A proposta ibérica para baixar os preços da eletricidade no mercado grossista que está a ser negociada com a Comissão Europeia é mais favorável para os consumidores espanhóis do que para os portugueses que até poderão acabar a pagar mais. Este é um dos alertas feitos pelas grandes elétricas a atuar no mercado ibérico. Numa carta enviada a três comissários europeus no passado dia 8 de abril, pedem que sejam considerarem as “significativas e inesperadas consequências” que o plano para limitar os preços spot (diários) no mercado ibérico pode ter, afirmando que os custos podem ser superiores às poupanças estimadas.

Enquanto em Espanha, a medida “irá beneficiar dois grupos de consumidores — os que têm tarifas reguladas ligadas à evolução dos preços spot e os industriais que têm contratos indexados às cotações ou compram diretamente no mercado diário. Este grupo representa cerca de 25% da procura de eletricidade em Espanha. No caso de Portugal, há uma larga maioria de consumidores que tem contratos com preços fixos (estáveis) e que não irá beneficiar deste mecanismo: pelo contrário, estes clientes podem acabar por pagar mais”. De acordo com estimativas divulgadas pelo Governo português, a aplicação do mecanismo proposto a Bruxelas permitiria obter uma poupança mensal para os consumidores nacionais — famílias e empresas — da ordem dos 690 milhões de euros.

A carta, a que o Observador teve acesso, é assinada pelos presidentes executivos da EDP, Miguel Stilwell de Andrade, da Iberdrola, Ángeles Santamaria, da Endesa, José D. Bogas, e ainda pela presidente da Elecpor, associação europeia de empresas do setor que é dirigida pela portuguesa Ana Paula Marques, que preside à EDP Espanha e pela presidente da associação de elétricas espanholas, a Aelec, Marina Serrano. As empresas elétricas operam em Portugal e Espanha e estão presentes nos dois lados do negócio, são produtoras, com potência renovável e térmica, e comercializadoras ao cliente final.

A iniciativa surgiu na sequência do Conselho Europeu que reconheceu a especificidade da Ibéria no mercado europeu da eletricidade, como uma “ilha energética” devido às fracas interligações a França, como fundamento para uma alteração nas regras de fixação dos preços da energia, criando um teto ao gás usado na geração elétrica.

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Em várias tomadas de posição pública dos seus responsáveis, as elétricas já tinham manifestado preocupação em relação a este mecanismo de travagem de preços — que irá implicar menos receitas para quem vende energia e uma redução dos ganhos que estão a ter os produtores renováveis quando vendem a energia ao preço fixado pelas centrais a gás. A imprensa espanhola já tinha dado conta das movimentações do lobby do setor junto de Bruxelas. Nesta carta, os gestores explicam os seus argumentos aos vice-presidentes com os pelouros da concorrência, Margrethe Vestager, do pacto verde e alterações climáticas, Frans Timmermans, e ao comissário da Energia, Kadr Simson.

É com base em fugas de informação divulgadas pela imprensa sobre o conteúdo da proposta que tem vindo a ser negociada em Bruxelas, uma vez que não existem documentos oficiais públicos da mesma, que as empresas concluem que o limite proposto vai implicar uma compensação às centrais fósseis (carvão, mas sobretudo gás natural) pela diferença entre o teto de 30 euros por MW hora e o custo do gás. E essa compensação, afirmam, será “distribuída por toda a procura, incluindo a que tem contratado preços fixados de eletricidade”. E este é precisamente o problema apontado pelas elétricas.

  • Quando distinguem os efeitos nos dois países deste mecanismo para reduzir os preços, as empresas apontam para uma “distribuição desequilibrada de benefícios entre Portugal e Espanha: apesar de terem custos similares aos dos clientes espanhóis, a redução dos preços spot terá um impacto menor nos clientes portugueses, como resultado de uma maior fatia de contratos com preços fixos, que não vão beneficiar da descida dos preços no mercado spot”.

De acordo com este racional, a proposta é positiva para os consumidores expostos diretamente ao risco de mercado, mas não para os consumidores que têm preços fixos como as famílias portuguesas e grande parte das empresas e que estão protegidas no imediato da escalada das cotações diárias. E ainda que o efeito dos recordes no mercado diário acabe por chegar à fatura nas renovações contratuais e revisões anuais e trimestrais, o seu efeito é mais mitigado em Portugal do que tem sido em Espanha.

O que aliás é visível no ritmo da inflação, mais acelerada em Espanha onde está quase ao dobro da portuguesa — 9,8% contra 5,3% em março — muito por causa do efeito do preço da eletricidade. A ideia de alterar as regras do mercado para isolar a eletricidade da escalada do gás natural (que como tecnologia com o custo marginal mais alto fixa o preço de toda a energia vendida na hora a que entra), veio de Madrid e já tinha sido proposta no ano passado a Bruxelas que, no entanto, a recusou.

Subsidiar energias fósseis e as compensações esquecidas que vão trazer mais custos

Este é apenas um dos efeitos potenciais apontados pelas elétricas que nesta missiva referem também não terem sido consultadas sobre a proposta em discussão na Comissão Europeia. Há mais.

  • Subsídios cruzados entre consumidores. A diminuição dos preços spot através da implementação de um teto aos preços do gás tem impactos distintos nos consumidores. Os que foram cautelosos e assinaram contratos a maior prazo (meses ou anos) com preços fixos — e que correspondem ao maior número de clientes em Portugal, mas também em Espanha — “vão ser penalizados e vão ter de pagar a sua parte nas compensações ao custo do gás, subsidiando outros consumidores que não foram tão cuidadosos”.
  • Industriais vão perder a possibilidade de segurar os seus custos através da assinatura de contratos a preços fixos. As compensações a pagar vão depender do mercado do gás e isso vai ser uma variável que vai sobrecarregar os consumidores que contrataram o seu fornecimento a preços fixos.
  • Os consumidores vão ficar “trancados” nas tarifas reguladas. Os clientes, sobretudo os domésticos, vão ser tentados a regressar à tarifa regulada (em Espanha) que está diretamente exposta ao preço do mercado spot, uma vez que este estará artificialmente baixo durante este período excecional.
  • Os custos previsíveis vão ser substancialmente mais elevados do que as poupanças previstas. A proposta parece esquecer que a redução dos preços no mercado spot apenas beneficia os consumidores que compram a energia àqueles preços. Os custos de compensação que todos irão suportar vão depender da quantidade de energia gerida a partir de centrais térmicas e das importações necessárias. Não obstante o mercado ibérico ter uma presença relativamente baixa de energia térmica, e uma fatia relativamente alta de clientes a comprar a preço spot, as compensações serão maiores do que os benefícios da intervenção, dizem. Sublinham ainda que os termos noticiados da proposta não contempla uma compensação para geração térmica nas ilhas espanholas, nem para os comercializadores que contrataram produtos financeiros para gerir o risco do preço fixo que oferecem aos seus clientes e que teriam também direito a ser compensados. “Se outras compensações esquecidas forem incluídas na conta final, os custos seriam muito mais elevados do que os supostos benefícios”.
  • Os custos escondidos podem ser mais relevantes. As elétricas alegam que a experiência mostra que intervenção de mercado afetam as estratégias dos participantes e frequentemente provocam consequências imprevistas. Neste caso, referem as restrições colocadas às ofertas das centrais hídricas (produtores que verão os ganhos reduzidos pelo teto aos prelos) que podem ter como consequência um despacho (entrega de oferta) ineficiente.
  • Problemas de concorrência. Os consumidores industriais fora do mercado ibérico podem ficar em desvantagem face aos concorrentes ibéricos que têm acesso a preços mais baixos.
  • Falta de liquidez. O mecanismo, dizem, “mata” a liquidez financeira do mercado, uma vez que afeta o valor de todas as posições abertas em produtos derivados sobre os preços de energia ibérica. Compensar os titulares desses contratos financeiros irá agravar ainda mais a conta das compensações.

Ilha energética? Preço da Ibéria e de França foi o mesmo em metade das horas

Os subscritores contrariam ainda a tese da ilha energética face à Europa por causa da insuficiente interligação entre Espanha e França, afirmando que desde o início da guerra na Ucrânia o acoplamento entre preços entre os mercados espanhol a francês (em que os valores são iguais) atingiu 50,6% das horas totais. “Este número revela que a convergência de preços é maior do que a verificada em outras regiões da Europa”. E ainda que não o explicite esta matéria vai de encontro às preocupações já manifestadas pela Comissão Europeia aos governos ibérico sobre o risco de rutura no mercado único europeu devido às restrições que a proposta implica na transmissão de eletricidade para França.

Como Portugal e Espanha propõem baixar o preço da eletricidade “desligando” a França

As empresas alertam também para o impacto negativo nos benefícios já trazidos pelas renováveis ao mercado, considerando que o mecanismo proposto vai apoiar o uso de gás através da subsidiação dos preços, o que “do nosso ponto de vista vai claramente contra o compromisso central do último Conselho que tenta limitar a dependência de combustíveis fósseis e têm “sérias dúvidas de que o mecanismo proposto, mesmo considerado como uma medida temporária, cumpra os pressupostos das conclusões do Conselho Europeu.  E lembram argumentos caros aos técnicos de Bruxelas que estavam expressos na caixa de instrumentos sugeridos aos Estados-membros para lidar com a energia cara: a preservação da integridade do mercado único, os incentivos para a transição verde, a preservação da segurança de abastecimento e o evitar de custos orçamentais desproporcionais.

O Observador questionou a Comissão Europeia sobre as preocupações manifestadas pelas empresas e sobre as dúvidas que os técnicos estão a apresentar face à proposta ibérica para baixar os preços da eletricidade e o timing da decisão. Em resposta, a Comissão diz que está comprometida em fazer uma avaliação urgente sobre se as medidas temporárias e de emergência no mercado elétrico propostos estão “alinhados com o regime europeu de ajudas de Estado as regras do mercado interno de energia”. Sinaliza que tenciona usar a flexibilidade prevista na sua caixa de ferramentas de ajudas de Estado para apoiar a economia em contexto de subida sustentada dos preços da energia na sequência do ataque injustificado da Rússia à Ucrânia. E refere a existência de contactos permanentes com os governos dos dois países.