Aos 12 anos, a contragosto, obrigado pelo pai, já trabalhava na Fábrica de Loiça de Sacavém, terra onde nasceu a 16 de fevereiro de 1935. Em idade de brincadeiras e sonhos, o convívio diário com pintores, escultores e operários fabris surtiria um efeito claro em Eduardo Gageiro: levá-lo a decidir ser fotojornalista.
Quando publicou a primeira fotografia no Diário de Notícias, com honras de primeira página, graças a uma máquina de plástico do irmão, um jovem Gageiro estava longe de imaginar a relevância que o seu olhar teria no registo da história e histórias do país. Queria ser fotojornalista para denunciar as injustiças do mundo, numa época em que o regime do Estado Novo preferia que fotografasse mais paisagem e menos humanidade. “De nenhuma maneira sou revolucionário nem filiado a nenhum partido, mas achei necessário mostrar o que era o Portugal real. O mundo é tão difícil”, reflete hoje, aos 88 anos.
Ao longo de décadas, Eduardo Gageiro revelou o Portugal de Salazar, esteve na linha da frente do 25 de Abril, captou o atentado nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, retratou a emigração portuguesa, a repressão policial, o trabalho nas fábricas, no campo, na construção civil. Chegou a ser preso pela PIDE à conta da fotografia de uma mulher da Nazaré, que vestida de negro mostrava a dureza da vida portuguesa. É que aos olhos do regime, a fotografia, que chegou à capa da revista O Século Ilustrado, em 1962, dava “uma má imagem” de Portugal.
São 70 anos a fotografar um país, nas suas várias vicissitudes políticas, sociais e culturais, que se mostram em Factum: Eduardo Gageiro, a exposição no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril que abre este sábado ao público, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, e que reúne mais de 170 fotografias do fotojornalista. A mostra, com entrada gratuita, fica patente até 5 de maio.
Numa grande entrevista ao Observador, o fotógrafo recorda o dia da Revolução que mudaria o país para sempre e diz que uma grande exposição da sua obra em solo nacional peca por tardia.
Traz uma máquina fotográfica no bolso.
Sempre.
Continua a fotografar?
Continuo, claro. Tenho esta há pouco tempo porque há uns dois ou três anos uns jovens tentaram roubar-me a máquina e fiquei em pânico. Não os agarrei, mas agarrei na máquina. Então comprei esta, que é ótima. Só ando com a Canon como deve ser quando é, por exemplo, 25 de Abril e há muita gente. Agora não me aventuro por Lisboa assim.
Que máquina é?
É uma Canon também [mostra uma Canon PowerShot G7X, que cabe na palma da mão], uso Canon há 60 anos, mas deste tamanho. Tem uma grande angular e tem uma meia tela, é fantástica. É digital. Ao contrário das fotografias desta exposição. Nenhuma delas é digital, eu é que revelo os rolos e faço as ampliações. Vendo as fotografias assinadas — e bem pagas, para o nível português — sobretudo para o estrangeiro. Faço coleções pequenas com um documento a dizer que foi feito segundo as técnicas tradicionais, por mim.
Ainda é o Eduardo que faz as revelações?
Tudo. Com revelador, fixador, dá um trabalho que nem queira saber. Cada vez revelo menos. Cansa-me muito, estar muito tempo em pé. Tenho 88 anos. Mas adoro.
Daí andar com essa compacta.
É o último recurso. Noutro dia no autocarro fiz umas fotografias giríssimas. As caras das pessoas. As pessoas sofrem muito, as pessoas que trabalham, que têm contas para pagar, que têm de apanhar os transportes públicos. É um mundo. Vou disparando. Não peço. Mas noto se o ambiente é cordial. Não agrido ninguém. Há sempre uma troca de olhares entre o fotógrafo e o fotografado. O fotógrafo tem de saber ler isso.
A sensibilidade apura-se com a experiência?
Sim, mas sempre me integrei muito bem. Sou um deles. Não sou um intruso. Inclusivamente nos retratos sempre consegui cativar a confiança. De outro modo é impossível.
Factum inclui cerca de 170 fotografias, muitas delas do 25 de Abril. Esteve na fila da frente dos acontecimentos desse dia, fixou as imagens dos militares no Terreiro do Paço, o assalto à sede da PIDE….
Fui o primeiro fotógrafo e o único que lá esteve na maioria das fotografias feitas no 25 de Abril. No Terreiro do Paço só vi outros fotógrafos por volta das onze. Eu estava lá desde as seis da manhã, com o Salgueiro Maia ao meu lado.
Como chegou tão cedo?
O Século [Ilustrado] tinha uma célula política muito ativa e muito bem informada. Telefonaram-me às seis da manhã a dizer: vai para o Terreiro do Paço, porque hoje é que é. Já tinha havido umas ameaças. Foi assim que apareci às seis em frente a uma pessoa que não conhecia chamada Salgueiro Maia.
Há um documentário sobre si cujo título é As coisas não são feitas por acaso (2013, de Tiago Cravidão). Quanto do trabalho de um fotógrafo reside na sorte de estar no momento certo, no sítio certo? Ou não vê nisso sorte?
O fator sorte influencia. Mas também que uma pessoa se integre no ambiente, viva intensamente. Quando estou a trabalhar não quero falar com ninguém. Escusam de estar a falar sobre uma coisa muito interessante. Ignoro. É preciso concentração absoluta.
Como foi a abordagem quando chegou ao Terreiro do Paço, naquele dia?
Chego lá e o soldado diz-me: “Não pode passar, porque o nosso comandante não quer”. E eu disse-lhe: “Leve-me ao comandante, que eu sou amigo do comandante”. Claro que não sabia quem era o comandante. Mas o soldado, muito humildemente, disse que me levassem e passei a barreira. Levaram-me ao comandante e disse-lhe: “Eduardo Gageiro, d’O Século Ilustrado”. Disse-me ele: “Salgueiro Maia, eu sei quem você é. Compro todas as semanas o Século Ilustrado“. Elogiou-me, disse-me que gostava muito das minhas fotografias. “Você fotografa aquelas pessoas que eu gosto, ande comigo e esteja à vontade”, disse-me. E andei, até às três da manhã. Os outros repórteres só apareceram por volta das onze horas. Tudo cheio de medo. E houve outros que têm fotografias disto, mas que roubaram os negativos. Mas não posso contar esta história.
Tenho de lhe perguntar. [Nos últimos anos Eduardo Gageiro tem acusado Alfredo Cunha de se apropriar de negativos seus dos dias da revolução]
Não posso dizer o nome da pessoa, mas no meio fotográfico toda a gente sabe. Uma pessoa que me pediu emprego, estava n’O Século Ilustrado, e depois levou negativos que não eram dela. E ainda continua a publicar.
A situação foi amplamente noticiada porque ambos se processaram mutuamente.
Sim. Digo uma coisa, simplesmente depois é preciso provar. Quis provar, mandei uma série de negativos. Mas ele só apresenta dois. Falei com o advogado, que me estava a defender, e ele disse-me: mas você disse publicamente. Mesmo que seja verdade, não pode. Só depois de uma pessoa ser condenada é que se pode dizer. Fui condenado por ter dito a verdade. Mas não posso dizer que ele não foi condenado, ainda. Foi assim: eu perdi e tive de pagar uma indemnização a um ladrão.
Perdeu o processo por difamação? [Alfredo Cunha apresentou queixa por difamação, cansado de ouvir Eduardo Gageiro acusá-lo de ter roubado negativos das fotografias do dia 25 de Abril.]
Por difamação, sim.
Mas já tinham feito uma comparação de negativos no passado, não?
Não, porque ele não apresentou [os negativos]. Foi sempre a enrolar. Já propus publicamente, e digo mais uma vez: esse senhor, que tem os negativos que são meus, que faça um debate público comigo e com ele, onde quiser. E leve as fotografias que ele diz que são dele e eu levo as minhas. Depois vamos debater publicamente. Se ele tem coragem vamos fazer isso.
Não será difícil, se o Alfredo Cunha fotografava com Nikon e o Eduardo com Canon.
E até usávamos películas de marcas diferentes. É fácil. A não ser que ele faça reproduções agora. Mas posso levar um fotógrafo e o outro vê facilmente que é reprodução. Pode levar testemunhas.
Para esclarecer: trata-se de fotografias do dia 25 de Abril de 1974.
Sim. E são muito significativas. Há uma fotografia do Salgueiro Maia em cima de um tanque, no largo do Carmo, que eu só consegui fazer com aquela objetiva. Lá em baixo. Ninguém tinha aquela objetiva naquela altura. Ele apresenta essa fotografia. Fui ao meu rolo e acaba na 30, aquilo são 36. Faltam seis. A última fotografia que tenho, que ele deixou ficar, é o pai do Miguel Sousa Tavares a falar ao microfone. Depois de tirar as outras todas do Salgueiro Maia. Sabe roubar.
Porque é que só fez estas acusações tantos anos depois?
Durante muito tempo pedi-lhe a sós para trazer os negativos. Foi para o Porto, vinha cá de vez em quando e com um grande grupo, jantávamos e almoçávamos. Nunca, nem ao pé de outros fotógrafos, falava no assunto, para proteger a imagem dele. Fui estúpido, mea culpa. Esperei, esperei. Devia ter denunciado logo publicamente antes de sair aquele livro.
Voltando não às fotografias, mas à realidade. De que forma é que assistir de perto àquele momento o afetou?
Ah, não calcula. Já tinha estado preso por fazer fotografias de que eles não gostavam. Foi dramático, não estive muito tempo preso por sorte, porque os correspondentes de imprensa estrangeira perguntaram ao Rui Patrício [ministro dos negócios estrangeiros no tempo de Marcelo Caetano] num almoço porque é que eu estava preso. Ele não sabia e então quis averiguar. E ele é que perguntou à PIDE porque é que eu estava preso e isso acelerou tudo. Parece mentira, não ouviam ninguém, mas lá fui ouvido. Soltaram-me, depois de perguntas terríveis, tinham aprendido com Gestapo a fazer perguntas, era difícil um tipo não cair em contradições. Procurei safar-me mais ou menos, mas não foi fácil. Perguntaram-me porque é que eu fazia este tipo de fotografias, quando temos paisagens tão bonitas. “Fotografe paisagens…” Estive lá o dia inteiro. Por fim trouxeram-me uma máquina de barbear, para eu fazer a barba. Não queriam que ninguém saísse de lá com mau aspeto. Disseram-me: “Vai-se embora, mas a gente gosta muito de si, vamo-nos encontrar outra vez”. Durante dois anos não mandei fotografias para lado nenhum, com medo. Passado pouco tempo, jornalistas, intelectuais meus amigos, disseram-me: “Tu tens que fazer uma exposição para provocar os gajos”. E assim foi. Todas aquelas fotografias de que eles não gostavam, em grande, nas Belas Artes. Fotografias provocadoras, realistas.
Que desafiavam o gosto do regime?
Não desafiavam, mostravam a realidade. A realidade é que podia desafiar, não era eu. Eu mostrava as fotografias que fazia. Sabia que eles não gostavam porque eram cortadas, n’O Século Ilustrado. A censura cortava. Preparo-me para ser preso outra vez. Mas os meus colegas, jornalistas, que me deram força, disseram-me: “Se te prenderem a gente vai fazer um escândalo internacional”. De forma que arrisquei. Estava entusiasmado, mas com medo. Mas foi um êxito fantástico, visitado por milhares de pessoas, a malta fez notícias, foi na altura do Blow-up [filme de 1966, de Michelangelo Antonioni]. Associaram muita coisa, que era muito giro, nunca tive tanta publicidade.
Esperava ser preso?
Estou à espera de ser preso quando recebo um telefonema, muito simpático, da secretária do senhor Dr. Manuel Maria Múrias, presidente da União Nacional e diretor da televisão, que queria falar comigo pessoalmente. Fui ao gabinete dele. Disse que tinha uma admiração profunda por mim, que era um grande fotógrafo, extraordinário… Pensei: isto não vai ser coisa boa… Disse-me: “Tenho uma proposta irrecusável para si. Eu sei quanto é que você ganha. Nós damos o triplo e você passa a ser o fotógrafo oficial da televisão”. Queria que fotografasse os almoços, jantares, aquelas coisas. Disse-lhe: “Desculpe, mas não gosto desse trabalho”. Não havia problema, arranjava um puto que fizesse o trabalho, só queriam anunciar que eu era o fotógrafo oficial da televisão. Disse-lhe que ia pensar, claro que nunca mais lá fui. Veja bem a ideia, para denegrir a minha imagem e dizer: este gajo vendeu-se. Mas não me prenderam mais. Comecei a concorrer para todo o mundo, a ganhar prémios.
A fotografia que levou à sua prisão, Viúva da Nazaré, capa d’O Século Ilustrado em 1962, está nesta exposição.
Está. Ganhou 16 medalhas de ouro, em cinco continentes. É uma fotografia muito violenta, realmente, mas era a realidade portuguesa.
Na legenda dessa imagem, no texto de parede, lê-se: “Esta imagem resume aquilo que sou como fotógrafo”. Porquê?
Fico muito sensibilizado quando vejo pessoas a lutarem pela vida. Era o caso daquela senhora. Aquela senhora é velhinha, tinha idade de ser minha avó na altura, e tinha de andar ali à frente dos homens, com grandes dificuldades, a trabalhar para lhe darem uns peixes para ela se alimentar. Aquilo era assim, não era dinheiro. Era um peixe. Isso chocou-me profundamente. Eu era um miúdo. Ainda não era fotógrafo profissional quando fiz aquela fotografia. Aquele ambiente de Sacavém, isso tudo transformou-me muito. De nenhuma maneira sou revolucionário nem filiado a nenhum partido, mas achei necessário mostrar o que era o Portugal real. O mundo é tão difícil. Isso marcou-me. Nunca me filiei a nenhum partido. Simplesmente estou sempre do lado do mais débil, do mais necessitado, da pessoa mais fraca. Sempre. Isto não é política. É uma forma de encarar o mundo. Melhor que todos os prémios que ganhei é ir ao 25 de Abril, que vou sempre, e aparecerem senhoras da minha idade, ou um pouco mais novas, com miúdos à mão e dizerem-lhes o que fiz. Comovo-me. Começo a chorar, pareço uma madalena arrependida. Não fiz isto para me dizerem isto, não estou à espera de nada.
Vejo que ainda o emociona.
Profundamente. No 25 de Abril quando isso acontece fico em lágrimas.
É o dia em que mais gosta de sair à rua e fotografar?
É. Sensibiliza-me. Esse dia é um dia ímpar. Mas acho que as pessoas se transformaram. Acharam que teriam um Portugal diferente, melhor, mais justo. E acho que não aconteceu isso. Isso é que me choca. Estamos em 2024 e as coisas não melhoraram muito. Continua a haver muita corrupção, muita desigualdade. Não foi bem para isso que foi feito o 25 de Abril. Vejo um supermercado conhecido que teve, no primeiro semestre deste ano, um lucro de 300 milhões de euros. Para mim é o pior supermercado que há em Portugal. As grandes empresas não pagam mais impostos sobre o excesso de lucro porquê? Isso equilibrava os mais débeis. Não é preciso ser da esquerda ou da direita. É ser honesto, ser sério: 300 milhões em 6 meses, um supermercado? O dinheiro devia ser mais dividido. As pessoas têm o direito a ter lucro, mas não tanto. O que for de excesso, paga em impostos. O Governo podia fazer isto. E nunca fez. Estive muito tempo na Assembleia da República e, durante a semana, apareciam lá grupos de pressão a falar com os grupos parlamentares. Empresas. Iam lá visitar, beber um café. Não é normal. As coisas discutem-se abertamente, não é no escuro dos escritórios ou das salas. E tudo isso chocou-me. Quis conhecer o país por dentro e cheira muito mal. Se não houvesse corrupção, as coisas teriam um nível de vida muito melhor.
Uma das suas fotografias mais emblemáticas é aquela que tirou no dia 26 de abril no interior do gabinete do diretor da PIDE, Fernando Silva Pais, quando estão a retirar um retrato de Salazar da parede.
Fui no primeiro grupo de jornalistas que entrou na PIDE. Não entrou nenhum fotógrafo, nem nenhum cameraman. Entrei com um grupo de redatores. Estava o [jornalista] Avelino Rodrigues ao pé de mim quando tirei essa fotografia. Estava nervoso, mas fui fazendo fotografias. Estava mesmo no fim do rolo. Depois meti outro. Eram as últimas quatro películas. A primeira é a melhor.
A fotografia mais recente da mostra foi captada na manifestação de 25 de Abril de 2023. Mostra dois rapazes abraçados, um deles a fitar a câmara. Porque escolheu aquela fotografia em particular?
Liberdade. Liberdade sexual.
Dizia antes de começar esta visita guiada que nunca tinha feito algo desta envergadura em Portugal.
É verdade, nunca me fizeram uma exposição em Portugal assim. Já tinha exposto ali no Museu da Eletricidade, mas fui eu que organizei. A primeira vez que em Portugal me dão esta dimensão é quando estou quase a morrer. Nunca ninguém me convidou. E houve outras pessoas, que eu não comento, que foram convidadas para isso tudo. O que é que eles fizeram? Nunca ganharam um prémio internacional e já expuseram aqui. Nunca ninguém me convidou para expor aqui. Finalmente. Sou uma persona non grata, não sei porquê.
Para quem?
Não é para o povo português, que sinto que gosta de mim. São as chamadas entidades oficiais. Sou um tipo que não sou servil. Sou eu. Fiz um livro sobre o amor. Esgotou. Foi apresentado e exposto na biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras. Convidei as altas individualidades e enviei o livro. Ninguém me respondeu: primeiro-ministro, ministro da Cultura, ninguém. Mandei o livro, ninguém me agradeceu o livro. O Marcelo [Rebelo de Sousa] mandou-me um cartão de boas festas. A única pessoa que tinha convidado que apareceu foi o Carlos Moedas. Conheci-o pessoalmente e disse-lhe que estava profundamente triste por nunca ninguém me ter convidado para fazer uma exposição a sério em Portugal, quando já expus na Universidade de Praga, no Museu de Hensínquia, na Bloomingdale em Nova Iorque, deram-me medalhas na Áustria… Em Portugal, a única coisa que me deram foi o Jorge Sampaio (então Presidente da República, em 2004) que, numa cerimónia pública em Bragança, me deu a Ordem do Infante D. Henrique. Mas agora o Marcelo [Rebelo de Sousa] dá isso a toda a gente, aquilo perdeu o mérito. Já nem ponho [nas biografias]. Fiz o meu choradinho. Aliás, choradinho não, era revolta. Não me disse nada, passado pouco tempo entraram em contacto comigo para esta exposição.
Que não é exatamente uma retrospetiva do seu trabalho, na medida em que estão em falta algumas peças-chave…
Como a reforma agrária, por exemplo, não há nada disso. Mas está no livro — que será publicado em breve. O livro conta a história. Ensinou-me o [escritor José] Cardoso Pires. E os filmes neorealistas. Temos de ter uma história. E tem poemas. Andei à procura de poemas. Leio muito, agora já não tanto. A partir do momento em que veio a televisão comecei a ver os canais históricos. Só vi uma novela na vida.
Qual foi?
A Gabriela [1975]. Mas não gosto. Não gosto de coisas de faz de conta. Só gosto de coisas reais, autênticas. Aprendi muito com o canal História.
Falando de história, a história destas fotografias conta também muito da história coletiva. Em 1972, estava nos Jogos Olímpicos de Munique quando se dá o massacre do Setembro Negro, o sequestro de atletas israelitas por um grupo de palestinianos.
Foi muito difícil credenciar-me. Era preciso um ano de antecedência. Mas consegui. Estou lá até às tantas. Eram onze horas da noite, já tinha tudo desistido, era tudo controlado, e eu tinha um blusão azul escuro e uma mala a tiracolo parecida com a que usavam os atletas. Começo a ver o crachá deles e percebi que o meu não era tão diferente. Tapo as letras e passei (risos).
E depois?
Havia muitos polícias à paisana, parecia um filme de cowboys. A delegação portuguesa estava no 16.º andar. Vou para esse prédio e vejo os elevadores avariados. Subo 16 andares a pé e vejo árabes sentados. Tinham aquilo controlado. Fui para a varanda. Já sabia que havia negociações e que iam buscar os tipos de helicóptero. Começo a disparar e faço as imagens. Vinha o treinador da luta greco-romana para Lisboa e disse-lhe: leva estes rolos. Liguei-lhes e disse-lhes: “Puxem muito”. Em linguagem fotográfica “puxar” é revelar mais. Porque fotografei praticamente às escuras. Fui para a cidade olímpica e digo que tenho isso. Ofereceram-me o equivalente a um Volskwagen para eu dar os negativos.
Mas já não os tinha.
Já vinham a caminho de Lisboa. O dinheiro não tinha valor para mim nessa altura. Só no outro dia, de cabeça fresca, é que pensei o que eu perdi. E o que perdi mais foi a fotografia não ter a repercussão que podia ter tido. Não passou de Lisboa, não passou de Portugal.
Foi capa d’O Século Ilustrado.
Sim. Não é uma grande fotografia, mas é um documento. Tinha de usar a objetiva mais luminosa que tivesse. Estava às escuras, só tinha luz de candeeiros. Tinha uma de 85 1.8, a máquina no corrimão da varanda e disparei. Abri o diafragma todo. E mesmo assim está fraco o negativo. Por isso é que disse para puxarem o rolo. Mas era importante o documento.
Num documentário em 1972, dizia: “Ando nesta vida há 15 anos, mas há dois serviços que me impressionaram profundamente. Talvez porque goste muito da vida, nessas duas reportagens morreram muitas pessoas. Foi a reportagem do Cais do Sodré, que tive a sorte de ser dos primeiros a chegar lá, e a reportagem sobre as inundações [Valada do Ribatejo, 1967], que foi uma catástrofe terrível”.
As inundações marcaram-me muito. Tenho uma documentação enorme. Foi feita uma exposição no museu do neo-realismo, em Vila Franca de Xira, em que estavam lá as melhores. E estavam muitas que não sabiam que eram minhas, cortes da censura que eram as minhas fotografias das inundações. A censura cortou todas.
Passaram 50 anos desde o 25 de Abril, muitos deles a fotografar. Continua a ser o trabalho que mais o impressionou?
Foi. Nunca vi tanta gente morta. Era chocante. Gado morto, tudo misturado. Em quintas foi onde morreu mais gente, ali ao pé de Vila Franca. Fiz os funerais das pessoas mortas, na igreja. Publiquei n’O Século Ilustrado, muitas foram cortadas. Tenho umas que são visíveis e que são fotografias dramáticas, mas não tão violentas.
Como é que se lida com isso?
Com coragem. A pessoa tem de ter coragem. Choro facilmente, mas aí não choro. Por dentro estou enraivecido, mas com uma coragem de enfrentar a realidade.
Alguma vez teve medo?
Sei lá. Não tive medo no 25 de Abril. Tive tantos problemas com a polícia… Era um homem revoltado com as injustiças sociais. Estou aqui aconteça o que acontecer. E espero estar vivo para o documentar. Nunca tive medo. Mesmo quando houve as negociações. Se os tipos da Cavalaria Sete respondiam ao Pato Anselmo e começavam a disparar não estava aqui. Isto tudo tinha acabado. Não se pode pensar nisso. Depois vê-se. Juro que não tive medo. Não estou armado em herói. Não é o meu espírito. É a minha revolta.
No início dos anos 2000, numa entrevista no programa Por Outro Lado, na RTP, dizia que para fotografar fora precisava de estar sozinho. Que por vezes a sua mulher lhe pedia para ir consigo, mas que não conseguia, precisava de estar a sós. A fotografia roubou-lhe tempo para estar com a família, cultivar relações?
Fui um mau pai e um mau marido. Há uma coisa que me envergonha um pouco, mas posso dizer, que estou velho. Quando fui para O Século Ilustrado, era um patego que vinha de Sacavém, não conhecia nada, e comecei a conviver com pessoas diferentes. Quando foi para lá um diretor que era autor teatral chamado Nelson de Barros decidiu que todas as revistas e todos os espetáculos teatrais tinham de ser fotografados. E eu ia a todos. O Parque Mayer estragou-me. Fotografava as mulheres mais bonitas do Parque Mayer das maneiras possíveis e imaginárias. Isso estragou-me. Comecei a ser malandro. Estraguei a minha vida familiar. Chegava às tantas a casa, tinha filhos pequenos. Houve um momento de viragem. Com a minha mulher grávida, prestes a ter o bebé, apareci em casa às seis da manhã e ela estava a chorar. Tive juízo, mas foi por pouco tempo. Mea culpa. Fui um grande bandido. A minha mulher teve razão. Não se quis divorciar, mas fui um mau marido. Não sei se fui um mau pai…
O seu filho, Rui Gageiro, seguiu-lhe as pisadas, é fotógrafo.
Sim. Nunca pensei nem lhe incuti o gosto pela fotografia. Ele nem me pediu conselhos. Gostava que ele tivesse sido redator. Ele escreve bem. Decidiu ser fotógrafo. É outro tipo de fotografia. Mas fotografa bem.
Que prazer tira hoje de fotografar?
É ir no autocarro com esta mini-máquina a fotografar as pessoas, as caras, as expressões, o carinho. Tudo isso. Tenho lata. Mostro a máquina. Fotografar às escondidas é do pior que há. Há uma troca de olhares e percebo que não se importam. Distraídos, não quero pose.
Falando de pose, foi fotógrafo da Presidência da República, no tempo de António Ramalho Eanes.
Adorei. O Eanes é uma pessoa cinco estrelas. Não o conhecia. Foi no segundo mandato. Vi que era uma pessoa diferente, uma pessoa séria, comecei a gostar dele. Votei nele. No segundo mandato, o Joaquim Letria, que era o assessor de imprensa, telefonou-me e disse-me: “O Eanes vai fazer a maior viagem desde que assumiu a presidência e gostava de te convidar para ser fotógrafo. Estás disposto a isso?” Disse-lhe que não gostava muito do trabalho, mas que gostava muito do Eanes. Sabia que era um tipo de fotografia diferente, mas queria experimentar.
Do que não gostava?
Das fotografias bate-chapas, digamos assim, mais formais dos acontecimentos. Mas fui porque gostava do Eanes. Achei que podia fazer fotografias diferentes, e foi o que aconteceu. Na Índia, na China, países da África a que era difícil ir. Lá estou sentado no avião. Quando o avião vai no ar é que o Presidente da República dá uma volta para cumprimentar as pessoas, os jornalistas. Estava ali à frente. Aparece, eu levantei-me e ele agradeceu-me por ter aceite. Ficámos amigos para sempre. Apresentava-me aos presidentes. Tenho ali o Reagan a abraçar-me. O Eanes é a pessoa mais carinhosa do mundo. As pessoas têm uma má imagem dele. Uma vez, disse-lhe que as pessoas se queixavam que ele nunca se ria. E ele disse: “Ó, Gageiro, acha que posso falar de coisas importantes e rir-me?” E tem razão. Mas a outra face do Eanes é divertidíssima. A contar anedotas, nem queira saber.
É para muitos uma referência do fotojornalismo…
Para jornalistas. Para entidades oficiais, não. Começaram a dizer que eu era um perigoso comunista, quando nunca fui filiado a nenhum partido. Tenho amigos comunistas e gosto deles.
Como se mostra nesta exposição, é autor de retratos de figuras incontornáveis da cultura como Paula Rego, Maria João Pires, Vitorino de Almeida, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill, José Afonso.
Foi nessas entrevistas para o Diário Ilustrado e depois para O Século Ilustrado. Relacionei-me com todos os intelectuais que existiam neste país. Não quero puxar a brasa à minha sardinha, mas é preciso gostar muito, ver muito, ler muito. Cultivei-me muito. Graças a essa malta da cultura do Sacavenense. Tinha 12 anos e davam-me livros para eu ler. Livros de história, de tudo. Lia, lia. Queria saber. Não havia televisão, li centenas de filmes. E os filmes neorealistas. Quando apareceu a televisão só queria saber do canal História. Estava ávido de saber.
Houve algum retrato que fez que lhe tenha ficado na memória?
Sim, da Amália [Rodrigues]. É a melhor história que tenho. A Amália era uma amiga. Conheci-a através do diretor d’O Século Ilustrado, o Francisco Mata. Tenho centenas de fotografias da Amália desde os anos 50.
Porque é que esta, de 1994, a agarrar uma guitarra, é tão especial?
Ela só funcionava à noite, com um copinho de uísque. Era uma hora da noite. Fazia tudo o que eu queria, era capaz de estar uma noite inteira a ser fotografada. Depois lembrei-me: “Ó, Amália, pegue numa guitarra como se fosse uma pessoa de quem gosta muito. E agora pense numa pessoa que ame muito”. Ela faz aquela expressão. Passado um bocado disse-lhe: “Vi que estava profundamente sentida, importa-se de me contar em quem estava a pensar?”. E ela disse-me: “Na minha mãe e em Deus”. Uma pessoa para confessar isto tem de gostar da outra.