A acusação de violação da DJ Liliana Cunha contra o pianista João Pedro Coelho, que a refuta, abalou não apenas o mundo do jazz, mas o meio artístico e, em particular, o teatral, com o surgimento de um canal na rede social Telegram para denúncias em moldes em tudo semelhantes ao do jazz e um e-mail para o mesmo efeito.
“Uma grande parte dos relatos descrevem casos de assédio moral e sexual exercido por professores e ex-professores de escolas artísticas, especificamente da área do Teatro”, diz ao Observador a responsável pelo canal, criado a 10 de novembro, e que gere também a We need to know Porto, uma conta de Instagram que desde 2022 se dedica à exposição de abusos ocorridos no meio artístico. A gestora da página prefere não ser identificada para “não pessoalizar um movimento que vem de um todo”.
A abertura de um canal de denúncias via e-mail (denunciasteatro@gmail.com) levou já, em poucos dias, à identificação de seis denúncias, sobretudo do meio teatral, de situações que vão do assédio sexual de menores ao stalking (perseguição, neste caso sobretudo via digital, insistente e indesejada). São os primeiros dados sistematizados e confirmados pela responsável pela receção e gestão da informação revelada no dito e-mail, e partilhados com o Observador. Quatro destas denúncias visam o mesmo nome e uma delas já terá mesmo sido formalizada como queixa junto da polícia no passado.
Entre os nomes dados a conhecer pelas alegadas vítimas à rede, que se construiu informalmente após a notoriedade do caso de Liliana Cunha, há ainda profissionais de outras expressões artísticas. As pessoas que recorreram ao e-mail também relatam situações de abuso de poder e assédio laboral. O Observador sabe que as denúncias recolhidas dizem respeito a alegados atos que terão tido como cenário instituições de ensino, mas também contactos através das redes sociais, e que abarcam um período de pelo menos há vinte anos anos até períodos mais recentes. Estes dados não incluem ainda as denúncias chegadas à mesma rede informal através das redes sociais.
“Enquanto página do Instagram, fizemos o que estava ao nosso alcance, respeitando as normas de privacidade da rede social, para recolher e tratar a informação fornecida pelos nossos seguidores”, explica a gestora do canal numa nota por escrito ao Observador. Com uma inspiração direta do canal dedicado à denúncia de assédio no meio do jazz, o surgimento deste canal de Telegram a 11 de novembro surgiu com o objetivo de criar “um grupo de entreajuda e comunicação sobre como agir em casos de assédio e abuso dentro do meio artístico e profissional”.
À semelhança do canal-modelo, também neste grupo no Telegram não são utilizados nomes para evitar potenciais processos de difamação. Ainda assim, algumas das experiências partilhadas podem permitir intuir de que alegados agressores se tratam.
Para já, o grupo fez um formulário informal sobre o assédio e as práticas de proteção no ensino artístico, num período em que a página tinha cerca de 200 seguidores, com algumas perguntas exploratórias, mas “o estudo é pouco conclusivo devido ao défice de intervenientes”, admite a responsável. À data de publicação deste artigo, há 116 pessoas inscritas no canal de Telegram e 78 membros ativos, adianta ao Observador.
Há muito que associações como a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) trabalham sobre a temática. Na última semana, a APAV apelou para que as denúncias de casos de assédio, violação e abuso sexual no meio artístico que têm tomado as redes sociais não desapareçam “na espuma dos dias”. No grupo do Telegram recém-criado partilham-se os contactos desta e outras associações e entidades competentes, como a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ou a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), no caso de situações que tenham ocorrido em contexto laboral.
“As pessoas têm apoio jurídico, seja para falar com a comunicação social seja para elaborar a queixa. Não assumindo automaticamente que querem apresentar uma queixa formalizada, os advogados podem ajudar a apresentar a queixa, seja ao Ministério Público, seja à Polícia”, diz a responsável pelo canal, que conta com o auxílio da Plateia — Associação de Profissionais das Artes Cénicas, que tem desenvolvido algum trabalho nesta área através de conversas e sessões de esclarecimento.
Neste momento, as prioridades deste movimento coletivo focam-se em: verificar e analisar as denúncias enviadas para o e-mail para identificar quais são passíveis de enquadramento criminal; apoiar e orientar vítimas que desejem partilhar os seus casos com a comunicação social ou em diferentes meios; e avaliar possíveis ações legais em relação às instituições de ensino envolvidas em denúncias. O Observador sabe que o grupo está a organizar um encontro sobre assédio a realizar-se idealmente em dezembro, no Porto.
No início do mês, Liliana Cunha, DJ de nome artístico Tágide, fez uma partilha nas redes sociais, inicialmente sem identificar o alegado agressor senão pelo primeiro nome, que desencadeou uma vaga de queixas e partilhas de quem disse #MeToo em português. Nos canais recém criados, tanto para o jazz como para o teatro, empodera-se a quebra do silêncio, mas relembra-se periodicamente da importância das queixas formais, pois só assim se iniciam processos criminais.
“Existe uma cultura base de discípulo-mestre, de adoração, que é um território muito fértil para o assédio”
“Pode estar aqui uma onda nacional”, diz ao Observador Sara de Castro, membro da direção da Plateia, admitindo que o assédio é uma “cultura absolutamente instalada” no meio artístico. “Sabemos que nestes casos de assédio sexual e moral é muito difícil reunir provas. O que temos aconselhado é a reunir provas, e-mails, SMS, outras pessoas que tenham presenciado e que possam ser testemunhos”, explica, sublinhando a importância da “união, força, solidariedade” para que “algumas pessoas se possam chegar à frente”.
A atriz não tem dúvidas que a precariedade agrava o medo de falar abertamente. “Como é um setor precário, as pessoas sabem que as denúncias têm consequências”, avisa. “Não é uma preocupação vã, é uma preocupação real”, constata, lembrando que a denúncia pode muitas vezes “significar as pessoas não terem trabalho”. A opinião é partilhada pelo Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, Audiovisual e Músicos (Cena-STE), que frisa que o assédio no setor é fomentado pelas relações de poder desiguais.
Já na semana passada, a associação Plateia lamentara a inexistência de um sistema de denúncias no meio artístico e de “proteção eficaz” das vítimas de assédio, defendendo uma mudança “estrutural”, que ajude na prevenção de casos, e alterações legislativas.
Sara de Castro, da Plateia, alerta também para a “desinformação gigante e profunda sobre este tema”, referindo-se a quem, por exemplo, não consegue distinguir o assédio moral do sexual. “Há muitas pessoas desinformadas. Mais do que pôr cabeças a rolar, achamos importante informar as pessoas. Acreditamos que a informação e o conhecimento é o primeiro passo”, diz a artista.
Membro da direção da associação de profissionais das artes cénicas, Sara admite que um dos fatores para a perpetuação do silêncio é a normalização de certos comportamentos. “Existe uma cultura no setor de que certas formas de violência fazem parte da criação artística. Isto começa logo nas escolas, que são revestidas de pedagogia artística a dizer-nos que temos de perder o pudor em relação ao nosso corpo, em que o consentimento não é tido nem achado”, elucida. “Numa aula não existe uma negociação”, aponta. “As pessoas sabem que se disserem ‘eu não estou disponível’ são piores atores. Existe uma cultura base de discípulo-mestre, de adoração, que é um território muito fértil para o assédio”, diz.
“As pessoas acham que é um privilégio ter aulas com não sei quem. Não se veem como trabalhadores normais. Estamos numa espécie de bolha porque somos artistas e as leis que lá fora existem aqui dentro não se aplicam. Esta incapacidade de trabalhadores não se verem como trabalhadores é o que leva a gritos nos ensaios, pessoas que são coagidas a determinadas coisas sem querem em nome da arte ou do espetáculo”, descreve. “Cenas em que há graus de nudez, de intimidade, que são expostas sem que isso seja acordado são práticas completamente normalizadas e deve haver muito pouca gente com experiência neste setor que não tenha sido assediado moralmente, pelo menos. É praticamente impossível”.
Para a porta-voz da Plateia, a base de tudo está na informação prestada às vítimas. “Há este clima tenso, as pessoas quererem pôr cá para fora nomes. Partilho este sentimento de frustração e raiva, é muito duro. Mas penso que a posição da Plateia tem sido primeiro a de passar toda a informação às pessoas sobre o que está em causa ao fazer denúncias públicas”, diz, lembrando que a Plateia tem organizado sessões sob o tema do Assédio nas Artes Performativas com a advogada Joana Neto, especialista em direito laboral.
“Temos de começar de trás, nas escolas, pela informação, pelo conhecimento, não só aos alunos, mas aos professores”, continua. “Sabemos que há pessoas que desistiram de ser atores”, lamenta.
Em comunicado, enviado ao Observador, o movimento We need to know Porto, que está a gerir o canal de denúncias e o e-mail focado no universo teatral, o objetivo é claro: “Zelar pela segurança de todas as pessoas.” “Somos artistas que convivem, sofrem e testemunham diversas formas de violência no setor. O ativismo é essencial para proteger a integridade de outrém, desafiar e combater narrativas que culpabilizam as vítimas, impedir a normalização de abusos de poder e compreender a interseccionalidade da luta. Fazemos um apelo àqueles que, na comunidade artística, encobrem casos de assédio e protegem pessoas abusadoras, e aos que veem o movimento #MeToo como uma ameaça que ‘destrói’ a vida dos acusados: se o vosso trabalho continua, é possivelmente à custa da exploração de pessoas vulneráveis ou por cumplicidade com isso. As únicas vidas verdadeiramente destruídas são as das vítimas, que há anos são silenciadas e marginalizadas no setor”, lê-se no texto que termina com uma nota de repúdio “por professores, encenadores, intérpretes e diretores artísticos que praticam ou ocultam situações de assédio e abuso”.