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Menos de uma semana depois de tomar posse como ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho toma uma decisão raríssima no contexto da diplomacia portuguesa: esta terça-feira, o Palácio das Necessidades anunciou que declarava persona non grata 10 elementos da representação diplomática russa em Portugal.

Foram alegadas atividades “contrárias à segurança nacional”, numa medida que acontece poucos dias depois de serem conhecidas as atrocidades cometidas contra cidadãos ucranianos em Bucha, cidade a curta distância de Kiev e que durante um mês esteve sob controlo das forças armadas russas.

A decisão de Portugal acontece, também, no mesmo momento em que vários países ocidentais — de entre os quais, uma série de países europeus — vêm anunciando um resfrear das relações diplomáticas com Moscovo que se materializam, também, na expulsão de parte do corpo diplomático instalado naqueles países. Mas poucos tomaram a decisão radical de expulsar o diplomata russo enviado pelo Kremlin para o país (Portugal não foi um deles).

O Observador explica-lhe, em nove pontos, o contexto em que é anunciada a declaração de persona non grata a 10 elementos da diplomacia russa em Portugal.

Que decisão foi tomada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros?

O Governo português declarou esta terça-feira que dez funcionários da missão diplomática russa são persona non grata, e deu-lhes duas semanas para abandonar Portugal. Num comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) indica que o embaixador da Rússia em Portugal já foi informado dessa decisão.

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Como justificação, o MNE diz apenas duas coisas: que se dedicavam a atividades “contrárias à segurança nacional” e que Portugal condena de forma “firme e veemente a agressão russa em território ucraniano”.

MNE diz tinham atividades “contrárias à segurança nacional”. O que é que isso significa? Quem podem ser estes diplomatas?

A lista dos nomes não é conhecida, mas não se tratará do embaixador nem, provavelmente, de nenhuma figura de proa do corpo diplomático, já que o Ministério dos Negócios Estrangeiros afirma que “nenhum destes dez elementos é diplomata de carreira”.

Esta descrição, aliada à acusação de que estavam a ser desenvolvidas atividades “contrárias à segurança nacional”, leva especialistas ligados à segurança e diplomacia, ouvidos pelo Observador, a defender uma posição unânime: serão indivíduos que se dedicavam à recolha de informação — vulgo, espiões.

“Quando se diz que não são diplomatas de carreira, quer dizer que podem ser agentes ou das informações militares ou civis russas, do FSB. São esses que são visados neste tipo de linguagem diplomática”, explica Bruno Cardoso Reis, historiador e especialista em segurança internacional. O mesmo diz Rui Pereira, antigo ministro da Administração Interna: “É de crer que sejam membros das forças armadas e/ou dos serviços de informações e dos serviços de segurança.”

O contexto e as palavras utilizadas pelo MNE não deixam grandes dúvidas a Garcia Leandro, antigo presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT): “É espionagem. É para dizer que fazem espionagem contra os nossos interesses.”

O facto de embaixadas como a da Rússia terem funcionários a recolher informação e enviá-la para o país de origem é algo aceite e tolerado, em situações de paz — até porque todos os países o fazem. Mas o contexto atual pode justificar uma mudança de posição das autoridades portuguesas.

Os especialistas ouvidos pelo Observador entendem que não é expetável que o Governo português apresente quaisquer dados concretos sobre o motivo da expulsão que, mais do que motivada por atos individuais destes funcionários, será justificada por uma vontade de Portugal se juntar a outros países ocidentais na condenação à ofensiva russa.

Declarar persona non grata significa expulsar?

É difícil que a conclusão do processo seja outra que não a expulsão. “É por isso que se dá duas semanas a estas pessoas para organizarem a vida”, explica ao Observador o antigo embaixador nas Nações Unidas, Brasil, França, entre outros postos diplomáticos, Francisco Seixas da Costa.

“Há filhos que estão na escola, há elementos da vida pessoal que têm de ser tidos em consideração” quando se atribui o estatuto de persona non grata (ou pessoa não desejada) a um elemento da representação diplomática de um qualquer país que esteja colocado, neste caso, em Portugal, acrescenta Seixas da Costa.

De qualquer forma, o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros é lacónico a este propósito: depois de anunciar a declaração do estatuto de persona non grata, o ministério de João Gomes Cravinho anuncia que estes elementos do corpo diplomático “disporão de duas semanas para abandonar o território nacional”.

Porquê expulsar 10 funcionários?

Ou, noutra formulação: porquê expulsar ‘apenas’ 10 funcionários da embaixada russa em Portugal? É tudo uma questão do sinal que se quer dar e do limite até onde se pode ir, prevendo a (previsível) retaliação de Moscovo.

“Decidir expulsar um número maior” de elementos do corpo diplomático russo “levantaria um problema”, explica Seixas da Costa. “Há países que têm embaixadas de dimensão muito pequena em Moscovo.” Não é claro quantos elementos tem, por exemplo, Portugal destacados na representação da embaixada na Rússia, mas, “a partir do momento em que o número de funcionários russos expulsos de Lisboa atingir determinada proporção, podemos, na prática, ficar sem embaixada” na Rússia, diz o antigo embaixador português, admitindo que a Rússia tomaria semelhante decisão na mesma proporção.

Se as relações comerciais entre Portugal e a Federação Russa estão suspensas neste momento — até como consequência das sanções impostas pela União Europeia ao regime de Vladimir Putin —, continua a existir algum câmbio diplomático. E, em última análise, há cidadãos portugueses na Rússia que continuam a poder precisar de algum tipo de acompanhamento da representação nacional naquele país, que deixaria de existir no caso de ser colocado um ponto final nas relações entre Lisboa e Moscovo.

No caso de países com representações diplomáticas de maior dimensão em Moscovo, o número de elementos da embaixada expulsos até pode ser maior sem que, com isso, se corra o risco de avançar para um corte total das relações diplomáticas entre os dois Estados.

E por que não expulsar o embaixador?

Porque, na prática, isso seria o fim da linha, um ponto de não retorno e uma solução indesejada para qualquer Estado.

“A decisão de expulsar o embaixador fica na soleira do corte de relações diplomáticas” entre os dois países, refere o antigo embaixador Seixas da Costa. “A não ser que haja motivos muito concretos, por qualquer ato praticado e que seja incompatível com os deveres que cabem ao embaixador, ao abrigo da Convenção de Viena”, acrescenta. “Expulsar o embaixador é um gesto político limite”, concretiza.

Veja-se, de resto, o panorama mais global: na Europa, apenas a Lituânia decidiu expulsar o embaixador russo destacado para o país. A decisão foi anunciada esta segunda-feira e justificada por Vilnius com a “total solidariedade” das autoridades lituanas para com a Ucrânia — um sentimento que saiu reforçado depois de serem conhecidas as mortes de civis na cidade de Bucha. Aliás, o anúncio da expulsão do embaixador russo no país acontece exatamente no primeiro dia útil após a divulgação das imagens de cidadãos ucranianos assassinados nas ruas daquela cidade dos arredores de Kiev, que esteve ocupada durante cerca de um mês pelas forças russas.

“Os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade cometidos pelas forças armadas russas na Ucrânia não serão esquecidos”, dizia o comunidade das autoridades lituanas em que se efetivava uma medida que significa, na prática, o corte de relações diplomáticas com Moscovo.

E, agora, a Rússia pode retaliar contra Portugal?

É possível. Mais do que isso: é até provável, dada a resposta de Moscovo a casos anteriores: ao longo das últimas semanas, Moscovo tem anunciado a expulsão de representantes diplomáticos dos vários países que foram anunciado medidas contra o corpo diplomático russo.

No final de fevereiro, poucos dias depois do início da ofensiva russa contra a Ucrânia, os EUA tornavam pública a decisão de expulsão de “12 agentes dos serviços de informações da missão russa” que, considerou o país, “abusaram” dos seus estatutos diplomáticos — os 12 elementos integravam a missão diplomática russa nas Nações Unidas.

A resposta da Rússia surgiu pouco depois, com o ministério de Sergei Lavrov, chefe da diplomacia russa, a indicar que, “em 23 de março, uma nota com a lista de diplomatas americanos declarados persona non grata foi remetida ao responsável da missão diplomática americana, que foi convocado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo”. O mesmo comunicado deixava clara outra nota que serviria de farol para situações futuras: “A parte americana foi notificada, de forma firme, de que qualquer ato hostil dos Estados Unidos contra a Rússia implicará uma resposta resoluta e adequada.”

O que é que se passou noutros países?

Já foram expulsos pelo menos 260 diplomatas russos da União Europeia e, na maioria dos casos, os anúncios oficiais são muito semelhantes aos apresentados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, com a utilização de termos vagos como “ameaça à segurança”.

Mas alguns países são mais concretos. Estónia, Letónia, Suécia e Eslovénia — que, no total, expulsaram 63 diplomatas e funcionários russos — fizeram acusações de “atividades de espionagem ilegais” e falaram especificamente em “crimes de guerra” cometidos pela Rússia na cidade ucraniana de Bucha.

A Polónia, país com uma antiga e tensa relação com a Rússia, expulsou 45 indivíduos que o ministro do Interior disse serem “espiões a fingirem que são diplomatas”. Também os Estados Unidos, ao anunciarem a expulsão de 12 funcionários da embaixada russa, falaram de “envolvimento em atividades de espionagem”.

Apesar destas referências, é raro os países apontarem para uma justificação concreta de espionagem ou ameaça à respetiva segurança nacional. A Eslováquia foi a exceção: em meados de março, expulsou três funcionários da embaixada russa, depois de descobrir que tinham pago a um jornalista para escrever a favor do regime de Vladimir Putin e que recrutava informadores com acesso a informação privilegiada da NATO. Neste caso, os diplomatas tiveram apenas 72 horas para deixar o país.

Eslováquia. O vídeo de um jornalista a ser corrompido que mostra como funcionaria a rede que vendia dados da NATO a Moscovo

O que diz a embaixada russa sobre a decisão do MNE português?

Muito pouco. Contactada pelo Observador, a embaixada da Rússia em Portugal respondeu com apenas duas palavras: “Não comentamos.”

E já houve outras expulsões de elementos diplomáticos destacados em Portugal?

A decisão conhecida esta terça-feira não é isenta de precedentes. Mas é preciso recuar algumas décadas — cerca de quarenta anos, na verdade — para encontrar outro episódio da história contemporânea em que as relações diplomáticas entre Portugal e a Rússia estiveram tremidas.

Francisco Sá Carneiro era primeiro-ministro de Portugal e o mundo vivia ainda a tensão latente de uma Guerra Fria entre a Rússia e os EUA. Líder do governo maioritário da Aliança Democrática, Sá Carneiro recebe uma lista com cerca de dez nomes de elementos do corpo diplomático russo em Lisboa que seriam, na verdade, membros do GRU — o serviço de informações militares de Moscovo — e do KGB — a inteligência civil. Eram, portanto, espiões e estariam em Portugal a promover ações de propaganda e agitação no Alentejo, financiavam o PCP e captavam informações do país que, depois, faziam chegar à Rússia.

A decisão de Sá Carneiro foi expulsar quatro dos nomes presentes nessa lista, num processo que o então primeiro-ministro designou de “Watergate vermelho”. Foi-lhes dado cinco dias para abandonar o país. Não voltaria a haver caso semelhante.

A situação mais próxima desse episódio — e, ainda assim, muito distante nos efeitos produzidos — aconteceu em 2016/2017 e envolveu os filhos do embaixador do Iraque em Portugal.

Em Ponte de Sorte, distrito de Portalegre, os dois irmãos terão agredido um outro jovem à saída de um bar — o menor, Rúben Cavaco, sofreu fraturas múltiplas e chegou a estar em coma induzido, mas acabaria por recuperar dos ferimentos. As agressões aconteceram no final de 2016 e o processo prolongou-se por vários meses. Pelo meio, o então ministro dos Negócios Estrangeiros e hoje presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, admitiu a possibilidade de vir a considerar o embaixador iraquiano e os filhos persona non grata.

Mas isso nunca aconteceu. O processo judicial aberto pelo Ministério Público seguiu para o Iraque e o caso foi dado como encerrado, sem repercussões diplomáticas de maior.