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Eduardo Costa, professor da Nova SBE, realça a necessidade de dar mais flexibilidade aos médicos
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Eduardo Costa, professor da Nova SBE, realça a necessidade de dar mais flexibilidade aos médicos

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Eduardo Costa, professor da Nova SBE, realça a necessidade de dar mais flexibilidade aos médicos

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Eduardo Costa. "Temos um problema de falta de autonomia e falta de responsabilização das administrações hospitalares"

Para o economista, o principal problema do SNS é a qualidade da gestão. A contribuir para o problema está a falta de autonomia dos hospitais. Muitos continuavam, a meio do ano, sem orçamento aprovado.

O presidente da Associação Portuguesa da Economia da Saúde (APES), Eduardo Costa, defende, em entrevista ao Observador, a responsabilização das administrações hospitalares, com base num mecanismo que premeie a boa gestão e penalize os hospitais “que tiverem pior qualidade de gestão”. “Há muita assimetria na qualidade de gestão dentro do SNS… alguns hospitais têm muito melhores resultados do que outros”, sublinha.

Quanto ao orçamento de Estado, o também professor da Nova SBE admite ter dúvidas de que o caminho de aumento continuado da verba dedicada à saúde (e que este ano ultrapassa os 15 mil milhões de euros) seja “sustentável ao longo dos próximos anos”.

Já no que diz respeito aos profissionais, Eduardo Costa defende que “tendencialmente, o poder de compra deve ser recuperado no SNS para a generalidade dos grupos profissionais”, isto se o setor público quiser “competir com o setor privado”. Mas uma coisa é certa: contratar e reter médicos no SNS passa não apenas pela questão remuneratória, mas também pelo modelo de organização e opções de gestão da vida profissional que lhes possam ser dados. Eduardo Costa fala, ainda, da necessidade de haver cuidados primários capazes de dar respostas aos doentes, para que as urgências não sofram a pressão de falta de meios nessa fase. Mas considera que não existem serviços de urgência a mais no país.

Oiça aqui a entrevista a Eduardo Costa

“Poder de compra deve ser recuperado no SNS”

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Há alguns anos falávamos muito sobre a suborçamentação na saúde. Agora diz-se que o problema não é dinheiro. Em que é que ficamos?
De facto, nós historicamente temos tido um problema de suborçamentação no SNS. Ou seja, todos os anos, a despesa realizada nos serviços de saúde ultrapassa aquilo que foi inicialmente orçamentado. Historicamente, portanto, nós desde 2003, salvo erro, temos tido um desvio na casa dos 5%. E, apesar do reforço orçamental que tem sido feito todos os anos, todos os anos acabamos por gastar mais do que aquilo que tínhamos inicialmente orçamentado. É verdade também que o que está previsto na proposta de Orçamento para o próximo ano indica que as contas vão estar mais ou menos equilibradas, com um défice muito pequeno, na casa do 0,1%. Isto significa que o reforço orçamental não tem sido por si só suficiente, mas tem contribuído para reduzir o suborçamentação. Onde é que temos um grande problema? Nos pagamentos em atraso. Apesar de estarmos hoje mais perto da execução do que aquilo que foi inicialmente orçamentado, estamos também com um grande nível de pagamentos em atraso.

Para pagarmos tudo [o que está em atraso], quanto é que era preciso?
Estamos a falar de qualquer coisa entre os 500 milhões e os 1.000 milhões de euros. Vai variando de ano para ano e tipicamente o que acontece é que, no final de cada ano, em dezembro, existe uma injeção extraordinária do Ministério das Finanças que permite trazer os pagamentos em atraso de volta para zero ou próximo de zero. O problema é que, a partir do momento em que o ano recomeça, e antecipando janeiro de 2024, temos uma tendência para voltar a acumular novos pagamentos em atraso, apesar do reforço orçamental. Há um ciclo vicioso que estamos com dificuldade em quebrar.

Temos tido um reforço orçamental nos últimos anos. Mas há ou não um problema de gestão no SNS que impede o uso eficiente dessas verbas que são acrescentadas todos os anos ao orçamento da saúde?
Sim, a dimensão financeira é sempre uma questão relevante e o princípio básico da economia diz-nos que as necessidades são infinitas e os recursos são limitados. Há sempre um problema de financiamento, mas o principal problema, na minha opinião, é a questão da gestão. Nós, ao longo dos últimos anos, temos tido um aumento muito significativo do orçamento. Entre 2011 e 2023, o orçamento aumentou 83%. Eu não conheço outra área do setor público que tenha tido um reforço orçamental desta dimensão. E, apesar disso, temos a suborçamentação, que persiste.

"Parece-me que, para além da questão financeira, que é verdade que tem sido reforçada, há claramente dificuldades ao nível da gestão"
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Temos a questão dos pagamentos em atraso e, além disso, temos toda a questão do acesso aos cuidados de saúde, que tem tido desafios (com o número de utentes sem médico de família, com as listas de espera, etc). E, portanto, parece-me que além da questão financeira, que é verdade que tem sido reforçada, há claramente dificuldades ao nível da gestão.

Mas com o orçamento que temos agora, conseguiríamos fazer melhor, ou seja, com que não houvesse tanto volume de pagamentos em atraso? Só nos governos de António Costa, o orçamento [da saúde] foi aumentado quase 6 mil milhões de euros. O orçamento para 2024 vai ter mais de 13 mil milhões. Não se conseguiria fazer isso tudo com estes 13 mil milhões?
Temos sempre o objetivo de tentar fazer mais com aquilo que temos. Ao nível da gestão há passos que podem ser dados. Há uma dimensão, que é a questão do bolo, digamos assim, que temos para utilizar no setor da saúde. E nesse aspeto temos, de facto, o maior orçamento de sempre, quer em termos nominais, quer em termos reais, se ajustado à evolução dos preços, da inflação. Mas temos um problema ao nível da qualidade dos instrumentos de gestão.
Quais são os incentivos que são criados através dos instrumentos de gestão que temos hoje em dia? Estou a pensar, por exemplo, no grau de autonomia das administrações hospitalares, a responsabilização que essas administrações hospitalares têm e também os instrumentos de financiamento que são utilizados para o financiamento das unidades hospitalares e de cuidados de saúde primários, ou seja, a chamada contratualização: como é que os hospitais e os centros de saúde recebem o seu orçamento e que incentivos é que são criados a partir desse orçamento. E vemos que há um grande desligar entre aquilo que é o orçamento e a contratualização e a atividade real do dia a dia dos hospitais.

"Temos tido uma taxa de execução muito baixa na despesa de capital do orçamento"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O Ministério das Finanças continua a limitar muito a autonomia dos hospitais. A meio deste ano, por exemplo, só metade dos hospitais tinham os planos de orçamento aprovados. Sem autonomia não pode haver boa gestão. Concorda?
Sim, concordo. Aliás, os planos de atividades e orçamento são uma condição essencial para que as administrações hospitalares possam efetuar a sua atividade de forma autónoma. E depois têm que ser obviamente responsabilizados pelos resultados que possam ou não ter. Mas aquilo que acontece é que muitos dos planos de orçamento para 2023, a meio do ano, ainda não tinham sido aprovados. Os planos de orçamento traduzem, por exemplo, as autorizações para contratações ao nível dos quadros de pessoal dos hospitais, do financiamento dos hospitais, etc. Se nós não temos esse tipo de planos aprovados a meio do ano, é muito difícil para as administrações hospitalares conseguirem trabalhar com esses valores. E, além disso, há um desvio também entre os valores orçamentados para os hospitais e os gastos reais.

Na despesa com investimento no SNS, todos os anos "executamos metade do que dizemos que vamos executar"
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Até agosto, e segundo os dados da Direção Geral do Orçamento, a execução do investimento no SNS estava a 20% do orçamentado.
Uma das rubricas que eu acho que é particularmente relevante e que não tem tido muita atenção é precisamente a despesa de capital, ou seja, o valor que temos no SNS para investimento, ou seja, construção de novas infraestruturas, novos hospitais, etc. E de facto, nós historicamente temos tido uma taxa de execução muito baixa na despesa de capital do orçamento. Entre 2003 e 2013, a execução da despesa de capital está nos 56%. Ou seja, nós basicamente executamos metade do que dizemos que vamos executar.

Mas porquê?
Há várias explicações potenciais. Há uma dificuldade burocrática associada a todo o processo de contratação pública. Isso explica o atraso de investimento na saúde, como explica a dificuldade de execução de investimentos noutras áreas da administração pública. E, aliás, agora com o PRR, temos tido muita essa discussão sobre a flexibilidade ou não, e a capacidade que temos, enquanto país, de executar essas verbas de investimento. Mas há uma outra dimensão que também é relevante: no total do orçamento da saúde em Portugal, nos últimos anos temos tido derrapagens, ou seja, gastamos mais do que aquilo que orçamentámos na despesa com pessoal, por exemplo, e depois, na prática, acabamos por gastar menos do que aquilo que orçamentámos na despesa com capital. E quando olhamos para o bolo total do orçamento não temos desvios muito significativos.

O desvio na despesa com pessoal é por causa das horas extra?
Não é óbvio porque é que existe um desvio na despesa com pessoal. Se olharmos, por exemplo, para o ano passado, tínhamos um reforço previsto da despesa com pessoal na ordem dos 3%. Ora, tendo em consideração a evolução do salário mínimo, a evolução das carreiras dos profissionais de saúde e o reforço de contratações que estava previsto ser feito este ano, estes 3% orçamentados pareciam ser curtos. E até hoje, quando olhamos para a proposta do orçamento para 2024, que nos diz também qual a previsão de execução para 2023, vemos que esses 3% se transformaram em 13% e tivemos um desvio significativo na despesa com pessoal, o que me sugere que somos relativamente otimistas quando fazemos a previsão dos gastos com pessoal. Para o próximo ano, estamos a prever 6,3% de aumento, que não me parece que seja muito compatível com aumentos na casa dos 60% para os médicos dos cuidados primários que passam para USF tipo B ou os 30% [dos médicos que adiram à] dedicação plena, etc. Portanto, parece-me que os gastos com pessoal são sempre uma grande fonte de pressão na execução do orçamento da saúde.

"Temos, principalmente, um problema de falta de autonomia e falta de responsabilização das administrações hospitalares"
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Mas acha que é otimismo ou é outra coisa qualquer?
Há toda uma dinâmica política associada à forma como os orçamentos são construídos. Não sei exatamente o que é que está por detrás destes 6,3% [de aumento da despesa com pessoal] no próximo ano. O orçamento não tem esse nível de granularidade e, portanto, enquanto investigador, olhando para estes números, não conseguimos decompor os vários efeitos. Conseguimos apenas analisar que, tendo em consideração as propostas que estão a ser anunciadas e com impacto a partir de 2024, este valor parece, de facto, curto.

Ainda regressando ao tema da gestão, acha que há um défice de qualidade das administrações hospitalares?
Nós temos principalmente um problema de falta de autonomia e falta de responsabilização das administrações hospitalares. Se a responsabilização pelas administrações hospitalares existir, conseguimos melhorar a gestão das mesmas, na medida em que temos, obviamente, um mecanismo de seleção que premeia aqueles que têm efetivamente uma boa qualidade de gestão e penaliza aqueles que tiverem pior qualidade de gestão. Há muita assimetria na qualidade de gestão dentro do SNS, porque olhamos para diferentes hospitais e muitos deles enfrentam problemas semelhantes, quer a nível financeiro, quer a nível do acesso. Mas, de facto, alguns hospitais têm muito melhores resultados do que outros, e isso independentemente de outras circunstâncias que possam existir, também reflete qualidades diferentes ao nível da gestão.

"Não me parece que tenhamos serviços urgências a mais no país"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

E o norte é, de facto, melhor que o sul?
O norte apresenta melhores resultados que o sul. Isso, em parte, pode estar relacionado com a qualidade de gestão, e também está relacionado com outros fatores. Os grandes hospitais do norte do país são normalmente mais recentes que os grandes hospitais do sul do país. No norte do país, a cobertura do utentes com médico de família não é total, mas está perto disso. Nas zonas de Lisboa, Alentejo ou Algarve estamos com taxas de cobertura muito inferiores. O facto de termos esta diferenciação faz com que o acesso aos cuidados primários no norte seja muito mais fácil do que a sul. E também temos esta ligação potencial entre o acesso a cuidados de saúde primários e o acesso aos cuidados hospitalares. Ou seja, quando os cuidados de saúde primários não funcionam, as pessoas dirigem-se aos cuidados de saúde hospitalares e às urgências. Se no norte temos uma maior cobertura por parte dos cuidados primários, é normal que os próprios hospitais consigam funcionar de forma mais eficiente do que que funcionam no sul. Isso não é necessariamente um problema de gestão, é um problema do sistema.

E o Governo parece querer trazer essa organização do norte para sul. Vê com bons olhos essa ideia?
Sim, há uma tentativa de replicar algumas das boas experiências que têm sido conseguidas em vários hospitais, em particular do norte do país, para outras zonas do país. Têm sido apresentadas muitas medidas recentemente que podem, de facto, permitir alguma mudança positiva na forma como tudo funciona em Portugal. O principal problema está relacionado com a questão dos médicos de família, ou seja, é difícil replicar algumas experiências no sul do país se não tivermos uma grande cobertura de médicos de família, por exemplo.

"Há muita assimetria na qualidade de gestão dentro do SNS... alguns hospitais têm muito melhores resultados do que outros"
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Tem que se começar pela base.
Há várias coisas que podem ser feitas, mas a base é certamente uma delas. Há um exemplo de um projeto que tem sido bem sucedido de referenciação de utentes. Ou seja, em vez de atendermos os utentes nas urgências, os utentes são atendidos nos cuidados primários. Isto está a ser feito em alguns hospitais no norte do país. Isto é muito difícil de ser feito, por exemplo, na região de Lisboa, quando temos uma grande parte da população que não tem resposta idêntica à resposta que a população do norte tem a nível dos cuidados primários.

Reorganização. “Criação da Direção Executiva veio tentar ultrapassar alguns problemas graves de falta de coordenação que tínhamos no sistema de saúde”

A existência ou a criação da Direção Executiva do SNS traz mais vantagens ou desvantagens?
Eu acho que a criação da Direção Executiva do SNS traz uma grande oportunidade de transformação do sistema. Desde a criação da Direção Executiva até este momento passou cerca de um ano e foram apresentadas uma série de reformas. A grande dúvida que persiste é até que ponto é que essas reformas se vão traduzir em resultados práticos, concretos, que melhorem o acesso da população aos cuidados aos cuidados de saúde. A criação da Direção Executiva veio tentar ultrapassar alguns problemas graves de falta de coordenação que tínhamos no sistema de saúde. Mas não é exatamente claro qual é o papel que vai ter no contexto do sistema de saúde, nomeadamente como é que se vai articular com outras instituições que já existiam dentro do sistema de saúde. Sabemos que, por exemplo, a Direção Executiva à partida irá substituir as Administrações Regionais de Saúde, que serão extintas. Mas não é clara a divisão de tarefas, de competências entre a Direção Executiva e a Administração Central do Sistema de Saúde.

Não se está só a transferir [competências] de um sítio para o outro?
Não é claro. E essa é uma preocupação que terá que ser clarificada nos próximos tempos. Existia uma grande expectativa em relação aos estatutos da Direção Executiva, na medida em que se antecipava que a publicação dos estatutos iria clarificar não apenas a forma de funcionamento da Direção Executiva, mas também a sua articulação com as restantes instituições no setor da saúde. E, de facto, os estatutos vieram explicar qual é a orgânica da Direção Executiva (quais são as caixinhas no organograma, quais são os departamentos, quais são as unidades, etc), mas continuamos sem saber como é que a Direção Executiva vai partilhar as suas competências com outras instituições, sejam elas a DGS, o Infarmed, SPMS, etc. E isso é um problema que pode limitar a eficácia da própria Direção Executiva nos próximos anos.

Como é que olha para as generalização do modelo das Unidades Locais de Saúde (ULS) a todo o país? Há uns anos a Entidade Reguladora da Saúde fez um estudo e concluiu que este modelo não era eficiente e tanto a Ordem dos Médicos como os sindicatos estão contra este modelo.
As Unidades Locais de Saúde são a integração na mesma estrutura de cuidados de saúde primários e de cuidados de saúde hospitalares. A lógica, que penso que todos conseguimos partilhar, é a ideia de que, centrando os cuidados no cidadão, na medida em que o cidadão circula apenas numa instituição que integra os cuidados de saúde primários e hospitalares, isso pode promover uma maior facilidade de circulação do próprio cidadão no sistema de saúde. O problema, na prática, prende-se com a forma como implementamos as Unidades Locais de Saúde e não propriamente com o conceito teórico das mesmas. E de facto, existem poucos estudos, mas os poucos estudos que existem — quer da Entidade Reguladora da Saúde quer outros que têm sido recentemente publicados, até mesmo em teses de mestrado — têm apontado que não existe indicação clara da superioridade das ULS atuais, que são oito, face aos restantes modelos.

Em que parâmetros é que não se verifica essa superioridade?
Não se verificam ganhos, quer em termos do acesso aos recursos, quer em termos financeiros das próprias instituições. O que levanta precisamente a pergunta sobre se devemos ou não generalizar este modelo para o restante do território nacional. Dito isto, não existe também evidência do contrário, ou seja, que as ULS sejam piores do que o modelo atual.

Nós já não estamos em época de fazer experimentalismos.
A grande questão aqui é pensarmos o que é que está a correr menos bem nas ULS e o que falhou na integração das ULS para garantir que estas próximas 30 que vão ser criadas não fazem os mesmos erros que as oito unidades anteriores fizeram. Há uma questão relevante que é tentarmos perceber de que forma é que esta integração é uma integração real que se traduz em mudanças reais na forma como os cuidados são organizados, porque na prática, parece que as ULS podem ser uma integração legal, uma integração financeira, mas não ter consequências práticas na organização.

O não funcionamento em rede é também um dos problemas do sistema atual?
Aqui estamos mais a falar de uma articulação entre os cuidados primários e os cuidados de saúde hospitalares, o que seria também fundamental para resolver, por exemplo, os problemas das urgências. Aqui temos uma questão relevante: estamos a falar de centros de saúde que estiveram, nos últimos 40 anos, separados dos hospitais e de profissionais que trabalharam de forma separada dos profissionais de saúde hospitalares. É preciso termos a noção de que nós não conseguimos ultrapassar esta questão de 40 anos a trabalhar de forma separada simplesmente com uma alteração regulamentar.
Além disso, a questão financeira é relevante, ou seja, a forma como nós fazemos o pagamento hoje em dia aos hospitais está relacionada com o volume de atividade dos hospitais, e que se traduz depois num financiamento agregado anual. Pretende-se, com as ULS, alterar para um modelo de financiamento per capita, ou seja, a unidade local de saúde presta serviços a uma determinada população e existe um valor pago por pessoa coberta pela ULS, com algum ajustamento ao risco dessa população, à carga de doença. Mas esses modelos, ajustados ao risco, são muito complexos. E não me parece, neste momento, que exista uma noção muito clara de qual é o nível de detalhe que esses modelos vão ter. E o grande problema é que, por um lado, isso dá um incentivo para tentar tratar o doente da forma mais barata e mais eficiente possível, mas é preciso que os incentivos estejam bem definidos.

"Nós não conseguimos dar médico de família a toda a população se continuarmos com o mesmo número de médicos de família que temos -- e que, aliás, nos próximos anos, vamos ter uma pressão ainda maior, porque o número de aposentações para 2024, 2025 e 2026 é muito significativo. Portanto, não vamos conseguir dar a cobertura a toda a população enquanto não houver um reforço do número de profissionais ou uma alteração da forma como esses profissionais funcionam, ou ambas as opções."
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Apesar deste dinheiro todo para a saúde, há falta de médicos e os cuidados de saúde estão pelas costuras. Se o problema não é dinheiro, é falta de pessoas?
Os problemas de falta dinheiro e de falta de pessoas estão obviamente relacionados, porque as pessoas, por si só, custam também dinheiro. E não deixa de ser verdade que o número de profissionais do SNS neste momento é o mais alto de sempre e, nos últimos anos, temos tido reforço do número de médicos, de enfermeiros e de outros grupos profissionais do SNS. Portanto, voltamos à questão da gestão. Nós precisamos de garantir que as pessoas que temos no Serviço Nacional de Saúde conseguem trabalhar de forma articulada e adequada para dar as respostas que são necessárias para a população. Dito isto, em determinadas áreas há claramente falta de profissionais de saúde, não apenas de médicos, mas também de médicos.

Por exemplo?
Estou a pensar no caso das urgências hospitalares. Os serviços de urgências hospitalares funcionam com médicos tarefeiros, ou seja, que não fazem parte dos quadros do hospital e que vão fazer turnos “ad hoc” nos hospitais; e com médicos que, sendo dos quadros, fazem serviço de urgências em horas extraordinárias. Na prática, temos os serviços urgências dos hospitais, que são a porta de entrada para os cuidados de saúde hospitalares, que acabam por não ter médicos dedicados ao serviço de urgências. O que mostra que, nos serviços urgências, temos claramente falta de profissionais. Outra área em que temos falta de profissionais é nos médicos de família. Nós não conseguimos dar médico de família a toda a população se continuarmos com o mesmo número de médicos de família que temos — e que, aliás, nos próximos anos, vamos ter uma pressão ainda maior, porque o número de aposentações para 2024, 2025 e 2026 é muito significativo. Portanto, não vamos conseguir dar a cobertura a toda a população enquanto não houver um reforço do número de profissionais ou uma alteração da forma como esses profissionais funcionam, ou ambas as opções.

Perante a recusa de milhares de médicos em realizarem mais horas extra, que é um problema que os hospitais estão agora a enfrentar, é inevitável um aumento da despesa estrutural, nomeadamente com os salários destes profissionais? Um estudo coordenado por si e pelo professor Pedro Pita Barros concluiu que os médicos perderam 18% do poder de compra na última década. É necessário compensar os médicos nessa ordem de grandeza?
Nós temos tido, ao longo dos últimos anos, uma redução real do poder de compra substancial quer para os médicos quer para outros profissionais da saúde e não só. Tendo em consideração o desgaste associado às profissões da saúde em Portugal, é normal que exista uma grande saturação, um grande nível de exaustão, até de burnout em algumas situações destes profissionais. Daí o facto de muitos médicos terem apresentado esta recusa em fazerem mais do que as 150 horas extraordinárias que já fazem. Portanto, precisamos de ter ou mais profissionais ou uma forma diferente de organizar estes profissionais. Isso implica mais despesa nas próprias remunerações dos profissionais. Parece-me claro, neste momento, que vamos ter aumentos salariais para a generalidade dos médicos que trabalham no SNS ao longo do próximo ano para recuperar algum desse poder de compra, mas acima de tudo há que tentar garantir que o SNS se mantém ou se torna um setor mais atrativo face àquilo que são outras opções que os próprios médicos possam ter, quer em termos de carreiras, quer em termos de prestação de cuidados de saúde no setor público ou no setor privado. Há duas questões que vale a pena termos em consideração. Primeiro, pensarmos a forma como queremos fazer esse aumento salarial, se há um aumento salarial across the board ou se temos um aumento salarial que esteja associado às questões de desempenho, às questões de atividade assistencial, etc — essa é uma das grandes áreas de dificuldade nas negociações atuais entre o governo e os sindicatos –; e uma outra questão é termos em consideração que tudo aquilo que nós fazemos para tornar o SNS mais atrativo para os médicos tem repercussões na atratividade relativa do SNS para outros grupos profissionais.

Como é que se atrai médicos para o SNS? Com flexibilização?
Há vários fatores e aqui a questão remuneratória é certamente um fator fundamental.

Mas parece que não é o único.
Parece que não é o único. Há até alguma evidência científica que demonstra que a questão remuneratória não é a única questão. Há outras questões relevantes, nomeadamente a flexibilidade, por exemplo na forma de construção dos próprios horários. Ou seja, até que ponto é que temos um horário fixo ou um horário personalizado ou simplesmente não temos um horário definido porque trabalhamos por objetivos ou por metas que sejam definidas. Isto é um fator que é particularmente valorizado por médicos e muitas vezes não tem que ser a opção A, B ou C, pode ser simplesmente ter várias opções e o próprio médico poder escolher o mecanismo que naquele momento da carreira considera mais relevante. Isso é uma questão muito relevante. Uma outra questão, que também é várias vezes mencionada, é a da autonomia dos profissionais, ou seja, até que ponto conseguem prosseguir o seu trabalho de forma mais autónoma ou se estão inseridos numa estrutura mais burocrática e mais hierárquica. Há experiências que têm sido feitas nos centros de responsabilidade integrados, que são unidades dentro dos hospitais caracterizadas por um grau de autonomia muito grande das próprias equipas e um pagamento associado ao desempenho dessas equipas, que têm tido algum sucesso naquilo que é a atração, ou pelo menos, a retenção dos profissionais do próprio SNS.

"O orçamento da saúde tem estado a subir substancialmente ao longo dos últimos anos, mas não é claro para mim se este caminho é sustentável ao longo dos próximos anos, ou seja, se vamos poder continuar a aumentar e a reforçar o orçamento da saúde ao mesmo ritmo do que temos feito nos últimos anos."
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

Há margem orçamental para aumentar os médicos na ordem que os médicos querem, os 20% ou 30%?
Tudo é certamente uma negociação e é normal que, neste momento, as expectativas dos médicos e a disponibilidade do Ministério da Saúde, estarão em níveis opostos da tabela mas, espero eu, que venham a encontrar-se algures no meio. Olhando para o orçamento para o próximo ano, temos uma margem orçamental pequena naquilo que é a previsão do aumento dos gastos com pessoal apenas na casa dos 6%. Mas, de qualquer forma, não me parece que seja isso que vá limitar potenciais aumentos que sejam definidos com os médicos ou com outros grupos profissionais. O orçamento da saúde tem estado a subir substancialmente ao longo dos últimos anos, mas não é claro para mim se este caminho é sustentável ao longo dos próximos anos, ou seja, se vamos poder continuar a aumentar e a reforçar o orçamento da saúde ao mesmo ritmo do que temos feito nos últimos anos. Se queremos gastar mais com profissionais de saúde, e penso que é importante esse reforço da despesa para tentarmos garantir que os profissionais de saúde sentem que têm o seu trabalho realizado no SNS — os profissionais de saúde são a espinha dorsal do SNS –, temos de garantir que o sistema funciona de forma mais eficiente para termos poupanças em algum outro lado.

Pelo menos estes 18% da perda de poder de compra deviam ser recuperados ou não?
Tendencialmente o poder de compra deve ser recuperado no Serviço Nacional de Saúde para a generalidade dos grupos profissionais, médicos, inclusive. Se queremos garantir que o SNS é um setor atrativo, o SNS tem que conseguir competir também em termos financeiros com outros setores, nomeadamente com o privado. E conseguir competir significa que pelo menos não exista uma quebra do poder de compra das pessoas que lá trabalham.

“Não me parece que tenhamos serviços de urgências a mais no país”

Voltemos às urgências. As urgências deviam ter preferencialmente médicos dedicados para não haver esse rodízio?
Isso é uma decisão política, não uma decisão técnica. Mas do ponto de vista técnico, há várias hipóteses que podem ser pensadas. Uma das questões é precisamente a ideia de termos equipas dedicadas aos serviços de urgência, ou seja, tratar o serviço de urgências como tratamos um serviço de cardiologia ou um serviço de medicina interna em que temos uma equipa fixa. Alguns hospitais em Portugal já têm equipas fixas.

Privados?
Hospitais públicos do SNS.

E há resultados disso?
Eu não conheço nenhum estudo sobre isso, seria muito interessante olhar para essas questões e tentar perceber do ponto de vista dos resultados, o que existe.

Em Braga esse modelo tem sido eficiente….
Além da questão financeira ou de resultados, ao nível da qualidade dos próprios doentes há certamente um benefício, que é o planeamento. No verão do ano passado, tivemos grandes dificuldades no preenchimento das escalas dos serviços urgências, em particular na ginecologia obstetrícia. Ora, se tivermos uma equipa fixa, é muito mais fácil preencher essas escalas do que se tivermos que andar à procura de médicos que consigam fazer um turno aqui ou um turno ali. Isso é uma opção. Uma outra opção está também relacionada, por exemplo, com a criação da chamada especialidade de medicina de urgência, formar médicos que sejam especialistas em medicina de urgência que vão alimentar as suas próprias equipas, especialidade essa que foi recentemente recusada.

A criação foi recusada pela Ordem dos Médicos. Não vai ser criada tão cedo.
Tão cedo não vai ser criada. Mesmo sendo criada, depois ainda precisaremos de esperar uns quatro ou cinco anos até que esses médicos ficassem efetivamente formados e pudessem chegar aos serviços. Seria sempre numa perspetiva de mais longo prazo. O fundamental na gestão do serviço de urgências é, por isso, e isto passa-se fora do hospital, garantir a articulação com os cuidados de saúde primários para tentar evitar que as pessoas recorram ao serviço de urgências. E nós aqui não podemos colocar o ónus nas pessoas. O cidadão quando recorre ao serviço de urgências, não o faz porque tem prazer em esperar várias horas numa sala de espera do hospital Santa Maria; um cidadão recorre ao serviço de urgências porque não encontra no Serviço Nacional de Saúde outra resposta. Falamos muitas vezes nisto, no número de pulseiras verdes ou amarelas no serviço de urgências, que serão casos que, à partida, poderiam tendencialmente ser resolvidos fora das urgências. Mas, o cidadão, no momento em que sente mal, não sabe se tem uma pulseira amarela ou uma pulseira verde. Nós não somos treinados para fazer triagem de nós próprios. Em segundo lugar, precisamos de garantir que esse cidadão sabe que existe uma determinada resposta que, na grande maioria do país, neste momento, não existe para ter uma resposta efetiva e atempada nos cuidados de saúde primários e evitar o seu recurso aos cuidados de saúde hospitalares.

A Saúde 24 não é a solução para todos os problemas?
A pandemia acabou por alavancar muito o que tem sido a utilização da linha Saúde 24 e acho tem uma utilidade muito grande naquilo que diz respeito ao encaminhamento dos doentes dentro do sistema de saúde. O problema é que se nós não tivermos centros de saúde abertos ou se não tivermos centros de saúde com capacidade resolutiva, por exemplo, com uma máquina de raio-X ou com capacidade fazer umas análises clínicas, na ausência dessas respostas, a linha Saúde 24 irá encaminhar, eventualmente, o doente para um serviço de urgências. Há um estudo, que já tem alguns anos, não sei se eventualmente as coisas mudaram, que mostra que os doentes, salvo erro no Hospital de São João, no Porto que vão pelo seu próprio pé sem terem falado com a linha Saúde 24 e são pulseiras verdes ou amarelas, estão mais ou menos na mesma proporção que os doentes que foram encaminhados pela linha Saúde 24 e que são pulseiras verdes ou amarelas. Portanto, a linha Saúde 24 funciona enquanto ponto de contacto do serviço de saúde, enquanto encaminhamento até para o serviço de urgências que estejam menos pressionados no momento em que o utente contacta, mas não conseguem evitar o encaminhamento para o serviço de urgências se não existir uma resposta nos cuidados de saúde primários.

Há uma referenciação para o hospital em excesso por parte da Saúde 24?
Enquanto tivermos um número muito elevado de pulseiras verdes ou amarelas nos cuidados de saúde hospitalares, temos claramente uma referenciação em excesso. Eu não diria que essa referenciação seja errada. Se não existirem respostas na outra ponta do sistema de saúde, a linha do SNS 24 faz aquilo que tem a fazer, que é reencaminhar os utentes para a porta que está aberta, que é neste momento a porta dos serviços de urgência. Grande parte do trabalho para resolver o problema dos serviços de urgência tem que ser feito fora do serviço de urgências, garantir que os cuidados de saúde primários têm mais capacidade para tratar de doença aguda não urgente dos doentes. Não sei se está nesse momento a ser feito. Eu sei que o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) prevê um grande investimento ao nível do reforço dos meios dos próprios cuidados de saúde primários. No passado, já tivemos algumas experiências, os chamados SAP (Serviço de Atendimento Permanente)…

… o CATUS (Centro de Atendimento e Tratamentos Urgentes).
Na prática acabavam por ser respostas dentro dos cuidados de saúde primários, fora de horas, mas não era propriamente um serviço de urgência.

Foram acabando…
À medida que fomos tendo a reforma dos cuidados de saúde primários e a reforma dos serviços de urgência, etc. foram-se tornando menos relevantes.

Mas eram importante termos os SAP ou CATUS, o que lhe queiramos chamar?
Podemos chamar o que quisermos. Eu penso que seria importante garantir que temos uma resposta para o doente agudo no centro de saúde. Para os utentes que têm médico de família existe a possibilidade da chamada consulta aberta, ou seja, o doente solicita uma consulta no próprio dia ou no espaço de 48 horas com o seu médico de família. Mas temos um grande problema porque há 1,7 milhões de pessoas sem médico de família e portanto sem possibilidade de ter este tipo de respostas de forma fácil.

"Ter uma flexibilidade maior e permitir que o próprio profissional de saúde, em cada momento da sua carreira profissional, possa optar por modelos diferentes, que estejam mais alinhados àquilo que são os seus objetivos."
Eduardo Costa, professor da NovaSBE e presidente da APES

O modelo de dedicação plena que está a ser proposto pelo Governo pode ser benéfico para atrair médicos para o SNS e ajudar também a fixar os médicos que estão no SNS?
A questão do dedicação plena ainda carece de explicações adicionais para percebermos exatamente qual é a proposta que está em cima da mesa. Em primeiro lugar, há várias hipóteses que têm sido discutidas ao longo dos últimos anos: a dedicação plena, a dedicação exclusiva e há alguma confusão entre os conceitos. Neste momento, a dedicação plena, como está proposta, parece ser uma questão opcional para os médicos, que podem aderir ou não. Aderindo à dedicação plena, têm um compromisso assistencial diferente, quer a nível de horas de trabalho, quer em nível de, por exemplo, trabalho em serviço de urgências, etc, mas têm também um acréscimo de remuneração e, portanto, a ideia de dedicação plena como uma opção adicional, naquilo que é o menu de alternativas de carreira que um profissional de saúde pode escolher, faz sentido.

Ter escolha.
Ter uma flexibilidade maior e permitir que o próprio profissional de saúde, em cada momento da sua carreira profissional, possa optar por modelos diferentes, que estejam mais alinhados àquilo que são os seus objetivos. O grande equilíbrio será perceber se o reforço dos 30% em termos salariais compensa ou não o acréscimo em termos de desempenho e carga de trabalho que lhes é solicitado. Essa é a grande discussão que está a ser tida entre Ministério da Saúde e os sindicatos.

Esse reforço pode ir até aos 50%. Acha que compensaria?
Estamos a falar de reforços bastante substanciais, um aumento de 50% é de facto um aumento muito significativo e não conheço outros profissionais de saúde ou fora do setor que tenham tido aumentos recentes nessa ordem de grandeza. Também é verdade que é injusto tratarmos estes aumentos salariais como aumentos salariais per si, porque têm uma contrapartida ao nível do horário de trabalho, ao nível das horas, que tem de ser tido em consideração.

Mas mesmo que seja de 50%, compensaria o cancelamento da atividade num hospital privado?
Tenho dúvidas de que possa compensar, mas vai depender muito de especialidade para especialidade e até da região do país, com intensidades de disponibilidade do setor privado muito diferentes. E também não é óbvio para mim os limites que a dedicação plena tem ao nível daquilo que é a prestação no setor privado. Ou seja, a dedicação plena não é dedicação exclusiva e portanto, salvo erro, todos os que já estão em funções de gestão não podem acumular com o setor privado, mas os profissionais que não estão em funções de gestão podem continuar a acumular com o setor privado. Não tenho a certeza até que ponto é que isso vai ser competitivo, mas teremos que esperar para ver, nos primeiros anos, se efetivamente temos uma grande adesão ao regime, e não tendo temos de perceber porquê, se faz sentido mantê-lo ou se faz sentido repensar a forma como o próprio está definido.

O Governo terminou com três PPP (parcerias público-privadas) na área da saúde — Hospital de Vila Franca de Xira, Hospital de Braga e Hospital Beatriz Ângelo. Qual foi o impacto dessas reversões e como é que podemos avaliar hoje esses hospitais?
Que eu conheça ainda não existe qualquer estudo científico detalhado que analise o pós fim das PPP. Mas temos estudos que analisam o impacto das PPP. Há um estudo muito relevante da Entidade Reguladora da Saúde que demonstra que existiram ganhos ao nível do acesso dos doentes e ao nível financeiro da própria gestão das unidades. A única PPP que neste momento está em vigor é a do Hospital de Cascais, que foi renovada, as restantes três acabaram, existiu em tempos uma outra PPP no Hospital Amadora-Sintra, que também já terminou há muito tempo. Mais do que discutir se a gestão dos hospitais é pública ou privada, interessa perceber, e essa discussão não tem sido muito feita, porque é que a gestão privada dos hospitais públicos funcionou melhor, ou seja, que instrumentos de gestão é que tinham as equipas de gestão das PPP que fizeram com que as PPP fossem um caso de sucesso, em particular o Hospital de Braga, que era claramente aquele que se destacava em termos positivos. Creio que isto está muito relacionado com a questão da autonomia da administrações hospitalares e da responsabilização dessas administrações hospitalares. Não é propriamente o facto do administrador, da pessoa que está a gerir no hospital, ser melhor ou pior num hospital de gestão pública ou no hospital de gestão privada, é a qualidade dos instrumentos que essa pessoa tem à sua disposição para gerir o hospital. E eu penso que nós devemos aprender muito com aquilo que foi o modelo PPP e tentar replicar o que correu bem no modelo de PPP nos restantes hospitais públicos.

Não se faz por preconceito ideológico?
A questão das PPP é uma questão ideológica. Mas não importarmos algumas ferramentas do modelo PPP para os restantes modelos de gestão pública, é mais um problema técnico, de dificuldade de operacionalização desses instrumentos nos hospitais públicos, ou seja, há falta de capacidade técnica para conseguimos garantir que conseguimos importar e melhorar a qualidade da gestão dos hospitais públicos. Algumas das propostas que têm sido apresentadas por parte da direção executiva, de aprovação a tempo e horas dos planos de atividade e orçamento, de maior autonomia das administrações hospitalares uma vez tendo esses planos aprovados, são passos nesse caminho, de aproximação àquilo que é uma gestão mais autónoma dos hospitais face à sua tutela. Nós precisamos é de garantir que estes passos se concretizam e que conseguimos garantir essa autonomia.

Há sempre uma discussão em Portugal sobre o número de hospitais que existem. Temos boa cobertura, insuficiente cobertura ou sobrecobertura?
Varia de região para região. Há regiões em Portugal que têm um número de camas por 1000 habitantes relativamente baixo e outras regiões que comparam bem até em padrões internacionais. A região de Lisboa tem um número de camas por 1000 habitantes com uma maior tensão. A área de influência do Hospital Amadora-Sintra é muito grande para a dimensão que o hospital tem. Isto, na prática, acaba por se traduzir e acaba por explicar alguma da pressão que observamos, de forma empírica, em alguns hospitais e, portanto, sim, temos um problema em algumas zonas específicas no que diz respeito à cobertura hospitalar. Isto tem de ser um estratégia de longo prazo, mas o grande foco do sistema tem que ser em evitar que os doentes cheguem ao hospital, ou seja, tirar os doentes do sistema. Isto passa pela prevenção, que é obviamente muito relevante, garantir que a população é mais saudável para precisar de menos cuidados de saúde, mas, por outro lado, garantir que, independentemente da questão da prevenção, temos uma resposta nos cuidados de saúde primários, porque é o ponto mais próximo do cidadão, e é o ponto, do ponto de vista financeiro também, mais barato para tratar os doentes e ao fazê-lo conseguimos evitar pressão nos cuidados de saúde hospitalares.

Temos ou não de fechar algumas urgências?
A questão do fecho das urgências prende-se com uma outra dimensão, ou seja, não se prende com o facto de existir excesso de resposta ou falta de resposta, prende-se com o facto de não existir capacidade em termos de recursos humanos para garantir que aquelas urgências estejam neste momento abertas. Ou seja, eu não creio que neste momento em Portugal exista um excesso de urgências. A razão pela qual temos tido várias urgências a encerrar, até de forma rotativa, está relacionada com o facto de termos tido grande dificuldade em assegurar as escalas dos hospitais e, portanto, tomou-se a opção de, em vez de termos hospitais a fecharem de forma aleatória e abrupta, vamos fazer um calendário que permita, na prática, planear o encerramento dessas urgências para garantir que o cidadão consegue antecipar que essas urgências vão estar encerradas. Portanto, não me parece o cenário ideal, mas parece-me melhor do que o cenário que tivemos no verão de há dois anos de urgências que do dia para a noite encerravam portas e o cidadão não sabia onde se dirigir. Dito isto, no geral, não me parece que tenhamos serviços urgências a mais no país. Em períodos de menor procura, não me choca que, por exemplo, na área metropolitana de Lisboa, se faça o mesmo que já se faz na Área Metropolitana do Porto há alguns anos, que é o esquema de urgências rotativas.

De algumas especialidades, como gastroenterologia, oftalmologia, etc?
Basicamente que exista uma partilha de recursos, aí sim, uma verdadeira partilha de recursos entre hospitais e profissionais de vários hospitais que prestam serviços de urgências noutros hospitais para garantir que, em períodos de menor procura, precisamos de um menor número de recursos disponíveis no sistema de saúde. Mas isso não significa que tenhamos urgências em excesso no país.

Relativamente às horas extras no SNS, custam mais de 200 milhões e no orçamento para 2024, atingem 300 milhões. Não seria mais eficiente contratar-se mais médicos para se diminuir este volume de horas extraordinárias? Um médico por ano custará muito menos do que sobrecarregar com horas extraordinárias os já existentes. Ou são os médicos que querem fazer as horas extraordinárias?
Eu vi umas contas recentemente, não fui eu a fazê las, em que o volume de horas extraordinárias daria para contratar qualquer coisa como mais 2000 médicos. Sobre as horas extraordinárias temos que fazer uma distinção sobre a razão pelos quais as horas trabalhadas existem. Uma coisa é termos um pico de atividade, por exemplo, um período de gripes, ou alguma outra opção que possa criar pressão adicional num hospital, e precisamos de ter hora extraordinárias para fazer face a esse pico de atividade. Temos uma outra situação em que temos uma quebra rápida da oferta, ou seja, houve um conjunto de profissionais que ficaram doentes, que deixaram de prestar serviço e eu preciso de ter horas extraordinárias para compensar a ausência desses profissionais. Nestes dois casos, as horas extraordinárias fazem sentido, e são um bom instrumento de gestão. Nós não devemos contratar médicos por si só face às horas extraordinárias. O problema das horas extraordinárias é quando são utilizadas de forma recorrente para suprir necessidades constantes do sistema de saúde. Isto verifica-se muito no serviço de urgências. E aí as horas extraordinárias acabam por sair mais caras e é menos estável do que aquilo que seria a contratação de profissionais de saúde. Para resolver essa parte das horas extraordinárias — não sei exatamente qual é a parte desses 200 ou 300 milhões –, de contratar mais médicos e/ou aumentar a remuneração desses médicos para garantir até que os conseguimos contratar.

É preciso conseguir contratá-los…
Exatamente. Essa é a grande dificuldade. Não basta dizermos que vamos querer contratar mais 20.000 médicos para o SNS se não os conseguirmos contratar. Ainda que seja verdade que temos hoje mais profissionais de saúde, médicos inclusive, do que aquilo que tínhamos antes. Também é verdade que em determinadas especialidades e em determinadas regiões, temos tido dificuldade em preencher as vagas. Em medicina geral e familiar, as vagas, na zona de Lisboa, muitas delas ficam por preencher, em particular naquilo que são os CSP (cuidados de saúde primários), os centro de saúde clássicos, que não têm incentivo. Os incentivos financeiros, na prática, permitem aumentar substancialmente o salário do médico.

Agora, até há a discussão sobre se temos mais médicos ou não do que a média da OCDE.
Temos um problema grave do ponto de vista estatístico. Quando comparamos internacionalmente o nosso número de médicos com o número médicos da OCDE somos um dos países com mais médicos per capita, o que levanta a conclusão de que temos excesso de médicos. Mas o problema é que o número português, ao contrário daquilo que outros países fazem quando reportam essa estatística à OCDE, indica todos os médicos com cédula ativa na Ordem dos Médicos. Isto significa médicos que podem já estar reformados ou que não estão a exercer medicina, podem estar noutras funções, podem estar em funções de gestão, podem estar na política. Estima-se que possa existir um desvio de 30%, ou seja, uma subestimação em 30% desse valor. Mas nunca vamos conseguir saber exatamente qual é esse valor a não ser se formos somar exatamente todos os médicos que estão no SNS, mais os médicos que estão no setor privado. E temos muitos médicos que estão no SNS e que estão no setor privado e por isso temos de ajustar esta dupla contagem, mas não temos dados que nos permitam identificar qual é o profissional que está num lado e qual é o profissional que está no outro.

Menos de metade dos médicos inscritos na Ordem trabalham no SNS. O que indica que de facto não temos falta de médicos, temos é falta de médicos no SNS. Concorda?
Temos parte dos médicos que estão no SNS, temos parte dos médicos que estão na Ordem que estão no setor privado, e temos parte dos médicos que estão no SNS e que estão no setor privado, mas temos uma parte dos médicos que está na lista da Ordem  dos Médicos que não estão a exercer medicina e essa parte tem que ser descontada e nós não sabemos qual é o volume dessa parte. A evolução do número de profissionais no setor público sabemos, mas não sabemos quantos médicos há no setor privado, nem quantos médicos estão a acumular o setor público com o privado. Tenho estado a trabalhar nesses números recentemente, utilizando as bases de dados dos quadros de pessoal, ou seja, o registo de todos os funcionários que existem no setor privado com contrato de trabalho. Vemos um aumento substancial no número de médicos com contrato a full time no setor privado ao longo dos últimos anos. Mas o problema é que temos muitos médicos que trabalham no setor privado, que trabalham em regime de prestação de serviço, por recibos, e esses médicos não nos vão aparecer nas estatísticas. Por isso, é muito difícil saber exatamente quantos médicos é que estão no público, no privado e no público e no privado em simultâneo. Beneficiaremos, enquanto país, de termos uma maior visibilidade sobre esses números e ia ajudar-nos a pensar e a estabelecer prioridades em termos de política de saúde.

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