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Quando se fala da China no Ocidente é usual acoplar-se ao topónimo os adjectivos “misteriosa” e “enigmática”, que apenas revelam a ignorância sobre a China de quem assim se exprime, uma vez que a história e cultura chinesas não são mais “misteriosas” e “enigmáticas” do que a história e cultura tailandesas ou finlandesas – embora sejam mais complexas e multifacetadas. Apesar de os chineses fabricarem as nossas roupas, os nossos smartphones, os nossos electrodomésticos e as nossas máscaras cirúrgicas e serem dos principais accionistas de empresas como a EDP, a REN, o Millennium BCP, a Fidelidade e o Haitong Bank (ex-BESI, ramo de investimento do BES), o conhecimento da maioria dos portugueses sobre eles limita-se à experiência de entrar em bazares chineses – o que leva alguns ingénuos a assimilar a indústria e tecnologia chinesas ao bricabraque que lá é vendido – e em restaurantes chineses – que, maioritariamente, servem pratos adaptados ao gosto europeu, onde um chinês dificilmente reconhecerá as suas tradições culinárias.

O Japão e a Coreia do Sul também costumavam receber no Ocidente o epíteto de “misterioso” e “enigmático”, mas o facto de a cultura pop destes dois países ter ganho, nos anos mais recentes, forte implantação no imaginário ocidental, tornou-os mais “familiares”, ainda que esta impressão seja, em grande parte ilusória: muitos dos fãs ocidentais da cultura pop japonesa (anime, manga, cosplay) e coreana (K-pop, séries televisivas), pouco ou nada saibam sobre a história e cultura destes países. Também o fascínio pela “espiritualidade oriental”, que tem vindo a crescer no Ocidente, costuma ficar-se pela superfície e por formas edulcoradas, vagas e “sincréticas”, que se confundem com a New Age e o charlatanismo.

Para desfazer a aura “misteriosa” da China é indispensável aprender algo sobre o seu passado e A história da China: um retrato de uma civilização e do seu povo, de Michael Wood, publicado originalmente em 2020 e que chega a Portugal em edição da Temas & Debates e tradução de Artur Lopes Cardoso, é um bom ponto de partida – que enfrenta, nas livrarias portuguesas, a concorrência de livros com tema idêntico de Stephen G. Haw (na Tinta-da-China) e J.A.G. Roberts (na Texto & Grafia).

“A História da China”, de Michael Wood (Temas e Debates)

Wood é um historiador e divulgador de história bem conhecido do público britânico, sobretudo pelas numerosas séries e documentários televisivos de grande audiência sobre temas que vão da Guerra de Tróia a Saddam Hussein, passando por Shakespeare e pelo (suposto) fascínio de Hitler pelo esoterismo. Este surpreendente eclectismo tem vindo, nos anos mais recentes, a assumir um pendor chinês, com a série The Story of China (2016) e os documentários “How China got rich” (2019) e “Du Fu: China’s greatest poet” (2020), de cujo trabalho de pesquisa este livro é, claro, tributário. A origem televisiva do livro está patente nas deambulações pelas cidades históricas em busca de vestígios do passado e pela frequente inclusão, entre a narrativa mais distanciada, abrangente e objectiva da História “convencional”, de excertos de diários, cartas e testemunhos pessoais de protagonistas diversos – de imperadores e altos funcionários a soldados e cidadãos anónimos. Nesta perspectiva mais intimista da História, Wood recorre a uma representação feminina bem mais numerosa do que é usual, talvez para contrariar a ideia de que a civilização chinesa tem um carácter fortemente patriarcal.

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“Nas margens do rio durante o Festival Qingming”: a vida quotidiana em Bianjing, a capital da dinastia Song, de acordo com uma pintura de 1085 da autoria de Zhang Zeduan

Uma história da China em cerca de meio milhar de páginas (620 no caso do livro de Wood) está “condenada” a cometer numerosas simplificações e omissões, mas estas são inevitáveis, dada a antiguidade da civilização chinesa e a extensão e variedade geográfica, climática, ecológica e étnica do território onde se implantou – é uma tarefa tão ciclópica como tentar resumir para os leitores chineses a história da Europa num único volume. Já menos compreensível é que o livro de Wood pretenda cobrir 4000 anos de história de um país tão pouco conhecido na Europa com apenas sete mapas (não muito detalhados) e que não providencie em anexo uma cronologia das dinastias chinesas e dos seus imperadores mais destacados.

Dada a vastidão temporal e temática do livro, as considerações que sobre ele se seguem focam-se nas relações entre a China e a Europa nos últimos três séculos.

Retrato de Qin Shi Huang, o Primeiro Imperador (reinado 221-210 a.C.), incluído num álbum retratos de 86 imperadores da China, elaborado no século XVIII

Tumultos na Praça da Paz Celestial

Final da Primavera, Praça Tiananmen, Pequim: uma multidão maioritariamente formada por estudantes universitários expressa o seu descontentamento com o Governo e exige uma profunda reforma da política e da sociedade. “Numa cultura que respeitava tanto os velhos, os jovens tinham falado e as suas ideias espalharam-se como um rastilho de pólvora. Queriam varrer o que era velho e criar uma nova cultura baseada na democracia e na ciência do Ocidente” (Wood). O Governo chinês responde prendendo cerca de um milhar de estudantes, mas a medida não só não dissuade os estudantes de Pequim como faz as manifestações de estudantes alastrar a todo o país, leva os operários de Shanghai a entrar em greve e desperta a solidariedade de variados estratos da sociedade chinesa.

Estes eventos tiveram lugar em Maio de 1919 e foram um momento tão decisivo na História da China como as manifestações de estudantes que ocorreram no mesmo local 70 anos depois.

Praça Tiananmen, 4 de Maio de 1919

O desfecho das duas manifestações foi bem diverso: a de 1919 deu origem ao Movimento 4 de Maio, que abalou alguns dos valores e regras tradicionais que enformavam a sociedade chinesa e inspirou muitos dos futuros líderes comunistas chineses. A de 1989, acabou numa repressão brutal e num endurecimento da atitude do Estado chinês perante qualquer sinal de dissidência. Também as motivações dos manifestantes eram diversas: os de 1989 protestavam contra o controlo férreo do Estado comunista sobre os seus cidadãos e exigiam democracia e liberdade de expressão. Já os manifestantes de 1919 estavam exasperados pela inércia, tibieza e apego ao valores tradicionais – caducos, na perspectiva dos jovens estudantes – defendidos pela recém-criada República da China, que, em 1912, sucedera à última de uma longa sucessão de dinastias imperiais. Mas se muitas das motivações e reivindicações do Movimento 4 de Maio tinham raízes em assuntos internos chineses, o que espoletou as manifestações de 1919 foi um assunto de política externa – mais precisamente, uma cláusula do Tratado de Versailles. Mas para perceber a razão desta onde de revolta em 1919 é preciso recuar mais de um século…

Chinese Army Crushes Tiananmen Square Protest

Praça Tiananmen, 4 de Junho de 1989

Uma embaixada junto do imperador da China

A China foi, durante séculos, uma super-potência económica e militar e os europeus tiveram de submeter-se às condições extremamente restritivas impostas pelo Estado chinês às relações comerciais. Se nos séculos XVI-XVII os portugueses foram os europeus com posição mais destacada no comércio com a China, a partir do final do século XVIII foram os britânicos a assumir esse papel. Em 1793, com o intuito de consolidar a sua posição dominante no Sudeste Asiático, a Grã-Bretanha enviou junto do imperador chinês uma embaixada liderada pelo conde George Macartney, missão a que Wood dá um destaque plenamente justificado.

Na segunda metade do século XVIII, a Grã-Bretanha, encorajada pelo reforço do seu domínio sobre a Índia e pela liderança cada vez mais destacada da hierarquia das potências marítimas, julgou chegada a hora de renegociar os termos dos tratados comerciais com a China: “A Companhia das Índias Orientais negociara com mercadores chineses durante mais de um século, mas de uma forma estritamente limitada. Os mercadores estrangeiros só podiam entrar no porto de Cantão (a actual Guangzhou) durante cinco meses por ano e todas as transacções tinham de ser realizadas através de funcionários chineses, que impunham impostos elevados ao comércio externo”. O objectivo de Macartney, homem com provas dadas como diplomata, político, administrador e militar (fora governador da Ilha de Granada, nas Caraíbas, e de Madras, na Índia), era “obter concessões de território chinês junto das zonas produtoras de chá e seda e consumidoras de têxteis do país, onde os comerciantes ingleses pudessem viver e a jurisdição inglesa pudesse ser exercida. Queria instalar um ministro residente em Pequim e alargar as trocas e o comércio britânico a toda a China, negociando um tratado comercial e abrindo novos portos sob condições mais favoráveis do que as de Cantão”.

George Macartney, c. 1785, por Lemuel Francis Abbott

Macartney conquistou lugar nas compilações de citações altissonantes por, em 1773, ter reformulado em termos britânicos uma definição que antes estivera associada ao Império Habsburgo e ao Império Espanhol: “Este vasto império, em que o sol nunca se põe e cujas fronteiras ainda estão por definir”. Porém, o octogenário imperador Qianlong – tal como a sua corte – tinha uma ideia bem diversa sobre as posições relativas da China e da Grã-Bretanha: a segunda não era vista como um parceiro comercial mas como um estado tributário. E, a fim de realçar essa disparidade de estatutos, infligiu à embaixada britânica uma exasperante série de adiamentos, desencontros e desconsiderações, de forma que só várias semanas após a data prevista Macartney conseguiu obter uma audiência com o imperador e entregar-lhe os presentes que lhe eram destinados. Estes pretendiam “ser um mostruário das realizações científicas e artísticas da Grã-Bretanha e […] incentivar o interesse pelo comércio britânico”, mas o imperador não ficou minimamente impressionado com eles, como deixou claro através do poema com que aceitou, magnanimamente, os presentes:

“Outrora, os portugueses ofereceram tributo
Agora a Inglaterra presta homenagem
O mérito e virtudes dos meus antepassados devem ter chegado a costas distantes.
Embora o seu tributo seja trivial, o meu coração aprova sinceramente.
Às curiosidades e ao gabado engenho dos seus dispositivos não atribuo grande valor.
Embora o que trazem seja parco, ainda,
Na minha bondade para com homens de longe faço retribuição generosa,
Querendo preservar a minha boa saúde e poder”

O imperador Qianlong em armadura cerimonial, num quadro de 1758 por Giuseppe Castiglione

O imperador formalizou a rejeição liminar das pretensões britânicas com um édito destinado a fazer ver a Jorge III qual era o seu lugar: “Ontem, o vosso embaixador pediu aos meus ministros que me entregassem um memorial relativo ao vosso comércio com a China, mas a sua proposta não é consistente com o nosso uso dinástico e não pode ser tomada em consideração. Até agora, todas as nações europeias, incluindo os mercadores bárbaros do vosso país, realizaram o seu comércio com o nosso Celeste Império em Cantão. Foi esse o procedimento durante muitos anos, embora o nosso Celeste Império possua todas as coisas em prolífica abundância e não tenha falta de qualquer produto no interior das suas fronteiras”.

O imperador Qianlong caçando, num quadro por Giuseppe Castiglione

O caminho descendente

Porém, ao mesmo tempo que Qianlong redigia este édito, na enevoada ilha do seu “vassalo” Jorge III estavam a germinar as sementes da Revolução Industrial, que permitiriam à Grã-Bretanha e outras potências da Europa Ocidental fazer fulgurantes progressos no plano económico e militar. Em menos de cinquenta anos, a relação de forças alterara-se a tal ponto que a Grã-Bretanha se impôs à China nas duas Guerras do Ópio, de 1839-1842 e 1856-1860, obtendo pela força o que a diplomacia de Macartney não conseguira em 1793 (ver os capítulos “Cantão, 1839: A Grã-Bretanha como narco-estado” e “Pequim, 1860: “A recompensa da perfídia e da crueldade” em Em inglês nos entendemos (ou não): Comércio livre e proteccionismo, parte 3). A partir da década de 1830, os europeus vingaram-se implacavelmente de séculos de sobranceria e auto-suficiência da China, submetendo-a a humilhações e afrontas gratuitas, como seja o saque e destruição metódica dos dois Palácios Imperiais de Verão, perto de Pequim (as forças anglo-francesas chegaram a considerar também a possibilidade de, a título de “lição exemplar”, destruir a Cidade Proibida, em Pequim).

Ao mesmo tempo que as potências estrangeiras conquistavam privilégios comerciais e concessões em território chinês, o Império Chinês ia debilitando-se em resultado de uma agitação interna cada vez maior, que teve maior expressão da Rebelião Taiping, que varreu o país entre 1850 e 1864 e causou, directa e indirectamente, 20 a 50 milhões de mortos. Sob o imperador Tongzhi (reinado: 1861-1875) a China tentou, após a derrota dos Taiping, empreender um movimento de reforma, nomeadamente através do envio, em 1866, de uma missão à Europa e EUA, constituída por seis estudantes chineses que deveriam tentar absorver a maior quantidade possível de informação sobre as tecnologias e formas de organização do Estado e da sociedade que, em poucas décadas, tinham permitido à Europa suplantar a China. Esta tentativa de ajustar a China aos novos tempos teve outro momento decisivo quando em 1877 desembarcou na Grã-Bretanha Guo Songtao, o primeiro representante diplomático no estrangeiro na história do Império Chinês.

Guo Songtao (1818-1891), o primeiro embaixador da China na Grã-Bretanha

Entretanto, em 1853, outro império da Ásia Oriental fora arrancado, sob a ameaça dos poderosos canhões dos navios ocidentais, ao seu esplêndido isolamento: o Japão (ver capítulo “Baía de Edo, 1853: Comércio livre à força” em Em inglês nos entendemos (ou não): Comércio livre e proteccionismo, parte 3). China e Japão viveram décadas de tensão e até de conflito sangrento entre as forças que criam que a única forma de preservar a independência e identidade nacional era adoptar rapidamente as tecnologias e métodos ocidentais e as forças que consideravam os estrangeiros uma influência nefasta e pugnavam pela preservação das tradições e da “velha ordem”. A Restauração Meiji foi mais rápida, profunda e eficaz do que a Reforma Tongzhi, de forma que o Japão fez a transição para a modernidade mais depressa do que a China – tão depressa que em 1894-1895, o seu exército e a sua marinha, equipados, treinados e organizados segundo moldes ocidentais, infligiram uma pesada derrota à China, arrebatando-lhe a Coreia (que tinha sido um estado-vassalo da China) e Taiwan, obtendo direitos de navegação e comércio no Rio Yangtse e direitos de acesso a vários portos chineses, suplementados pelo pagamento de uma pesada indemnização. Pela primeira vez na História, a China perdia o estatuto de maior potência da Ásia Oriental.

O pequeno Japão dá uma sova no colosso chinês: cartoon no semanário satírico Punch de 29 de Setembro de 1894

O último imperador

Em resultado destas derrotas e humilhações, alguns sectores da população chinesa estavam crescentemente descontentes com a interferência estrangeira e a debilidade (ou falta de vontade) do Estado chinês em oferecer-lhe resistência. Quando a estas razões se somaram as privações resultantes de uma infortunada combinação de desastres naturais (secas e cheias), começou a fermentar um movimento de contestação liderado pela sociedade secreta dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros (com origem em clubes de artes marciais), que combinava a revolta contra os estrangeiros com o apoio ao Império Qing. Após vários atentados contra estrangeiros e tumultos dispersos, em 1900 os Boxers (assim ficaram conhecidos estes revoltosos) avançaram para Pequim, com o intuito de esmagar as representações ocidentais na cidade, concentradas no Bairro das Legações. A Aliança das Oito Nações (Grã-Bretanha, França, EUA, Alemanha, Austro-Hungria, Itália, Rússia e Japão) fez desembarcar, em tempo recorde, uma força expedicionária de 20.000 homens que marchou sobre Pequim, esmagou os Boxers (cuja crença de invulnerabilidade às balas se mostrou tragicamente desprovida de sustentação) e libertou os sitiados no Bairro das Legações.

Tropas britânicas e japonesas lançam-se ao assalto de fortificações defendidas pelos Boxers em Pequim, 1900, estampa por Torajirō Kasai, 1900

As tropas das Oito Nações aproveitaram para saquear Pequim e executar sumariamente todos os chineses suspeitos de terem colaborado ou simpatizado com os Boxers e o Protocolo Boxer, assinado em 1901, fez recair sobre a China mais uma revoada de penalizações, indemnizações, concessões, restrições e humilhações. As reparações de guerra que a China foi obrigada a pagar às Oito Nações foram fixadas em 450 milhões de tael de prata (18.000 toneladas), soma que, ao ver o seu prazo de pagamento estendido por 39 anos, ascendeu no total a 37.000 toneladas de prata.

Desfile de tropas da Aliança das Oito Nações no interior da Cidade Proibida, após a assinatura do Protocolo Boxer, em 1901

Estas indemnizações, aliadas ao crescente descontentamento popular, ao descrédito com que os chineses olhavam agora o Império e a alguns anos de más colheitas, fizeram a estrutura do Estado entrar em colapso – a fome tornou-se generalizada em 1907, estimando-se que tenha ceifado, só nesse ano, 25 milhões de vidas. As revoltas de camponeses tornaram-se cada vez mais frequentes – 113 em 1909, 285 em 1910 – e a 10 de Outubro de 1911 foi a vez de as tropas chinesas em Wuchang se rebelarem contra o debilitado e desacreditado Império. Este ainda resistiu durante alguns meses, mas a 1 de Janeiro, Sun Yat-sen proclamou a República da China e o imperador Puyi, à data com apenas seis anos, foi forçado a abdicar a 12 de Fevereiro (é ele o “Último Imperador” do filme homónimo realizado por Bernardo Bertolucci). Como assinala Wood, “tinham passado 2132 anos desde o Primeiro Imperador, quase três mil desde que os Zhou haviam proclamado o Mandato do Céu” – a doutrina que legitimava formalmente o “Filho do Céu” para governar a China.

Emperor Pu Yi As A Child

Puyi (1906-1967), em 1917. Após a abdicação, Puyi viveu na Cidade Proibida até 1924. Em Julho de 1917, um golpe de estado do general Zhang Xun recolocou-o no trono imperial durante 11 dias

A Questão de Shandong

A China estava muito afastada dos teatros onde decorreu a I Guerra Mundial, mas, tal como aconteceu com a República Portuguesa, a República da China, debatendo-se com grande instabilidade interna e escassa credibilidade externa, viu na participação no conflito uma forma de se legitimar junto da comunidade internacional e de assegurar vantagens territoriais – no caso do governo chinês, havia ainda a esperança de o seu contributo para o esforço de guerra da Entente poder ter como recompensa a anulação de parte das indemnizações e concessões a que a China ficara obrigada pelos anteriores tratados com as potências ocidentais.

Embora a sua posição inicial tenha sido de neutralidade, a 14 de Agosto de 1917 a China declarou guerra à Alemanha. Porém, a debilidade e impreparação do exército chinês levou a que o contributo da China para a guerra tenham sido não soldados mas trabalhadores – na verdade, a declaração de guerra e o alinhamento formal com a Entente apenas vieram formalizar uma situação que era factual desde o ano anterior, quando 20.000 trabalhadores chineses tinham sido contratados pela França e Grã-Bretanha para suprir a escassez de mão-de-obra decorrente do recrutamento de todos os homens aptos. E foi assim que, em 1917-18, 140.000 chineses desempenharam funções não-combatentes na Frente Ocidental e Médio Oriente, “cavando trincheiras, reparando tanques, montando granadas de artilharia e transportando munições” (Wood).

Membros dos Chinese Labour Corps descarregam cereais sob a supervisão de um oficial britânico, Boulogne, Agosto de 1917

Uma das recompensas que a China ambicionava com esta atitude era a recuperação da Península de Shandong, que, num tratado leonino imposto pelo Ocidente, fora atribuída à Alemanha em 1898, e que era um território que, para lá da sua importância estratégica e económica, tinha sido o local de nascimento de Confúcio, cujos ensinamentos e valores são centrais na civilização chinesa – nas palavras do embaixador chinês em França, Shandong representava para os chineses o mesmo que Jerusalém para os cristãos.

Membros dos Chinese Labour Corps, enquadrados por soldados britânicos, desmantelam um tanque britânico

Porém, a Entente rejeitara a proposta de colaboração para expulsar dos alemães de Shandong, feita pela China logo em 1914, e quem levou a cabo tal operação foram forças japonesas. Wood não o menciona, mas em 1915 o Japão forçou a China a aceitar formalmente a transferência de Shandong dos alemães para os japoneses – esta exigência fazia parte de uma lista de 21 apresentada pelo Governo japonês em Janeiro de 1915. A China começou por recusar, mas quando, em Maio, o Japão voltou a apresentar, sob a forma de ultimato, uma lista de exigências, agora reduzidas a 13 e tendo carácter mais modesto (entre as exigências relevantes só restara a Península de Shandong), o Governo chinês, agudamente consciente da sua inferioridade militar, acabou por aceder.

Apesar de terem feito esta cedência, os chineses ainda mantiveram a esperança de que o Tratado de Versailles, que iria definir o novo statu quo, lhes devolvesse Shandong. Todavia, a França e a Grã-Bretanha, useiras e vezeiras em comportamentos dúplices, já se tinham comprometido com o Japão, pelo que de Versailles saiu a decisão de manter Shandong em mãos japonesas. Foi esta decisão que despertou uma onda de ultraje pela China fora e levou à manifestação de 4 de Maio de 1919 na Praça da Paz Celestial, e ao movimento a ela associado, que pretendia descartar os valores confucionistas que até então tinham regido a China e que pareciam ser completamente desadequados aos tempos modernos, como a sucessão de derrotas sofridas pela China desde a década de 1830 comprovava.

Mapa alemão da Península de Shandong, 1912: a concessão alemã corresponde à área delimitada pelo pontilhado em torno da baía de Kiautschou (Qingdao), mas em torno de esta existia uma área “neutra” de 50 Km de largura sobre a qual China e Alemanha tinham responsabilidades partilhadas

A China no século XXI

Nos 103 anos decorridos desde este momento de fraqueza e humilhação, a China tem vindo a fazer um longa ascensão, que ganhou extraordinário ímpeto nas últimas três décadas. Hoje tem o 2.º maior PIB do mundo (13.4 biliões de dólares em 2021) e, a manterem-se as tendências atuais, é possível que ultrapassem os EUA (hoje com um PIB de 20.5 biliões) em 2028. É também o país n.º 2 em termos de despesa militar (252.000 milhões de dólares em 2021, contra 778.000 milhões dos EUA) e possui as maiores forças armadas do mundo (2.2 milhões de militares em 2021, contra 1.4 milhões dos EUA e da Índia). Também a sua atitude em termos de relações externas sofreu uma reviravolta e agora é ela a fazer o papel de bully, ameaçando invadir Taiwan e fazendo exigências territoriais exorbitantes no Mar do Sul da China (definidas pela “Linha dos Nove Traços”) que enfrentam a oposição das Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietnam e Brunei.

A Linha dos Nove Traços (a verde) apresentada pela China não tem sustentação histórica

Por outro lado, após ter negociado com a Grã-Bretanha e Portugal a reintegração de Hong Kong (1997) e Macau (1999), a China tem vindo a desrespeitar os tratados que conferiam a estes territórios um estatuto administrativo especial, com razoável grau de autonomia, democracia e liberdade de expressão.

Por trás desta nova atitude da China no século XXI está o presidente Xi Jinping (n.1953), que assumiu, em 2013, este cargo, que acumula com o de Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, assumido em 2012. Xi Jinping é filho de Xi Zhongxun, um veterano dirigente comunista que foi vítima da Revolução Cultural de Mao, passando muitos anos na prisão ou no exílio interno, mas, como escreve Wood, Xi Jinping “não é tanto o filho de Xi Zhongxun como o neto de Mao”.

Wood apresenta Xi como o promotor da “ressurreição dos ideais maoístas, em especial a tradição maoísta-leninista de ‘centralismo democrático’ e a repressão implacável da dissidência”, pelo que “a China de hoje é um estado híbrido confucianista-leninista com uma economia de mercado que enriquece os seus apoiantes da classe média” e em que o governo impôs “um conceito autoritário de ‘comportamento certo’, que lembra estranhamente os éditos dos imperadores Qing, mas agora com a ajuda da tecnologia moderna. Numa descendência quase linear do sistema de registo posto em prática pelo Primeiro Imperador [Qin Shi Huang, reinado 221-210 a.C.], hoje em dia os registos fiscais e os índices de valor social de cada cidadão são codificados nos bilhetes de identidade nacionais, que são necessários para a maior parte das operações, até para reservar um bilhete de comboio”. Graças à alta tecnologia, o moderno Estado chinês “entra nas vidas de todos e incentiva as pessoas a fazer o que o governo quer sem que haja recurso a ameaças abertas, mas com o aviso omnipresente do castigo subjacente. É um aparelho de controlo com uma dimensão e complexidade sem paralelo na história humana, mas que até agora foi aceite pela grande maioria da população em troca de estabilidade, prosperidade, bons serviços públicos, lazer e emprego”.

Vista parcial do famoso “Exército de Terracota”, um formidável conjunto escultórico em terracota representando 8000 soldados, 150 cavalos e 130 carros puxados por 520 cavalos, no túmulo do Primeiro Imperador

O futuro próximo

Wood prevê que “a próxima fase de renascimento nacional [da China] terá três pontos principais; a preeminência continuada do partido, a sustentação do crescimento económico e uma investida importante para afirmar a grandeza histórica da civilização e identidade chinesas”. No que diz respeito ao crescimento económico, a China continua com um desempenho impressionante – apesar do carácter pouco sólido de alguns sectores, como atesta o colapso, em 2021, do colosso imobiliário Evergrande – e, entre as grandes potências, é aquela que menos tem sido afectada pela pandemia de covid-19.

Desde a saída da edição original de História da China, em 2020, as tendências da governação chinesa apontadas por Wood têm vindo a acentuar-se:

● Xi Jinping, que já conseguira, em 2018, a abolição do limite de mandatos presidenciais, o que, na prática, o converte no governante vitalício da China, viu em 2021 a sua ideologia – formalmente designada como “o Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo de Características Chinesas para uma Nova Era”, ou, abreviadamente, “o Pensamento de Xi Jinping” – formalmente aclamada pelo Partido Comunista Chinês como um “fundamento da cultura chinesa”, uma distinção excepcional que o coloca a par dos líderes históricos Mao e Deng Xiaoping e o aproxima do conceito tradicional do “rei-sábio”, promovido por Confúcio e toda uma longa série de filósofos clássicos chineses, ao mesmo tempo que evoca o culto da personalidade associado a Mao, a Stalin e à dinastia Kim da Coreia do Norte.

Museum Of The Communist Party Of China

Big Brother is watching you: Xi Jinping em destaque no Museu do Partido Comunista Chinês, inaugurado em Junho de 2021, ano do 100.º aniversário da fundação do partido

● A aliança maligna entre a obsessão comunista com a vigilância e controlo dos seus cidadãos e as tecnologias de ponta do ciber-capitalismo de Silicon Valley tem vindo a intensificar a formatação das massas e a estreitar a margem para qualquer contestação . Graças à multiplicação de câmaras de vigilância e de apps que o cidadão descarrega voluntariamente para o seu smartphone e que registam os mais pequenos detalhes da sua vida, ao aperfeiçoamento dos softwares de reconhecimento facial, às redes capazes de agregar toda esta informação e aos algoritmos capazes de processar este mar de dados e deles extrair informação, a China já não está longe de concretizar o conceito de Tought Police (ou Thinkpol) do romance 1984, de Orwell, um organismo estatal capaz de reprimir e punir a dissidência assim que esta emerge como pensamento, muito antes de ser verbalizada ou convertida em actos.

“Ergamos bem alto a grande bandeira do Socialismo de Características Chinesas para a Era Xi Jinping”: Promoção do Pensamento de Xi Jinping, em Longhua, Shenzhen, província de Guangdong, 2017. Na URSS de 1920, no Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, Lenin proclamou que o comunismo era o poder dos sovietes mais a electrificação do país; na China do século XXI, o comunismo são os SUVs mais a electricidade mais o culto do líder

● Têm prosseguido as acções de reclamação territorial dentro da Linha dos Nove Traços (nomeadamente pela criação e consolidação de ilhas artificiais dotadas de instalações militares nos arquipélagos de Paracel e Spratly), apesar das decisões contrárias à China pela parte de um tribunal arbitral internacional regido pela Convenção da ONU sobre o Direito do Mar.

● As manobras aero-navais no Mar do Sul da China têm vindo a criar atritos cada vez mais frequentes com os EUA, que têm sido o principal obstáculo ao domínio militar incontestado da China nesta região; em Novembro de 2021, fotografias de satélite revelaram que um campo de tiro chinês no Deserto de Taklamakan, usado para testar mísseis, tinham sido construídas réplicas de vasos de guerra norte-americanos para usar como alvos.

● Tem-se intensificado, a pretexto do “combate ao terrorismo islâmico”, a repressão e doutrinação da etnia uigur e estima-se que cerca de um milhão de uigures – numa população de 12 milhões – estejam presentemente internados em campos de re-educação. O propósito do Estado chinês é conformar esta minoria (maioritária na província de Xinjiang), de origem turcomana e religião muçulmana, a crenças e comportamentos padronizados e aprovados pelo Estado. Este processo de assimilação forçada tem passado pela supressão da língua uigur e é significativo que em 2021 os manuais escolares em uigur tenham sido substituídos por manuais em mandarim e os autores e editores dos primeiros tenham sido perseguidos e condenados.

Uigures detidos num campo “de reeducação”, Xinjiang

● Embora a plena integração de Hong Kong e Macau na China estivesse prevista apenas para 2047 e 2049, respectivamente, as acções repressivas e as alterações legislativas dos últimos três anos já extinguiram, na prática, boa parte das garantias e liberdades inicialmente concedidas a estas duas Regiões Administrativas Especiais, pondo termo ao conceito de “um país, dois sistemas” que esteve na base da transferência de poder das potências coloniais para a China e levando à detenção ou exílio voluntário de muitos dos habitantes de Hong Kong que se opõem à hegemonia da China continental.

● A fim de puxar Taiwan para o seu regaço, a China tem proposto aos taiwaneses uma “integração suave”, através da atribuição do estatuto de Região Administrativa Especial, mas é natural que os taiwaneses, olhando para as recentes supressões de liberdades e autonomia em Hong Kong e Macau e para a retórica cada vez mais agressiva da China continental, se vejam na pele do cordeiro a quem o leão convida para um repasto vegan no seu covil e se dá conta que a entrada deste está juncada de ossadas de outros cordeiros. Wood não emprega meias-palavras para denunciar as inclinações autocráticas e totalitárias da moderna República Popular da China, mas nos mapas que inclui no livro, quando são delineadas as fronteiras actuais da China, estas abarcam Taiwan – uma medida precavida, atendendo à forma implacável como, nos últimos tempos, o Governo chinês tem perseguido e ameaçado com boicotes e outras represálias marcas, empresas, figuras públicas, governantes e políticos estrangeiros que, deliberadamente, por lapso ou por ignorância, se atrevem a sugerir que Taiwan não é parte integrante da República Popular da China.