Meu caro General: o portador é um companheiro meu de luta que carece de saber do destino que teve um regimento seu, pedindo a sua reintegração no exército e que eu entreguei em mão própria ao Ministro da Guerra. Chama-se Costa Pinto e foi um bravo em operações em África.
Abraça-vos o vosso velho amigo
Machado dos Santos, julho de 1918.

O Herói da Rotunda dispensa apresentações; o companheiro de luta, algumas mais. Um republicano e um monárquico. Com formação militar os dois. Marinha e Exército. Um maçon e um católico. Angola passa pelo percurso de ambos pelos mesmos anos: Machado dos Santos na sequência de um artigo anti-monárquico, Costa Pinto como ajudante de campo de Alves Roçadas e oficial às ordens de Paiva Couceiro e João de Almeida em 1908, ano em que é proposto para a mesma Torre e Espada por heroísmo que Machado dos Santos receberia a título póstumo em 1926. Um participa activamente nas diferentes conspirações que levarão à implementação da República, o outro, ainda em África, pede a demissão quando ela acontece e a 1 de Fevereiro de 1911 manda rezar na catedral de Luanda missa por alma do Rei e do Príncipe.

A partir desse ano, e até ao fim da década, ambos irão estar permanentemente envolvidos na vida política portuguesa, em golpes e contra golpes, tendo como denominador comum a luta contra Afonso Costa, a hegemonia do partido democrático e a constante defesa do ideal de país, que, por meios diferentes, ambos procuravam alcançar. Com a independência de espírito que valoriza a dignidade humana e mostra o que é, de facto, ser livre. Percursos paralelos que se tocam e até se unem estando ou não e literalmente do mesmo lado da barricada. Em 11 de Maio de 1911, dias antes de Machado dos Santos ser deputado eleito à assembleia constituinte da qual resultará a Constituição Portuguesa desse mesmo ano, Costa Pinto é expulso do exército em decreto assinado por Afonso Costa e onde também estão José Relvas, António José de Almeida ou Brito Camacho. O motivo: ser um perigo real para a República. Não para Portugal, note-se.

E era Portugal que interessava aos dois: a tal luta comum vai ser essa. Conspirando sempre, Costa Pinto já tinha estado preso duas vezes quando, em fins de 1916 e passado o período de Pimenta de Castro, se une a Machado dos Santos no que será o último movimento que tentou juntar todos aqueles que se opunham ao envio de tropas portuguesas para o teatro de operações em França. É ele um dos autores do Rol da Desonra, escrito a partir do jornal O Liberal, seu grande impulsionador e responsável por milhares de exemplares distribuídos clandestinamente. Em contraponto ao Rol da Honra que o mesmo jornal ia publicando com os nomes dos caídos em combate, este panfleto de 14 páginas acusava directamente o partido democrático de, entre outros factos, proteger os seus elementos colocando-os em zonas de menor perigo nas trincheiras, descredibilizando-o e aos seus principais responsáveis e assim ao próprio regime. O jornal será suspenso por Afonso Costa e Costa Pinto novamente preso e expulso do país em Novembro de 1917, menos de um mês antes de Sidónio Pais chegar ao poder. Só que a liberdade não se dita, vive-se. E Machado dos Santos, o eterno insurgente que apoiara inicialmente Sidónio e de cujo governo fizera parte sabe que o exército português precisa de homens assim. Que não tenham medo. Costa Pinto voltara entretanto, sendo reintegrado e promovido a capitão.

Fins de Janeiro de 1919: instabilidade total no país e revolta monárquica em Lisboa. De novo em papéis decisivos, quase simétricos ainda que opostos, os dois. Costa Pinto a liderar os civis da “Real Coluna Negra” que avança sobre Monsanto e pelo qual será novamente preso; Machado dos Santos a chefiar o Batalhão Negro, também de civis, que parte de Lisboa para o Norte para aplacar a rebelião e restabelecer a ordem republicana. O mesmo brio, a mesma coragem, o mesmo sentido de liberdade. Se não sabemos se se terão voltado a cruzar-se sabemos que duas personagens que lutaram e se distinguiram em campos opostos, se encontraram em alguns momentos da vida e, talvez como num espelho, se reconheceram sempre. Amigos altamente prováveis porque em comum tinham a bravura, a insubmissão e, mais do que tudo, a lealdade. E o inconformismo.

Machado dos Santos pagaria com a vida em 1921, Costa Pinto viveria até 1969. Homem de muitas missões, algumas a coberto das funções que ia desempenhando, será o último secretário da Rainha Dona Amélia e regressará em trabalho a Angola em finais dos anos 50 numa viagem onde percorre parte dos caminhos onde tinha ajudado a construir grande parte do que foi a África portuguesa do século XX. Igual a si próprio continuava aos 85 anos, a lutar pelo que acreditava: Portugal. E escrevia numa das suas últimas cartas: Desistir Nunca. Grande e actualíssimo lema de vida este. Dos dois.

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