Diz-se iconoclasta — aquele que ataca crenças, venerações e ideias já entranhadas na sociedade. Quem lida com ele fala em alguém que vai contra a corrente, impetuoso com as palavras, benfiquista (muuuito), contador de histórias e fascinado por Filosofia, nomeadamente pela origem da tragédia. Joga pela direita, como o jogador que mais apreciou no seu Benfica — Vítor Paneira. Teimoso, provocador, Henrique Raposo tem estado debaixo dos holofotes depois da publicação do seu livro “Alentejo Prometido”.
Estudou História e Ciência Política, investigou, escreveu em blogues e revistas. Não fazia ideia do que ia ser quando entrou na universidade, algo que é comprovado pelas opções que escolheu: História, Jornalismo e Antropologia. Em pequeno queria apenas ser biólogo e piloto de aviões. Na escola foi guarda-redes e chegou a deixar-se copiar para ter a proteção de um colega armado. Era popular. Ouvia e ouve música clássica e bandas sonoras, mas chegou a aventurar-se pelo mundo do rock, quando esteve numa banda. Quem é, afinal, este homem do “maior bairro clandestino da Europa”?
Em pequeno queria apenas ser biólogo e piloto de aviões. Na escola foi guarda-redes e chegou a deixar-se copiar para ter a proteção de um colega armado. Era popular.
Henrique Raposo nasceu em 1979 e cresceu na Portela da Azóia, perto de Santa Iria da Azóia e Póvoa de Santa Iria. Esteve até aos dez anos no tal “maior bairro clandestino da Europa”, como diz. “Havia muitos alentejanos. A minha família é toda de migrantes alentejanos que vieram de Santiago do Cacém para a periferia de Lisboa, nos anos 60.” Seguiu-se Odivelas e Lisboa.
“Escrevi desde miúdo. Na infância escrevia bastante. Na faculdade reencontrei-me com a leitura e com a escrita”, conta ao Observador. Uma das grandes influências foi o seu amigo Bruno Vieira Amaral: “Éramos amigos e discutíamos muito literatura. Foi muito importante para me dar os primeiros safanões literários. Ele tinha uma visão adulta. Lembro-me que ele me emprestou o livro A Queda, de [Albert] Camus. Ainda hoje falamos desse dia. Ele sabia que me ia dar um abanão interior.”
Pedro Candeias, jornalista do Expresso, andou com Henrique na escola e recorda alguém popular, com bom gosto e que escondia o dinheiro nas meias. “Ele era popular. Era o guarda-redes da escola e bom aluno, sobretudo em História”, diz ao Observador. “Era um gajo com bom gosto. Usava calças de ganga e sapatos Airwalk. Às vezes, tinha o cabelo mais comprido, loiro. Chegámos a ensaiar umas vezes uma banda mal-amanhada de rock. Era coisa de putos.”
Candeias recorda uma Póvoa de Santa Iria complicada, com episódios de droga e roubos. “A Póvoa era tramada. Todos os dias, ou quase, havia gajos que queriam assaltar. Um amigo nosso foi assaltado com uma seringa na barriga, outro levou uma facada no lábio. Isto era à luz do dia”, recorda. “A malta andava com dinheiro nas meias. Tínhamos um colega que levou uma arma e um cachimbo de coca para a aula, mas que nos protegia porque copiava por nós.”
Os gostos iam de Nietzsche ao Benfica (claro). “Ambos gostávamos de Filosofia, sobretudo de Nietzsche e da origem da tragédia. Ele adorava o Vítor Paneira e o Benfica.” Henrique Raposo confirma: “As primeiras vezes que fui ver o Benfica foi nas finais da Taça, nas romarias ao Jamor. A primeira vez que fui ao Estádio da Luz foi em 1991, num Benfica-Farense”. Tudo aconteceu a 12 de maio, quando, perante 50 mil pessoas na velhinha Luz, Eriksson levou a melhor sobre Paco Fortes: 2-0, com golos de Rui Águas e Pacheco. Vítor Paneira foi substituído aos 87′. O médio direito à antiga foi o jogador que Henrique mais admirou, a par de Aimar (“foi especial”) e Vasili Kulkov.
E continua: “O jornal lá de casa era A Bola. Não se lia o Diário de Notícias ou o Expresso. Às vezes também líamos o Record, quando tinha aquelas letras laranjas enormes. Na altura escrevia-se muito bem n’A Bola. Agora leio sobretudo os semanários. Ainda gosto muito de ler as secções locais do Jornal de Notícias e do Correio da Manhã. Se o Benfica ganha, compro os três desportivos. Ainda agora ganhámos ao Zenit e comprei todos”.
“O maior defeito é a teimosia”
Licenciou-se em História no ISCTE e é mestre em Ciência Política pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. As referências não são poucas, mas Camilo Castelo Branco, de quem admira o “olhar duro e violento”, surge em primeiro lugar. Depois chegam nomes como Nelson Rodrigues, Vargas Llosa, Rubem Fonseca e Francisco José Viegas, por exemplo. No pensamento político, Raposo prefere Raymond Aron e Alexis de Tocqueville.
Desde então tem vivido das palavras, do que escreve no Expresso, revistas e livros. “Não tenho outro trabalho.” Viajou e quer viajar. A viagem de que mais gostou foi a visita “aos meandros do poder em Washington”, Istambul e Polónia. No futuro quer explorar a América, “ver amigos espalhados pelos Estados Unidos”.
Depois de experiências na blogosfera, Henrique Raposo começaria a trabalhar com a revista Atlântico (2005-2008), onde fazia critica literária e chegou a escrever textos e recensões como “A impunidade angélica do marxismo e a realidade paralela vivida na Europa” e “A fraude ideológica”, onde pensou, por exemplo, o multiculturalismo, tendo como muletas George Steiner e Pascal Bruckner.
“O Henrique era especial. Na Atlântico, quando fiquei diretor, puxei-o a ele e ao Bernardo Pires de Lima para editores da revista. Ajudavam-me a rever textos e a escolher pessoas para escrever”, lembra Paulo Pinto Mascarenhas, que lida com Raposo há uma década. “Escreve de forma muito seca e lúcida, baseado na própria experiência. Fala muito de si próprio. Provoca desde sempre! Não tem vergonha de assumir as posições dele, é contra o politicamente correto. É daquelas pessoas que ou se adora ou odeia. Sendo de origens humildes, com família comunista, é uma pessoa que se assume de direita. É uma heresia para muita gente do politicamente correto da esquerda”, explica o ex-jornalista e ex-assessor de Paulo Portas.
“Pessoalmente, o Henrique é um encanto, é uma pessoa fantástica, um fiel amigo. Não é de abraços, nem demonstrações de afeto. O maior defeito é a teimosia. Ele é que sabe, tem a ideia dele, não vale a pena discutir, ele vai até ao fim. Não dá o braço a torcer”, conta Mascarenhas.
A responsável pela ida de Raposo para a Atlântico foi Helena Matos. “Não o conhecia de parte alguma, mas tinha lido coisas dele. Com o Henrique percebi que eu fazia parte de uma geração que já não era a nova, pela maneira como ele falava comigo, pelas referências, pela forma como dizia as coisas. Há sempre uma coisa nele que me deixa simultaneamente desconcertada e interessada: a sua capacidade de se expor”, conta a jornalista. “Não tem medo do tabu, de falar da família, de falar nos avós… Para mim, surpreende, interessa e desconcerta. Num dia escreve sobre o Governo, no outro sobre os tios que são do PCP e que estão no núcleo de Sacavém. Cruza o quotidiano com reflexão, algo que acontece quando se fala com ele.”
“””É muito mais tolerante do que se apresenta nas crónicas”
Uma pessoa do seu círculo de amigos, que prefere não ser identificada, fala precisamente nesse limbo, entre o que Henrique escreve e constrói à sua volta e a realidade, enquanto pessoa. “É muito mais tolerante do que se apresenta nas crónicas. Custa-me, porque sei que é um porreiro. É super-interessado, acessível, adora contar coisas. É odiado porque é de direita e pensa ao contrário de muita gente.”
Quanto a esse dark side, o outro lado da moeda, o da crítica, por vezes tão áspera e crua quanto as suas palavras, Henrique Raposo vive em paz com isso. “Desde muito cedo que me preparei para ser odiado. Estou preparado para que as pessoas não gostem de mim. Sou iconoclasta, o que choca com muitas pessoas. Faz parte”, desvaloriza Raposo. “Por cada hater, há um lover. Também há muito love mail. Escrevo em dois registos: política e a crónica, que é sobretudo mais pessoal e que toca mais os leitores. E isso pode ir desde as férias, às memórias dos avós, aos anos 80… Tenho pena que não exista mais em Portugal, porque é um texto que fala diretamente ao leitor. É mais apelativo. As pessoas estão fartas do discurso da coluna tradicional. Querem um texto mais pessoal, mais na primeira pessoa.”
“Tem esse condão de irritar”
O Expresso bateria à porta em 2008. “Foi o João Pereira Coutinho que me indicou o Henrique Raposo. Pedi-lhe para me indicar um tipo novo, mais para a direita do que para a esquerda, porque já tínhamos o Daniel Oliveira e queríamos equilibrar”, lembra Henrique Monteiro, ex-diretor do Expresso. Depois de ver os textos enviados por Pereira Coutinho, Monteiro não teve dúvidas: “Achei aquilo fresco, maluco, de direita (risos)… Achei que era o que estava à procura, que correspondia ao que queria”. Não demoraria muito a criar anticorpos, pelo tom e ideias.
“”Há quem o acuse de vender a ideia de ser pobre e tal, porque ele não encaixa no estereótipo de tipo de direita. É livre. Tem esse condão de irritar”
“É uma pessoa com muito conhecimento, estava sempre a ler, tem fome. É independente nos julgamentos que faz. Tem um defeito, que é ser benfiquista… doente… Tem análises e observações com que muitas vezes não concordo, é normal. Parece-me um tipo honesto, intelectualmente e pessoalmente. Não quer parecer mais do que é. Há quem o acuse de vender a ideia de ser pobre e tal, porque ele não encaixa no estereótipo de tipo de direita. É livre. Tem esse condão de irritar. Há uma parte dele que deverá gostar disso, tem um lado provocador”, conta Henrique Monteiro.
E continua: “É demasiado impetuoso, vem com a juventude. Passa com a idade, essa vontade de discutir, de convencer os outros, de ter razão. Quanto ao estilo, ele diz que é camiliano no conteúdo, mas não acho que o seja, nem nada que se pareça. Acho que escreve bem, tem um estilo simples de ler. Não se esconde atrás das palavras. Revejo-me na coragem que ele tem em desafiar o politicamente correto”.
Se as suas crónicas no Expresso já criavam há muito tempo celeuma, foi o livro “Alentejo Prometido” que agitou ainda mais as águas. O escritor foi ameaçado de morte e viu livros seus serem queimados. Foram criados grupos e movimentos nas redes sociais, até vídeos de mau gosto foram publicados no YouTube. “Ele ficou magoado”, conta Mascarenhas. “Ele leva as coisas muito a sério, tem muito orgulho no que faz e escreve. Acho que ficou muito magoado e preocupado, tem duas filhas pequenas. Com ameças de morte e queima de livros, uma pessoa fica assustada…”
“”A forma de escrever tem sotaque alentejano. Não sendo, continua a ser alentejano”
O ex-diretor da Atlântico associa esta turbulência toda à ida de Henrique Raposo ao programa de Pedro Boucherie Mendes “Irritações”, da SIC Radical. “A polémica teve a ver com o programa, mais do que com o livro em si mesmo. É uma carta de amor ao Alentejo. A forma de escrever tem sotaque alentejano. Não sendo, continua a ser alentejano. Muitas pessoas nem leram o livro, só ouviram o que ele disse na televisão. Foi brutal a falar, como costuma ser. Nem percebo como é que ele não faz mais programas de televisão.”
Pedro Boucherie Mendes diz ao Observador que ele não está para aí virado. “Acho que não quer isso. Sabe que está a atrair a atenção das pessoas. É um iconoclasta. Almoçámos uma vez ou duas. É alguém que escreve o que pensa. É um provocador no bom sentido da palavra. Sai fora da caixa, é preciso alguém que pense fora da caixa! Ele é uma pessoa irritante, o programa chama-se assim por alguma razão…”
De que fala, afinal, o livro? “É sobre o complexo do desenraizado”, explica Henrique Raposo. “Não senti que tinha uma terra, não sentia que era alentejano. Queria muito, mas percebi que não era. Eram os meus pais e avós. Vir a Lisboa era muito raro, estava na periferia. Hoje vivo em Lisboa e não me sinto lisboeta. O livro é sobre procurar as minhas raízes e não encontrar. Acabou por ser duro porque percebi que não sou alentejano e nunca serei.”
Raposo desvaloriza a revolta nas redes sociais. “Não respondo. Somos um país, como disse na apresentação do livro, que tem imensos tabus em relação ao seu passado. Inventámos sobre nós próprios a maior mentira de que há memória: os brandos costumes. O meu livro faz um retrato das particularidades violentas, políticas, religiosas, sexuais… Isso pode causar algum choque. O Alentejo antigo era muito violento, sobretudo para as mulheres.”
Henrique Monteiro concorda com Paulo Pinto Mascarenhas. “Penso que a reação veio mais depois do programa do Pedro Boucherie [“Irritações”]. As pessoas ouvem sound bites, não ouvem discursos. No caso deste livro, acho que se deslumbrou, porque o que descreve no Alentejo há noutros sítios do país, embora com outras intensidades. Ele teve uma desilusão com o Alentejo. Acreditou ou foi educado, ou cresceu, com aquela coisa de que as ideias eram puras, de que vivemos numa espécie de caldo cultural, que a sociedade é que estraga as pessoas. Nos meios pequenos, a pureza distribui-se em graus iguais ou mais violentos do que nos grandes meios. Pode tornar-se uma desilusão.”
Depois de escrever “Um Mundo Sem Europeus” e “História Politicamente Incorrecta de Portugal Contemporâneo”, Raposo aventurou-se pelo seu Alentejo que lhe escapa entre os dedos. O que se segue? “O trabalho que vou fazer de futuro tem mais a ver com este, com a narração de histórias, e não propriamente ensaios que já fiz antes”, revela Raposo. “Estou a fazer um retrato intelectual de Vasco Pulido Valente, aquele que me parece um dos intelectuais mais interessantes da geração anterior à minha. Não é uma biografia, é sobre o homem intelectual. Li tudo o que escreveu desde os anos 50. Li para perceber como pensavam.”