
O Ministério das Finanças explica, em resposta às perguntas do Observador, que “as omissões ou inexatidões nas informações comunicadas serão detetadas posteriormente, pela AT, em sede de análise, cruzando as informações comunicadas pelos operadores de plataformas com, por exemplo, no caso dos ganhos, os rendimentos declarados pelos utilizadores.” Mas lembra que “a obrigação de os utilizadores comunicarem os seus ganhos já decorre da legislação fiscal em vigor.”
O texto da transposição em Portugal também prevê formas de as plataformas responderem aos utilizadores que não acedam ao pedido de dados. “Caso um vendedor não forneça as informações exigidas (…) após dois avisos, enviados após o pedido inicial do operador de plataforma reportante, e decorrido um prazo de 60 dias após esse pedido inicial, o operador de plataforma reportante deve encerrar a conta do vendedor e impedir que este se registe novamente na plataforma”, é possível ler. “Ou, em alternativa, deve suspender o pagamento da contrapartida destinada ao vendedor enquanto este não fornecer as informações solicitadas.”
Dos especialistas ouvidos pelo Observador, a maioria considera que as plataformas vão adaptar-se – se ainda não estão a fazê-lo – mas também que os encargos financeiros poderão aumentar devido à carga administrativa adicional. “Para além das preocupações no que toca à proteção de dados, que foram levantadas no parecer da CNPD, a principal apreensão prende-se com os custos de implementação desta obrigação, dado que passa a ser necessário recolher, monitorizar e, posteriormente, submeter toda a informação para a Autoridade Tributária”, referem as especialistas da Abreu Advogados. Mas notam que vários players do mercado já estão até a apresentar aos utilizadores estas alterações trazidas pela DAC7.
O que dizem os pareceres da CNPD, OCC e da AT?
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A Comissão de Orçamento e Finanças pediu pareceres a três entidades sobre a transposição da diretiva. Um deles foi à CNPD, uma vez que existe partilha de dados pessoais com outras entidades. Na resposta, a 18 de maio, além de indicar que o projeto de Decreto-Lei não lhe chegou às mãos “suportado por um estudo de impacto sobre a proteção de dados pessoais”, algo que “compromete uma avaliação mais completa” quanto a riscos e levanta “algumas questões” sobre este tema.
A CNPD fez cinco recomendações, incluindo a reformulação de um dos artigos para “eliminar a referência sobre a possibilidade” de ter de “proferir decisões sobre a adequação do nível de proteção de dados em jurisdições fora da União Europeia”, já que isso violaria o regime do RGPD. Também foi pedida a reformulação de outro artigo, o 12.º, para que fossem explicitados “quais os crimes para cuja investigação se admite a reutilização de dados, que deverão ter sempre uma relação estreita com a matéria fiscal e tributária”.
A Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) também recebeu o pedido de parecer, mas disse, “após detalhada análise da iniciativa”, não ter “comentários adicionais à mesma”.
Já a Autoridade Tributária referiu que, “de um modo geral”, a proposta de lei “permite uma correta e adequada transposição da Diretiva (UE) 2021/514 e alcançar os objetivos que esta visa alcançar”. Foram apenas feitas sugestões de alteração de redação.
Nuno de Oliveira Garcia, da Gómez-Acebo & Pombo, antecipa um cenário mais drástico, admitindo o encerramento de algumas plataformas. “Não tenhamos dúvidas de que isto vai implicar que as plataformas sejam muito mais profissionais”, vinca. “Vai implicar que plataformas muito pequeninas venham a desaparecer porque não conseguem suportar os custos com a proteção de dados, com os software e mecanismos para conseguir declarar e, no fundo, estar em conformidade com as regras.”
E, dada a popularidade das plataformas online, há alguma razão para apreensão entre os utilizadores? Os especialistas consideram que quem faz um uso esporádico não deverá ter motivos para isso. “Há uma preocupação do legislador em excluir do escopo desta obrigação os utilizadores/vendedores que não têm uma atividade relevante, porque apenas realizam vendas esporadicamente”, explicam Alexandra Courela, sócia da Abreu Advogados, e Susana A. Duarte, advogada principal. “A questão, contudo, coloca-se quanto aos utilizadores que usam estas plataformas para desenvolver uma atividade comercial sem, por vezes, lhe darem o respetivo enquadramento fiscal e emitirem a respetiva fatura, contribuindo para uma economia paralela que a AT, até ao momento, tinha dificuldade em controlar.”
Questionado sobre a possibilidade de um período de transição, que permitisse às plataformas adaptarem-se a esta nova realidade, o Ministério das Finanças explica que, uma vez que a obrigação de comunicação “é apenas exigível a partir de 1 de janeiro de 2024, haverá tempo para que as plataformas e os utilizadores se adaptem”.
Vinted e Amazon já têm avisos sobre a DAC7
Uma vez que os Estados-Membros tinham desde o ano passado um prazo para fazer a transposição da diretiva comunitária, algumas das principais plataformas do mercado já começaram a transmitir esta ideia aos utilizadores. Além de explicarem em que consiste a DAC7 e o tipo de informações que vão pedir, também transmitem as consequências para quem não cumprir com o pedido.
A Vinted, que permite a venda de artigos em segunda mão, diz na sua página sobre a DAC7 que vai pedir a quem faça mais de 30 vendas ou obtenha mais de 2 mil euros por ano, para preencher o formulário. E também explica as consequências, caso não haja resposta a “vários lembretes”. “Se não preencheres o formulário após os nossos lembretes (ou se não forneceres as informações exigidas) até ao final do ano, teremos que restringir algum do teu acesso à Vinted.” Assim, os anúncios serão ocultados, não será possível transferir dinheiro do saldo (onde fica armazenado o dinheiro ganho com as vendas) ou utilização do saldo para fazer compras. Mas será possível continuar a comprar artigos na aplicação, ficando apenas limitado o uso do saldo da plataforma para comprar.
A Booking também criou uma página para explicar o que acontece. Uma vez que é uma empresa sediada nos Países Baixos, a informação de quem usa a plataforma para transações será comunicada às Autoridades Tributárias dos Países Baixos.
Na loja espanhola da Amazon – que também serve Portugal – a página de ajuda aos vendedores refere que quem reside na União Europeia e ultrapasse o patamar das 30 vendas anuais ou receba pagamentos acima de 2 mil euros tem até 1 de outubro para preencher o formulário. Também há avisos para as consequências – em caso de não enviar o formulário eletrónico, “é possível que se desativem as contas e retenham os fundos” até à apresentação da informação.