Nem os economistas mais audazes estavam à espera de tanto. Segundo o INE, a economia portuguesa cresceu 2,6% no primeiro trimestre, em comparação com os últimos três meses de 2021, de longe o crescimento mais forte entre os 11 países europeus para os quais já existem dados. Mas os especialistas avisam que, embora o impacto da guerra pareça estar a chegar mais tarde a Portugal, ele acabará por fazer-se sentir de forma mais intensa – desde logo porque a inflação está a acelerar e já não se pode dizer que esteja entre as mais baixas da Europa.
“Não devemos embandeirar em arco“, atira Abel Mateus, professor universitário de Economia, em reação aos números divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) esta sexta-feira. Tal como os outros economistas que o Observador contactou para tentar enquadrar esta taxa de crescimento, Abel Mateus reconhece ter visto os 2,6% com surpresa mas a leitura que faz é que “ainda não terá havido neste primeiro trimestre um efeito grande da guerra na Ucrânia, por fatores como a maior distância geográfica de Portugal em relação ao foco das tensões, que é no leste europeu”.
O economista sublinha que “Portugal não é nenhum oásis” e “não está isolado dos efeitos indiretos” que inevitavelmente se irão fazer sentir à medida que os principais parceiros comerciais sofrem o impacto da incerteza económica provocada pela guerra, que veio exacerbar os riscos inflacionistas e a subida dos preços da energia – fatores que já vinham de trás.
“Vai ser sobretudo a partir do segundo trimestre e, também, no terceiro” que esses efeitos vão notar-se em Portugal, antecipa Abel Mateus, ressalvando que muito irá depender da forma como evoluir o conflito na Ucrânia. E a desaceleração expectável será tanto maior “se o turismo não recuperar significativamente, algo que será crucial tendo em conta a importância desse setor para a economia portuguesa”.
Economia portuguesa surpreende com crescimento de 2,6% no primeiro trimestre
Mas não terá sido o turismo a principal explicação para este crescimento trimestral de 2,6%, de acordo com as (escassas) explicações dada pelo INE nesta “estimativa rápida” que só será detalhada a 31 de maio. O que o INE destaca, acima de tudo, é que houve um “contributo mais positivo da procura interna” – que foi “em parte motivada pela aceleração do consumo privado“.
Por outras palavras, mesmo com a subida dos preços dos combustíveis e dos bens alimentares, entre outros, os portugueses continuam a animar a economia através do seu consumo – pelo menos, terá sido isso que aconteceu durante uma porção suficientemente grande deste primeiro trimestre (recorde-se que a guerra na Ucrânia só começou em finais de fevereiro).
Além desse “fator calendário”, Pedro Braz Teixeira, economista ligado ao Fórum para a Competitividade, admite que as medidas (políticas) de mitigação do aumento dos custos – designadamente dos combustíveis – terão contribuído para sustentar a procura interna. Mas, sobretudo, destaca outro fator: a poupança acumulada nos anos da pandemia e que, numa fase de regresso à (quase) normalidade, estará a permitir que os portugueses gastem mais em áreas onde não puderam gastar devido aos confinamentos pandémicos – como em férias, por exemplo.
O Banco de Portugal, através do governador (e ex-ministro socialista) Mário Centeno, já tinha defendido que a principal arma contra a inflação deveria ser precisamente o recurso a essa poupança adicional – que chegou a ser estimada pelo supervisor em cerca de 17,5 mil milhões de euros, mais do que o valor do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), isto é, a chamada “bazuca” europeia.
Embora, como o Banco de Portugal reconheceu, nem todos os cidadãos tenham conseguido fazer essas poupanças, o que os dados parecem demonstrar é que alguns daqueles que as fizeram estão, agora, a gastar – pelo menos uma parte. “Temos assistido a uma normalização da taxa de poupança, depois da subida registada durante a pandemia“, aponta Pedro Braz Teixeira, notando que o reverso da medalha dessa descida da poupança, por definição, é o consumo – e “isso também terá ajudado” ao bom desempenho da economia no primeiro trimestre.
Turismo vai continuar a ajudar. Mas não vai ser suficiente
O Fórum para a Competitividade, do qual Pedro Braz Teixeira é diretor do Gabinete de Estudos, até era uma das entidades mais otimistas para o crescimento neste primeiro trimestre, com uma previsão de até 1,5% – uma projeção que, caso se tivesse confirmado, representaria uma pequena desaceleração face ao crescimento de 1,7% no quarto trimestre (em relação ao terceiro). Mas até essa previsão de 1,5% foi largamente superada pelos 2,6% que o INE acabou por revelar.
Menos otimista ainda estava a Área de Estudos Económicos do Millennium BCP, que tinha admitido um crescimento negativo de 0,2% neste trimestre. Contactados pelo Observador, os economistas reconheceram que “o crescimento do PIB português se revelou muito forte, sobretudo quando comparado com os restantes países europeus”.
A economia “terá beneficiado do dinamismo do consumo, suportado pelos elevados níveis de poupança acumulados durante a pandemia e pelos baixos níveis da taxa de desemprego, bem como da expansão do investimento, impulsionada pela execução dos projetos do PRR“, dizem os economistas. “No entanto, a principal razão que terá distinguido a dinâmica muito positiva da economia portuguesa face às restantes economias europeias deverá ter sido o turismo, com Portugal a beneficiar da sua posição geográfica privilegiada no atual quadro geopolítico”, acrescenta o Millennium BCP.
“Este é um fator que, muito provavelmente, deverá continuar a beneficiar a economia portuguesa”, admitem os economistas do BCP. “Contudo”, apontam, “não deverá ser suficiente para evitar que o abrandamento da procura global, o agravamento das condições de financiamento e o aumento dos preços dos bens energéticos e alimentares se traduzam numa maior moderação do ritmo de crescimento da economia portuguesa nos próximos trimestres, em linha com os seus parceiros europeus”.
A propósito de subida dos preços energéticos e alimentares, Pedro Braz Teixeira salienta que os dados da inflação de abril – que foram publicados pelo INE exatamente à mesma hora que os dados do PIB – já permitem antecipar uma pressão crescente sobre os orçamentos familiares no início deste segundo trimestre.
Em abril, a taxa de inflação homóloga em Portugal terá disparado para 7,2%, segundo a primeira estimativa do INE, o valor mais alto dos últimos 29 anos e uma aceleração rápida face aos 5,3% de março. O economista diz que este registo, no fundo, faz com que “já não se possa dizer, como se tem vindo a dizer até agora, que Portugal tem uma inflação menor que na Europa“. Com efeito, a taxa de subida dos preços já está muito próxima dos 7,5% que são a média na zona euro. O Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC), que é o que conta para as comparações internacionais, registou uma variação homóloga de 7,4%.
Inflação acelera para 7,2% em abril, o valor mais alto em 29 anos
“Efeito da guerra ainda não está perfeitamente espelhado”
À medida que os portugueses começaram a sentir o aumento dos preços no início do ano, e sobretudo após o começo da guerra, “parece que inicialmente os consumidores ficaram um pouco sem saber o que fazer mas, depois, regra geral terão mantido as suas decisões de compras”. Mas é exatamente por isso que, na linha dos alertas de Abel Mateus, Pedro Braz Teixeira sublinha que “não se deve tentar extrapolar o primeiro trimestre para o resto do ano”.
Ao ler os dados, mesmo com os poucos detalhes que o INE dá, para já, “fica a ideia que há aqui um efeito da guerra que ainda não está perfeitamente espelhado” e, por outro lado, pode haver fatores pontuais que estão a fazer divergir” a economia portuguesa, neste caso no bom sentido. Note-se que Espanha cresceu apenas 0,3%, em cadeia, a economia alemã expandiu-se 0,2% e Itália até registou um crescimento negativo, de -0,2%.
Mas também há fatores mais técnicos que podem ajudar a explicar o crescimento mais veloz de Portugal. O economista João Borges de Assunção, líder do Católica-Lisbon Forecasting Lab (NECEP), nota que, segundo o INE, o crescimento de 2,6% do PIB também contou com um contributo mais positivo da procura externa líquida.
Aí, houve um crescimento mais intenso das exportações do que nas importações. “Este resultado era, de alguma forma expectável, fruto da dinâmica evidenciada pelas exportações de bens em fevereiro e março, bem como pela melhoria da procura turística. Já o crescimento menos intenso das importações em volume está relacionado com o deflator muito elevado deste agregado, com o INE a frisar uma nova deterioração dos termos de troca no 1º trimestre do ano“.
João Borges de Assunção salienta que é devido à influência desses aspetos mais técnicos que “os dados devem ser interpretados com muita prudência“. “Não é de colocar de parte um mero efeito contabilístico relacionado com o deflator das importações e com a deterioração dos termos de troca”, afirma o especialista, admitindo que quando saírem os dados nominais, a 31 de maio, isso possa “alterar a leitura da conjuntura“.
Economia (para já) recupera níveis pré-pandemia
Como o novo ministro das Finanças, Fernando Medina, fez questão de sublinhar no debate parlamentar desta sexta-feira, os dados do PIB divulgados pelo INE fazem com que neste primeiro trimestre “estejamos já 3,1% acima do primeiro trimestre de 2019”, ou seja, “recuperando para níveis pré-pandemia“.
Os economistas do BPI acrescentam que o registo do PIB divulgado pelo INE, nesta sexta-feira, também coloca o indicador 1,2% acima do registo do quarto trimestre de 2019, imediatamente antes do impacto da Covid-19.
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E será que este ritmo irá manter-se até ao fim do ano? Para já, diz o BPI, “os indicadores mais recentes sugerem que a atividade continua forte no início do segundo trimestre“, tanto o indicador diário de atividade que é divulgado semanalmente pelo Banco de Portugal como os indicadores de sentimento económico (incluindo os do próprio INE).
Porém, mesmo tendo a primeira estimativa para o primeiro trimestre superado as expectativas e os primeiros indicadores relativos ao segundo trimestre sejam “animadores”, o BPI prefere “manter inalterada a previsão de crescimento no conjunto do ano”, que é de um crescimento de 4,2% (inferior à previsão de 4,9% que o Governo faz no Orçamento do Estado).
E porquê a cautela do BPI? Porque há poucos “sinais de que o conflito na Ucrânia se possa resolver proximamente“, algo que é um “importante fator disruptor do crescimento económico”. “Contudo, num cenário em que não haja um agravamento significativo do conflito, poderemos rever em alta a atual previsão para 2022“, admitem os economistas do banco.