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É quase impossível comparar o panorama gastronómico de Portugal de há dez anos com o de agora. Mais restaurantes, melhores cozinheiros, mais estrelas Michelin e um interesse muito maior por parte do público em geral são alguns dos fatores marcantes desta evolução que simboliza uma mudança radical. No meio de tanta transformação, porém, há sempre coisas que se mantêm como âncoras, que vão contando a história de como tudo foi acontecendo e, claro, evoluindo com ela, também. O Mesa Marcada é um exemplo disso mesmo.
Foi há dez anos que um publicitário e um jornalista decidiram juntar-se para criar este blog gastronómico que é hoje — pelo menos no seio dos foodies e do pessoal da área da restauração — uma referência. Miguel Pires é o antigo publicitário, Duarte Calvão o ex-repórter e os dois juntos formam uma dupla cheia de contrastes mas que organiza, também há 10 anos, uma das mais consensuais entregas de prémios gastronómicos do país, os Prémios Mesa Marcada.
A poucas horas de saber quem são os vencedores deste ano — os prémios são atribuídos mediante uma votação feita por vários cozinheiros, gastrónomos, produtores e jornalistas, e revelados esta noite no Hotel Ritz, em Lisboa — vale a pena conhecê-los melhor e perceber como veem as mudanças que têm feito evoluir a comida portuguesa “cá dentro” e no estrangeiro. Para fazer isto o Observador pediu a dez cozinheiros que saíssem da cozinha e fossem eles a fazer as questões. O resultado está aqui.
José Avillez
Restaurante Belcanto
“Considerando que hoje são muitos os que se interessam, acompanham e opinam sobre o mundo da gastronomia, foodies, gastrónomos, bloggers, trendsetters e jornalistas credenciados, com carteira profissional, o que qualifica e o que é necessário para alguém ser um crítico gastronómico isento?”
Duarte Calvão (DC): Qualifica ter princípios éticos sólidos, o que hoje em dia é muito difícil. É uma grande confusão entre esses nomes todos. Portanto, ter isso bem presente. Quando se faz crítica é importante o leitor saber a posição em que a pessoa que está a fazer a crítica se encontra, se foi convidado, se lhe pagaram a viagem, se está a escrever como independente, se conhece o cozinheiro, se tem simpatias por ele ou não, se conhece há muito tempo ou há pouco, se está familiarizado com aquele tipo de cozinha ou se é a primeira vez que a encontra. Ou seja, acho que o leitor deve ser informado da circunstância de quem opina. O segundo ponto é ter bons termos de comparação. Se uma pessoa vai fazer uma crítica de um arroz de pato, convém ter comido muito bons arrozes de pato ao longo da sua vida.
Muito bons e muito maus…
DC. E muito maus também, ter experiência. Se vai a um restaurante de cozinha criativa convém já ter estado em bons restaurantes de cozinha criativa para não se deslumbrar com o primeiro truque que lhe fazem num restaurante. São essas duas coisas: primeiro, ter bem presente os princípios éticos e o dever de informar o leitor em que condição é que a pessoa que opina está; segundo, ter bons termos de comparação.
Miguel Pires (MP): Não emprenhar de ouvido, ou seja, quando lhe disserem que aquilo é maravilhoso ou é a última coca-cola do deserto, convém certificar-se depois. Ninguém hoje escreve no imediato ou não deveria. Acima de tudo, é importante haver uma reflexão. Acrescentaria também que, para se fazer uma crítica, convém saber escrever de uma forma atrativa, ou seja, saber captar a atenção do leitor. Para todos os efeitos, é um texto de opinião. Acho que estes são os pontos principais: a ética e o conhecimento. Nesse conhecimento podemos colocar uma série de coisas, desde a pesquisa, ao conhecimento mais académico, e até um conhecimento mais empírico — não é só porque se come desde que nascemos que estamos aptos a isso. Acrescentaria ainda que ajuda — não sendo obrigatório — saber-se minimamente cozinhar ou interessar-se por isso. Ajuda muito, por exemplo, a detetar certos problemas em pratos.
E a entender melhor, se calhar…
MP: Não é preciso é atirar o seu conhecimento para cima do leitor. Isso é uma coisa que pode ser sua e que só usa se for mesmo necessário, não para se destacar ao dizer que sabe muito do assunto.
DC: Só para dizer que acho muito importante a questão do saber escrever, escrever profissionalmente. Hoje em dia, nas redes sociais, há um determinado tipo de escrita profissional que estava mais nos meios tradicionais (nos jornais) e hoje em dia em alguns blogues. Acho ainda que nunca se deve estar à espera que um crítico seja um cozinheiro, que tenha os conhecimentos que um cozinheiro tem.
MP: Mas não é isso que eu estou a dizer…
DC: Eu sei, eu sei, estou só a frisar. Porque às vezes há um bocadinho essa ideia de que para se ser crítico tem que se saber como é que aquele prato foi cozinhado, a que temperatura estava o forno, ou se devia ter sido cortado daquela maneira ou doutra… Essa não é a função do crítico, ele só tem de apreciar, não é ensinar o cozinheiro a cozinhar.
Até porque os críticos escrevem essencialmente para clientes e à partida nenhum cliente saberá isso…
MP: Claro, exatamente. Isso importa mais se se escrever num meio mais especialista e que te exige algo um pouco mais sofisticado do que quando fazes para um publico mais generalista.
João Rodrigues
Restaurante Feitoria
“De onde vem o nome ‘Mesa Marcada’?”
MP: Eu sei, eu sei. Estávamos num viagem à procura de um nome para o blogue quando o tínhamos combinámos fazer. Na altura, até me lembro que propus que fosse “Entretém de Boca”… Mas é pá, isso tem uma conotação um bocado sexual, além de que o Quitério já tinha os direitos quase da frase.
DC: Detesto nomes a armar em engraçados, não gosto muito desse género de coisas. Em geral, gosto de coisas mais simples. Havia um filme na altura que tinha um título em português que não era mesa marcada, mas…
MP: Era o “Sem Reservas”…
DC: “Sem Reservas”… Era uma coisa qualquer. Houve ali uma altura que hesitámos com um nome e depois dissemos que aquele não.
MP: Sim, acho que havia sempre um bocadinho esse problemas, e também aquelas coisas de não gostares do som, ou assim. Depois, de repente, surgiu este.
DC: Acho que é um nome que nos põe onde devemos estar: Nós estamos do lado do cliente, não estamos do lado de lá. No fundo, somos clientes de restaurantes e falamos sobre isso. É uma situação como um cliente que marca uma mesa, nós somos um bocadinho isso. Somos alguém que anda a marcar mesas. [risos]
André Magalhães
Restaurante Taberna da Rua das Flores e Taberna Fina
“Descrevam, cada um, a mesa de restaurante ideal que gostariam de marcar neste momento e em que terra é que ela fica.”
DC: Neste momento…
MP: Bom, eu não vou dizer…
DC: Ia dizer Michel Bras. É um restaurante onde sempre quis ir mas nunca fui. Aquilo agora está um pouco confuso, com o filho a abdicar das estrelas [Michelin] e isso… Já não me interessa muito. Contudo, era realmente um dos restaurantes que eu tinha muito, muito interesse em ir e que nunca calhou. Mas há outros…
Por algum motivo em específico?
DC: Porque o Michel, não sendo tão famoso, não sendo tão comentado, foi das pessoas mais influentes na cozinha. Como apanhou um bocadinho a emergência da cozinha espanhola, acabou por ficar mais na sombra…
MP: Mas ele é uma referência…
DC: É, de facto, uma grande referência. Como estava enquadrado na cozinha francesa, praticamente todos os cozinheiros franceses dessa altura ficaram um bocadinho na sombra. Injustamente, a meu ver. Uma coisa não tem que ver com a outra, uma coisa não invalida a outra. O Michel foi realmente um tipo muito, muito importante. Continua a ser, só que agora já está numa fase diferente da carreira. Mas há outros… agora estou a pensar: gostaria de ficar mais em França porque acho que em Espanha já fui a quase todos os que me interessavam — não fui ao Diverxo mas também não interessa especialmente. Em França talvez fosse àqueles que não são muito de exotismos e têm muito essa raiz europeia da cozinha. Lá há inúmeras opções, como é evidente. Já fui a alguns, gostava de ir a outros…
MP: Quem me lê ou quem me segue sabe que um dos restaurantes onde espero ir em breve é o novo Noma.Já lá estive uma vez e tive a refeição que talvez mais me marcou. Por diversas razões: do serviço à comida, acho que eles foram mesmo muito inovadores. Às vezes as pessoas têm aquela ideia de que os nórdicos nos vão fazer sofrer. Não sei se é por causa dos filmes do [Ingmar] Bergman ou do Dogma ou uma coisa assim… [risos] Uma coisa que me surpreendeu muito ali no Noma é que o restaurante é muito feito para gerar prazer… E acho que continuam a mantê-lo assim. Este Noma 2.0 é uma continuação do primeiro, mas acho que é diferente. Quem acompanha redes sociais sabe que é de longe o restaurante mais apetecível desde que abriu. Não há chefe nenhum que não tenha ou que não queira lá ir… Ainda não calhou poder ir mas tenho insistindo em tentar ir à Dinamarca. É que até quero provar o menu vegetariano deles, acho-o muito interessante. Há quem ache que possa ser uma limitação, mas eu gosto quando alguém define um conceito e procura à sua volta para tentar alcançar esse objetivo. Não acho isso redutor, pelo contrário: é muito atraente.
António Galapito
Restaurante Prado
“Acham que o futuro da gastronomia portuguesa passa pela sazonalidade? Expliquem”
MP: Eu sou um grande adepto de cozinhar produtos de época e para mim não faz sentido não respeitar isto — sobretudo porque acho que os chefs também devem dar exemplos, ainda mais os que têm restaurantes de topo. Isto não tem novidade nenhuma, isso acontece pelo menos desde a nouvelle cuisine e foi muito propagado por alguns chefs como os que o Duarte mencionou. O Michele Bras, por exemplo, era um dos que respeitava muito isso. Para mim, acho desafiador quando um chef respeita isso colocando barreiras. Sabendo que o Duarte acha o contrário, eu defendo muito isso. Voltando ainda ao Redzepi [chef do restaurante Noma], lembro-me que vários desses cozinheiros franceses de que falávamos diziam que o que achavam de incrível no Noma era o facto de eles conseguirem manter-se intimamente ligados à sazonalidade utilizando apenas produtos nórdicos, fazendo com eles refeições espetaculares. Como também estive ligado à publicidade e havia essa lado da criatividade que era superar os desafios, acho super interessante esta abordagem e ela tem um lado didático muito relevante: mostrar às pessoas que não faz sentido comer morangos em janeiro que não têm sabor ou cor. Se um chef que deve ser uma referência está a utilizá-lo num restaurante é porque está a dizer que aquilo é uma coisa que está disponível. E está disponível, mas… para mim não faz sentido.
DC: A pergunta é o futuro da cozinha portuguesa? Claro que a sazonalidade em qualquer país do sul da Europa, como em Portugal com as quatro estações bem definidas e com uma variedade de produtos fantásticos que nos põe realmente no centro do debate gastronómico mundial — acho que a cozinha portuguesa, junto com a espanhola, a italiana e a francesa, é das mais interessantes, ricas e criativas. A cozinha italiana, por exemplo, é extraordinariamente criativa só que a um nível a que já nos habituámos. Mesmo aqueles pratos mais simples, da cozinha italiana regional, por exemplo, são extremamente criativos, vão muito além do grelhar não sei o quê e servir com produto sem mais nada… Esse sentimento de terroir tem que ver com a história desta região, ou seja, nós e os espanhóis trouxemos muitos produtos de outras partes, assim como os italianos desde o tempo dos romanos (onde já eram influenciados pelos gregos, pelo oriente,… Ou seja, nós fomos incorporando nas nossas regiões muitos produtos que vieram de variadíssimos pontos do globo — muitos deles adaptaram-se muito bem a essa mudança, até. O tomate é um exemplo clássico disso: O próprio Escoffier dizia que qualquer coisa que levasse tomate era “à portuguaise” apesar desse fruto ter apenas 100 anos de história no nosso país. É evidente que quem vai a uma região que tem esta riqueza de produtos, a sazonalidade há de ser sempre um trunfo, há de ser sempre alguma coisa que se tem de explorar. Em Portugal tem de se explorar isso também, com certeza, e não faz sentido nenhuma, de facto, o tomate em dezembro e coisas do género. Por outro lado, eu também sou contra discursos que aprisionem a criatividade e acho que às vezes esse discurso do excesso ideológico radical pode ser um empecilho para muitos cozinheiros. Eles não são obrigados, por serem portugueses, a só usarem produtos da estação portugueses — até porque muitos têm percursos que hoje em dia são cada vez mais globais. Ir buscar só por ir buscar apenas porque é chique todos termos yuzu, não. Agora, se alguém queira isso mesmo não estando na época, também não acho que deva ser crucificado.
MP: Eu aceito muito bem… Aliás, a Maria José (da Quinta do Poial), que muito respeitamos, dizia um pouco que plantava ou semeava sementes, vegetais que trouxessem de fora desde que eles se adaptassem e não fossem infestantes — porque pode ser terrível e dar cabo de tudo o resto à volta. E nesse sentido, do uso de alguns citrinos exóticos em Portugal como yuzu, por exemplo, tem muito que ver com o facto de haver um produtor que começou a cultivá-los cá em Portugal. Ora, estando eles disponíveis e sendo eles um sabor novo, é muito normal os chefs irem atrás dos sabores novos. Acho muito bem. Às vezes até podem dar um toque a pratos portugueses… lembro-me de uma coisa muito simples, do Vítor Sobral fazer um prato de amêijoas quase à Bulhão Pato mas com um toque de gengibre. Quanto muito, ele chamava-lhe “o meu bulhão pato” ou uma coisa assim qualquer…
Leonel Pereira
Restaurante São Gabriel
“O que significa para vocês a imparcialidade, tanto no que toca a avaliar ou noticiar restaurantes?”
MP: Eu acho que nós devemos frisar bem aquilo que de facto somos no Mesa Marcada: independentes. As pessoas às vezes confundem isso… Eu ou nós não somos imparciais. Quando falo em não ser imparcial não é eu gostar mais deste ou daquele chef porque ele tem um olho azul mais bonito ou mais feito… A comida tem de me entusiasmar. Se isso acontecer, eu tomo partido. Não é ficar cego e dizer que um prato de merda feito por um cozinheiro que aprecio é muito bom. É o facto de se uma cozinha me entusiasmar, eu apoio-a. Recentemente tive de fazer uma crítica onde comecei por explicar que já tinha ido a esse restaurante pelo menos dez vezes e onde afirmava que queria que o leitor soubesse isso. Claro que depois disso justifiquei, ponto a ponto, o que gostei no restaurante e em cada um dos pratos. É preciso as pessoas entenderem — às vezes ficam um pouco escandalizadas — que eu não sou imparcial, eu sou independente. São duas coisas distintas. Nem acho até que possa ser necessariamente mau demonstrar algum entusiasmo.
DC: Eu acho que nunca devemos esquecer para quem estamos a escrever. Vejo muitos que o fazem com o intuito de agradar aos chefs, ao restaurante e, às vezes em casos mais graves, a quem o convida a conhecer um determinado espaço. A nossa função, pelo menos como eu a vejo, não é agradar a chefs. Eu conheço muitos deles há muitos anos, sou amigo de vários mas não sou íntimo de nenhum — nem quero ser. Temos de ter muita consciência de qual é o nosso papel. Nós escrevemos para leitores, pessoas que vão aos restaurantes e que podem ser mais informados e interessados que outros. Não penso num leitor específico, quando estou a redigir alguma coisa (tentando sempre ser o mais independente possível, como dizia o Miguel), e procuro uma certa imparcialidade, se bem que a posso não encontrar sempre — é inegável que existem cozinhas de que se gosta mais e outras que se gosta menos. Procuro-a sempre, talvez por defeito profissional, até [Duarte Calvão foi jornalista durante vários anos]. É engraçado porque às vezes os cozinheiros de quem gosto mais são os que também sofrem mais. Um luxo a que me dou hoje em dia, que não o tinha quando era jornalista mas que agora me é permitido através do blog, é a hipótese de não escrever quando sou confrontado com coisas que ache banais ou muito iguais.
MP: Deixa-me só acrescentar que eu posso entusiasmar-me muito com um estilo, uma moda ou uma tendência (não vou dizer que lhes sou imune) e isso incentivar esse tipo de cozinha e essas práticas. Agora, o que é mau é penalizar outros que possam fazer cozinhas bem feitas e com sabor mas que são diferentes daquela que me esta a entusiasmar. No fundo, e para ficar claro, o ser imparcial ou parcial tem muito a ver com o gostar de determinadas coisas e ficar entusiasmado com elas mas não penalizar outros só porque não é exatamente a minha onda.
Alexandre Silva
Restaurante Loco
“Tendo em conta os dias que correm, com o número de blogs a crescer como se fossem restaurantes chineses, como é que se veem daqui a dez anos?”
DC: Eu acho que já existem muitos blogs nesta área — quando nós começámos já existiam vários, também. Acho que conseguimos, pelo menos até agora, acrescentar algo de diferente ao que já havia. Olhando para tudo o que veio a seguir, acho que não surgiu nenhum outro blog que nos pudesse afetar. A blogosfera, como se diz [risos], tem a vantagem de permitir que quem goste do assunto possa ler os blogs que quiser, ao contrário do que acontece com os jornais, por exemplo — as pessoas, normalmente, compram só um ou outro. Não há um ato de compra ou escolha como noutras plataformas. Daqui a dez anos, de facto, não consigo prever o que poderá acontecer. Acho que enquanto sentir que esta área me continua a despertar interesse e entusiasmo, mantenho-me como estou.
MP: O segredo da longevidade deste blog — os prémios fazem dez anos agora mas o blog faz só em junho — tem muito a ver com o facto de ele nunca ter sido muito estruturado ou ter tido muitos espartilhos. Nós levamos as coisas de forma séria, honesta e com uma certa ética mas não nos levamos demasiado a sério. Nesse sentido, não fazemos grandes planeamentos ou business plans… Talvez até seja um erro, fazermos isso. Se calhar podíamos faturar uma pipa de dinheiro com isto… [risos]. Obviamente que a gestão dos prémios já é algo com um peso importante e com um impacto que talvez não prevíamos, há uns cinco anos. As coisas vão andando.
Leopoldo Calhau
Restaurante Taberna do Calhau (por inaugurar)
“Preferem um prato cheio sem história ou um prato vazio com história? E preferem comer 10 pratos com três ingredientes cada ou 3 com 10 ingredientes?”
MP: Quero sempre um prato que tenha os ingredientes que deve ter. Aí sim defendo que não deva haver um espartilho só porque agora é moda usar apenas três ingredientes, ou algo do género. Um cozinheiro pode usar dez, desde que eles funcionem como uma orquestra que toca uma sinfonia. Por mim, ter três ou dez, desde que façam sentido… Se estivermos a falar de um menu de degustação com 30 pratos, convém que cada um deles não leve 20 ou 30 ingredientes.
DC: À partida, prefiro os dez pratos com três ingredientes que a outra opção. Mas não vejo mal nenhum que possa gostar de três pratos com dez ingredientes, dependendo de quem cozinha. Em relação à primeira pergunta, a dos pratos cheios sem história… Vou cometer um sacrilégio: Eu sei que o cozido à portuguesa tem grandes adeptos, mas é algo que não me entusiasma nada. Esse prato é talvez aquele que melhor simboliza a ideia de “prato cheio” — e é claro que tem a sua história — e, hoje em dia, não é algo que me entusiasme. Há uma certa monotonia… Olhemos para um bife, por exemplo: Ou ele é uma carne muito boa, muito bem temperada e etc, ou então como dois bocados e ao terceiro já não me interessa.
MP: E depende sempre da fome que tens. Se ela é intelectual ou física…
Vasco Coelho Santos
Restaurante Euskalduna Studio e Semea
“Que diferenças veem na nova geração de cozinheiros (até aos 35 anos) comparativamente a gerações anteriores?”
MP: Ah… Essa é interessante! Primeiro, acho que nestes últimos cinco ou sete anos, o mundo ficou muito mais aberto com tudo isto da “aldeia global”. Um chef pode fazer um prato no Japão e em cinco segundos estás a vê-lo cá. Isso faz com que haja um maior despertar das mentes e da curiosidade e isso está a fazer também com que os jovens e os miúdos que estão a aprender nas escolas comecem logo a ter interesse em ver o que se passa lá fora. Acho muito importante ganharem mundo e, de preferência, numa fase mais inicial das suas carreiras. Lembro-me que há pouco tempo, o pai de um jovem quis falar comigo por causa do filho, que estava a trabalhar com determinado cozinheiro mas, como não estava satisfeito com a experiência, queria ir para os barcos de cruzeiro. Nesse caso havia ainda a alternativa de ir para um três estrelas lá fora. Esse homem perguntou-me o que eu achava que seria melhor. Não sabendo da disponibilidade financeira dele ou das ambições do rapaz, disse-lhe que se entrasse num barco, provavelmente ganharia muito dinheiro em seis meses ou algo do género mas nunca mais sairia desse patamar, podia acabar por sentir-se frustrado, isto porque havendo alguma pretensão de ser cozinheiro noutra área, esse não é o caminho ideal. De início, quando se tem 20 e poucos anos, é quando se pode arriscar mais, há menos compromissos.
DC: A questão do viajarem mais parece-me determinante. Viajar e trabalhar em restaurantes muito bons. A maior parte das pessoas mais novas têm muito mais conhecimento prático por terem trabalhado nas cozinhas de alguns dos melhores restaurantes do mundo.
MP: Olha o Filipe Carvalho do 50 Seconds Martín Berasategui?
DC: Sem querer desconsiderar a geração anterior, acho que nesse tipo de vivência, tecnicamente estão muito mais bem apetrechados. Lembro-me de no início dos anos 2000 ter ido a uma escola de hotelaria, de ter falado do Ferran Adrià e ninguém saber quem ele era — algo que hoje é impossível de acontecer. A internet e a globalização veio facilitar muita coisa. Isso é extraordinário e muito, muito positivo, especialmente (e isto já se nota cá) alguns deles voltam e abrem os seus restaurantes. O lado negativo em geral é todo este aspeto da mediatização da profissão. É inegável que isso trouxe imensas coisas positivas, mas tem coisas negativas, nomeadamente o facto de alguns se deixarem fascinar por este lado mais celebridade. O meu medo é que eles achem cada vez mais que um chef com sucesso é aquele que numa semana está em Singapura, a seguir vai para o Brasil, depois fala em festivais e não sei quê. Isto tudo sem perceber que a grande cozinha é feita de uma aliança — nem fui eu que criei essa expressão, foi a Maria de Lourdes Modesto –, uma relação quase obsessiva entre os chefs e o seu restaurante, onde as ausências são vistas como exceção e não como regra. Esta geração pode ficar fascinada por esse mundo glamouroso sem perceber que há um lado chato.
Hugo Brito
Restaurante Boi-Cavalo
“Lisboa ficou irreconhecível nestes 10 anos, por boas e más razões. Inquieta-me muito uma certa perda de identidade e de referências (..) Apesar de (ou, precisamente, por) saber que o Mesa Marcada tem independência editorial – e a liberdade que a esta cabe – , que papel poderão, Duarte e Miguel (se concordarem com este diagnóstico), ter, no sentido de ajudar a desacelerar (já que deter é improvável) a velocidade com que esta Lisboa fica sem memória e sem marcos que a fixem (que os restaurantes também servem para isso)?”
MP: Não tenho qualquer pretensão de ser educador do povo. Acho que quando temos seguidores — e agora não falo só do Mesa Marcada mas um bocadinho também sobre os outros meios em que tu te podes mover –, gostamos de chamar à atenção a alguns pormenores (como o da sazonalidade, de que falávamos há bocado). Há alguns tempos fiz um post no Facebook sobre um restaurante chamado Cruzaria (servia comidas cruas e pizzas) que parecia ter nascido de uma pesquisa sobre os temas que estavam na moda aqui e ali. Era um bocado ridículo, até cheguei a escrever um texto um pouco cáustico sobre o assunto. Destaco isto porque, acima de tudo, os restaurantes são negócios. A partir do momento em que não fazem nada de ilegal têm direito à vida, o mercado depois definirá o seu percurso — independentemente de eles me interessarem ou não. Aquilo que me interessa defender é a diversidade e a possibilidade de tanto existir um restaurante de cozinha de memória, antiga e que existe à não sei quantos anos como restaurantes tipo A Cevicheria, do chef Kiko, que foi um dos primeiros a fazer isso cá. Gosto de ir a um e a outro, não gostaria nada que só houvesse um, ou outro. Defendo a diversidade desde que tenha qualidade. O Mesa Marcada defende restaurantes que fazem um bom trabalho, sejam eles de cozinha mexicana ou portuguesa tradicional.
DC: O que nós podemos fazer nestes casos é destacar os bons exemplos. Há sempre uma ideia subjacente a essas perguntas, a ideia de que é possível, através de medidas e leis manter um determinado tipo de coisas tal e qual elas existiam antes. Ora eu sou um bocado contra isso porque a vida das cidades é assim mesmo — e isto não é só em relação a restaurantes, as cidades vão se modernizando. Existem algumas leis ligadas a património e isso que devem existir mas, fora isso, não vejo no mundo dos restaurantes como é que pode haver algum tipo de intervenção nessa área. Tipo querer manter por decreto que certos restaurantes sobrevivam mesmo quando deixaram de fazer sentido. O que eu acho que podemos fazer é chamar à atenção para os exemplos positivos. Estou a adivinhar que nessa pergunta há uma certa defesa do restaurante tradicional português antigo. Ora, alguns desses restaurantes eram muitos bons mas também havia muitos que eram maus e ainda bem que acabaram. Não devemos defender alguma coisa só porque é antiga. Acho extraordinária a falta de memória de algumas pessoas que andam a defender a Lisboa de há vinte anos ou dez.
MP: Eu tenho muita pena, por exemplo, que uma Solmar [Marisqueira na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa] venha a ser transformada num restaurante italiano, não sei se bom ou mau (infelizmente, naquela zona não há nada muito bom). A verdade é que esse mesmo Solmar era um restaurante mau já na sua altura. Tenho pena que não tenha havido hipótese de lhe dar uma nova vida, com mais qualidade. Também se chorou imenso o desaparecimento da [pastelaria] Suíça que, curiosamente para mim que não sou de Lisboa, era um pastelaria emblemática, mas desculpem-lá, a Suíça já era há muitos anos uma anedota do que costumava ser. Mesmo em termos de património não havia ali muito para preservar. Esse tipo de coisas não me faz muita confusão, tirando esse lado das memórias que me traz. O Gambrinus não é um restaurante que me atraia muito mas ficaria triste (o mesmo com o Ramiro ou algo assim) se desaparecesse para dar lugar a mais um sítio com “bowls” e “poke” e coisas desse género.
DC: Uma coisa também é verdade: eu, pela minha história pessoal, nunca dei especial atenção à cozinha tradicional portuguesa ou a restaurantes dessa área. Quando entrei neste mundo dos restaurantes havia quase uma guerra contra qualquer inovação que se fizesse e, talvez por me diferenciar dos outros, sempre estive muito mais ligado a uma cozinha mais moderna, portuguesa. Sempre achei que devia acontecer em Portugal o que via acontecer no resto da Europa em termos de evolução gastronómica — e muitos, cá, acreditavam que seria impossível. Demorou mais que em outros sítios mas aconteceu e continua a acontecer.
Pedro Pena Bastos
Restaurante Ceia
“Se conseguissem, os dois, abrir um restaurante em conjunto, como é que ele seria?”
DC: Eish! [risos]
MP: O meu teria o máximo de cartilagens, algas e fermentados só para chatear o Duarte. Todos os dias chamaria os meus amigos que adoram isso e vinhos naturais para comer lá, sobretudo nos dias em que o Duarte estaria escalonado para trabalhar e comer lá.
DC: Ao longo dos anos já me perguntaram várias vezes se não estava interessado em ser sócio num restaurante. Devo dizer já que a última coisa que eu queria, mesmo que tivesse dinheiro para isso, era investir num restaurante! [risos] Se, por hipótese absurda, eu tivesse um restaurante ele teria comida que fosse passível de fazer dentro das suas características. O que eu acho pior num restaurante é quando eles fazem cozinhas que não são nem a imagem do chef nem da região. Se eu fosse o cozinheiro serviria muito peixe e nenhumas algas [risos]. Serviria algo que fosse aquilo que o seu chef defendesse e não apenas algo baseado em modas, experimentações ou memórias de não sei quê. Nada disso me interessa muito, a cozinha da avózinha mão me interessa nada, muito menos a de lugares onde nunca estive.