Antes de lançar a pergunta para a sala cheia de miúdos de seis anos, a professora do 1.º ciclo confidencia-nos que ela própria não sabia tudo o que há para saber sobre aquele pontinho no Oceano Pacífico que fica a 10.998 metros de profundidade. “Não sabia que já alguém lá tinha ido”, diz-nos Leonor Rêgo, enquanto a sua trupe se senta no chão da sala de aula, em Alcabideche. Num grosso e pesado manual, que diz “Oceano” a letras azuis, está a pergunta que vai fazer a seguir. Aquelas páginas foram pensadas pela Fundação Oceano Azul, têm a validação da Direção Geral de Educação e um objetivo ambicioso: criar uma geração mais consciente da relação de Portugal com o oceano, capaz de defender o mar com unhas e dentes.
“Quem é que sabe qual é o lugar mais profundo do oceano?” Várias mãos são postas no ar, todos a querer responder à professora. “É a fossa das Marianas”, diz um dos miúdos do 1.º F, depois de ter tido ordem para falar. Nenhum deles se lembra que a fossa está exatamente a 10.998 metros de profundidade, mas uma aluna arrisca tudo nos 11 quilómetros. “Está certo”, diz a professora satisfeita, enquanto, em jeito de narrador, nos explica o contexto.
“Quando estudámos este conteúdo, aproveitámos para fazer a conversão de metros para quilómetros, uma vez que isso faz parte do currículo de matemática. Não temos um espaço específico para falar do oceano, o que fazemos é integrar as atividades do manual nos conteúdos de estudo do meio, por exemplo”, explica a professora. “E não são só eles que aprendem. Há imensas coisas que não sabia. Depois de saber que o James Cameron tinha descido à Fossa das Marianas, procurei vídeos na internet. Lembram-se de quem é este senhor, meninos?”
A resposta da plateia não é realizador, é antes “o senhor que fez o filme do Avatar”. Recebem palmas pelo esforço, já que o coro afinado na resposta é suficiente para perceber que os alunos sabem a lição.
Às quartas-feiras à tarde, na Escola Fernando Teixeira Lopes, este cenário repete-se na turma do 1.º ano. Na parede estão a ser projetados powerpoints — o de hoje mostra o relevo do fundo do mar — e em cima da mesa de Leonor Rêgo está o pesado manual “Oceano — Educar para uma Geração Azul”, o primeiro a entrar nas escolas portuguesas que ajuda a misturar português ou matemática com a quantidade de sal que o mar tem. São 300 páginas, divididas em oito capítulos e que vão muito além daquela que costuma ser a abordagem tradicional quando se fala do mar (os ecossistemas) e que, na opinião de Rita Borges, da Fundação Oceano Azul, pouco faz pela literacia do oceano.
A forma como o manual foi pensado talvez ajude a explicar o entusiasmo com que os miúdos de seis anos aderem ao tema: cada capítulo parte de perguntas que alunos do 1.º ciclo, de diferentes realidades sócio-económicas, disseram que gostavam de ver respondidas sobre o mar. Um exemplo: Por que motivo é que o oceano é salgado? “Por causa dos sais das rochas”, atira um dos alunos de Leonor Rêgo. Ela completa: “As rochas têm sais, são desgastadas pela chuva ao longo do tempo e esses sais são transportados pelos rios e chegam ao oceano.”
Um mergulhador chegou ao local mais profundo da Terra. E encontrou plástico
Pelo caminho, os alunos também explicam qual a diferença entre mar e oceano, garantindo que não são sinónimos. Os primeiros estão localizados em zonas costeiras, os segundos ocupam grandes extensões, são muito mais profundos e até hoje ainda escondem muitos segredos ao Homem.
Nesta escola de Cascais, apenas mais uma turma, o 3.º E da professora Isabel Aguiar, usa o manual do oceano na sala de aula. O porquê é simples. “Educar para uma Geração Azul” é um projeto que ainda está em fase piloto, a dar os seus primeiros passos em seis municípios do país. Aqui, só as duas professoras fizeram a formação, que é o ponto primeiro para que a parceria possa arrancar. A Fundação Oceano Azul quer aumentar estes números e espera, em breve, conseguir o que já conseguiu em Mafra: a quase totalidade dos professores está formada e o mar entrou em todas as salas de aula.
“A fundação tem esta ambição: contribuir para a criação de uma geração de cidadãos conscientes da nossa relação com o mar, capaz de atuar em prol da sua conservação. Para tal, desenhámos este projeto que tem como atores principais os professores. O nosso alvo são os alunos do 1.º ciclo, mas é através dos professores que conseguimos chegar a eles. Será com a ajuda dos professores que vamos conseguir que os alunos sejam cidadãos mais literados, com consciência de que a nossa interação com o oceano tem múltiplas dimensões”, explica Rita Borges, gestora de projetos na área da educação na Fundação Oceano Azul.
Há espaço no currículo para falar do mar?
Em Alcabideche, as professoras Isabel e Leonor não escondem que o programa é vasto e que é difícil encontrar espaços em branco para discutir temas que fujam ao currículo. Falar do mar não tem sido um problema, garantem, e a adesão dos alunos é grande. No 3.º E, ao contrário do que acontece na sala do 1.º ano, não há um dia fixo para falar do mar. Acontece quando faz sentido fazê-lo e foi assim que o manual foi pensado: interliga-se com qualquer uma das disciplinas e com os temas do programa obrigatório.
Para além do manual, há outros materiais que são entregues aos professores, como uma caixa cheia de cartas, cada uma com cerca de um palmo de altura, para serem usadas de forma interativa dentro da sala de aula. Há, por exemplo, um abecedário: A é de anémona, B é de baleia, C é de Coral. “Eles estão a aprender a ler e estão logo a aprender o nome de organismos marítimos”, sublinha Rita Borges.
“Nós queremos que os professores se comprometam connosco, queremos que o manual seja mesmo usado na sala de aula. Se o professor vai à formação e depois não passa o que aprendeu aos alunos, não serve de nada”, acrescenta a gestora do projeto. Para motivar os professores, e porque também eles aprendem durante as 12 horas em que ouvem falar sobre o oceano, como Leonor Rêgo atestou, os professores também fazem algumas das atividades práticas, durante a formação, que depois poderão levar para a sala de aula e fazer com os seus alunos.
Entre o material, há uma grelha fundamental: de um lado aparece cada capítulo e sub-capítulo do manual, do outro cada ano de escolaridade e cada disciplina do programa. Basta seguir a matriz com o dedo para perceber qual o melhor momento para se fazer determinada atividade — tudo com a aprovação da Direção Geral de Educação.
“É muito importante para nós que os professores percebam que, sem grande trabalho adicional, podem incorporar as temáticas do oceano no currículo do 1.º ciclo. E como queríamos ter a certeza de que os conteúdos estão apropriados a cada um dos anos, tudo tem a validação da DGE. Se não for currículo, os professores também podem escolher umas das atividades e desenvolver competências: trabalho de grupo, de investigação, estimular o espírito crítico”, detalha Rita Borges, referindo-se a algumas das competências que fazem parte do Perfil do Aluno à Saída do Ensino Obrigatório.
“O manual é para ser usado de uma forma muito flexível. Se hoje vou trabalhar português do 2.º ano, posso olhar para a matriz e ver que conteúdos do manual posso usar para desenvolver essa disciplina”, acrescenta. Consoante o nível de escolaridade, cada tema pode ser tratado com mais ou menos profundidade.
Essa diferença é visível quando se passa da sala de aula do 1.º para a do 3.º ano. Aqui, as respostas são dadas com outro rigor. E a aluna que aponta a profundidade da Fossa das Marianas não se fica pelos 11 quilómetros: “10.998 metros”, diz com um sorriso de quem está confiante de que a sua resposta está certa.
Como é que o celofane explica o azul do mar?
Enquanto mudamos de sala, há um material que faz a viagem connosco: várias folhas de papel celofane azul que foram utilizadas para explicar aos alunos de seis anos por que é que o mar parece azul. Primeiro, tiveram de pintar, recortar e colar numa cartolina um peixe (vermelho), uma estrela do mar (laranja), uma anémona (amarela), um caranguejo (verde) e uma alforreca (azul). Depois, à medida que iam pondo, uma a uma, as várias folhas de papel celofane azul em cima da cartolina iam vendo, ora um, ora outro, os organismos marítimos desaparecer. E fosse em que grupo fosse, a ordem era sempre a mesma: vermelho, laranja, amarelo, verde e azul.
A professora Leonor explica que o oceano funciona como um filtro solar que absorve, à vez, cada uma das diferentes cores da luz branca do Sol (e que só vemos na sua totalidade num arco-íris). A que é menos absorvida é a cor azul, daí vermos o mar como se fosse, de facto, dessa cor.
Na sala do 3.º ano, a explicação é mais detalhada, já se fala de comprimento de onda e os alunos sabem dizer a quantos metros de profundidade é absorvida cada uma das cores do arco-íris. A partir dos 90 metros, até a luz azul desaparece.
Rita Borges aponta esta como uma das atividades que se pode adaptar a diferentes anos e que os professores têm oportunidade de testar durante a formação. “Os professores ficam agradavelmente surpreendidos com a qualidade dos materiais e da formação. Agora, ainda iremos fazer ponto da situação às escolas, perceber se usam os conteúdos, se estão adequados. Das visitas que temos feito, o que vemos é que há escolas que estão cheias de mar por todo o lado e isso deixa-nos muito satisfeitos.”
Na Escola Fernando Teixeira Lopes isso aconteceu com a atividade “O peixe tetravô”, na qual os alunos foram desafiados a desenhar o primeiro peixe que viveu no oceano. Finda a ilustração, tinham de compará-la com a imagem do metaspriggina walcotti. Face às obras de arte que resultaram da atividade, as professoras decidiram que os desenhos mereciam ser objeto de exposição na escola. E lá estão, a dar cor q.b. às paredes.
O atual projeto piloto começou em setembro de 2018 a ser testado em 6 municípios: Mafra, Cascais, Nazaré, Peniche, Moura e Silves. O objetivo da Fundação Oceano Azul é, no próximo ano letivo, ter 800 professores formados que podem trabalhar mais de 16 mil alunos. Para já, vão em 240 professores, sendo o município de Mafra o que já deu passos mais largos, com a quase totalidade dos professores formados.
Levar o projeto a todo o país, reconhece Rita Borges, levará tempo, até porque a fundação não quer fazê-lo sem avaliar o que se passou nestes primeiros seis municípios, fazendo as alterações que forem necessárias. “Queremos perceber se o projeto aumenta, ou não, a literacia sobre o oceano e se está a mudar comportamentos”, explica, dizendo que algumas coisas já são visíveis no dia a dia. A maioria dos alunos já diz não ao uso de palhinhas, usa cantis recicláveis para beber água e está muito atenta à poupança de energia.
“O tema do plástico é o mais fácil para absorverem, já estão muito sensibilizados para ele e é um assunto muito falado hoje em dia. Estes miúdos vão ser agentes de mudança em casa e vão ajudar os pais a mudar comportamentos, como aconteceu no passado com a reciclagem”, acrescenta. Para já, é prematuro pensar noutros ciclos e a ideia é continuar o projeto focado no 1.º ciclo, fase do desenvolvimento em que as crianças são autênticas esponjas de conhecimento.
Esse conhecimento vai para além, como já disse Rita Borges, da informação sobre ecossistemas. “Nos diferentes capítulos, fala-se da estrutura do oceano, da importância que ele tem para nós. Queremos que os alunos pensem também na economia do mar e em que valor é que ele pode ter para nós, que percebam como pode ajudar a desenvolver a economia de países costeiros. Também se fala de história, de direito do mar — quando perguntamos quem é o dono do mar — e há um capítulo só dedicado à importância que o mar tem para Portugal. Quando falamos sobre os problemas, deixamos uma mensagem positiva: as alternativas que temos para proteger o mar. E acabamos a olhar para o futuro: aquilo que ainda não sabemos sobre o oceano, mostrando que ainda há muito por descobrir.”
Por fim, Rita Borges não esconde que a Fundação Oceano Azul tem uma grande ambição com este projeto: “Que os cidadãos portugueses se tornem os mais conscientes do mundo sobre esta problemática do oceano e que sejam os que mais promovem a sua conservação. Ao mesmo tempo, que tenhamos uma geração azul — uma geração de cidadãos conscientes da nossa interação com o oceano, capaz de promover ativamente a sua conservação e com comportamentos responsáveis relativamente ao oceano.”