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A imagem original de Nossa Senhora de Fátima, em destaque na lateral direita da igreja paroquial de Lavra, está no centro da polémica
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A imagem original de Nossa Senhora de Fátima, em destaque na lateral direita da igreja paroquial de Lavra, está no centro da polémica

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A imagem original de Nossa Senhora de Fátima, em destaque na lateral direita da igreja paroquial de Lavra, está no centro da polémica

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Em Matosinhos, um padre que apareceu morto mostra as feridas de uma comunidade dividida — por causa de uma estátua de Nossa Senhora

Um padre foi encontrado morto em casa após meses de tensões e divisões na paróquia que liderava. Uma histórica procissão com uma imagem antiga está no centro da polémica que chegou aos jornais e à TV.

O padre António Augusto estava invulgarmente incontactável havia várias horas. Um dos seus paroquianos de Lavra, no concelho de Matosinhos, tinha morrido no dia anterior, um domingo. A família e a agência funerária precisavam de acertar com o sacerdote os detalhes das cerimónias fúnebres, mas não conseguiam falar com ele. Perante a ausência de resposta, falaram com o secretário da paróquia — que era um dos colaboradores mais próximos do sacerdote e tinha as chaves da casa paroquial. O secretário, Delfim, estava de folga naquela segunda-feira e estranhou a atitude do padre, habitualmente pontual e disponível.

Para tirar as dúvidas, Delfim foi à casa do padre, a poucos metros da igreja paroquial de Lavra. Encontrou-o morto, caído, ainda com a roupa que usara no dia anterior. O primeiro anúncio público surgiu na tarde dessa segunda-feira, pela voz de um outro padre da diocese do Porto: “Faleceu o Sr. Pe. António Augusto Teixeira de Sousa, Pároco de Lavra e Perafita. Não se sabe se faleceu ontem ou hoje. Foi encontrado morto na residência paroquial, pelo Secretário Delfim, que o chamava hoje para um serviço religioso. Não há mais informações de momento sobre as causas do seu falecimento.”

A morte repentina do padre António Augusto Teixeira de Sousa, de 71 anos mas sem quaisquer problemas de saúde conhecidos, teve um impacto imediato na paróquia de Lavra, uma comunidade católica que viveu os últimos dois meses em clima de profunda tensão e divisão, com direito a manifestações que chegaram aos jornais e às televisões. Uma polémica que colocou paroquianos contra paroquianos e que levou à intervenção da diocese do Porto — tudo devido ao alegado cancelamento de uma procissão histórica com uma igualmente histórica estátua de Nossa Senhora de Fátima, muito estimada pela comunidade piscatória que compõe uma boa parte da paróquia. Devido à controvérsia, o padre chegou mesmo a ser alvo de uma petição, organizada por alguns paroquianos e enviada ao bispo do Porto, Manuel Linda, no sentido de pedir a demissão do sacerdote.

O padre António Augusto morreu repentinamente aos 71 anos de idade

Imagem retirada do Facebook da paróquia de Lavra

Nas redes sociais, não faltou quem procurasse estabelecer uma ligação entre os dois acontecimentos — os dois meses de tensão, que teriam deixado o padre em grande sofrimento físico e psíquico, e a morte do sacerdote. Em Lavra, contudo, ninguém o diz abertamente. Os vários paroquianos com quem o Observador falou afirmam apenas que terá sido uma triste coincidência. Os que aceitam falar recusam ser identificados: todos argumentam que não querem lançar mais gasolina para uma fogueira que continua a arder e preferem contribuir para a difícil pacificação da comunidade paroquial não lançando acusações contra ninguém.

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A verdade, porém, é que nenhum esconde o seu posicionamento sobre a polémica que deu origem a toda esta tensão. “Não fazia mal nenhum a imagem ir de dois em dois anos na procissão”, desabafa ao Observador uma paroquiana de 66 anos, natural da zona piscatória de Angeiras, em Lavra, que se lembra de participar na procissão com Nossa Senhora de Fátima na praia desde a infância. “Deviam falar com os paroquianos. Não é a comissão nem o padre que mandam na igreja. A comunidade não foi ouvida.” Outros, contudo, lembram que os católicos não adoram estátuas e que não faz sentido considerar que uma imagem tem mais valor religioso que outra. Além disso, recordam que o sacerdote “nunca quis pôr em causa a tradição”, que a estátua comprada para substituir a original já era conhecida da comunidade há mais de um ano e que o objetivo de António Augusto era apenas o de preservar a outra estátua original, de grande valor artístico.

Uma estátua com quase um século

A polémica estourou em abril deste ano, quando começou a circular nas redes sociais, em grupos de habitantes da freguesia de Lavra, uma informação que exaltou os ânimos de um grupo de paroquianos. A tradicional procissão de agosto em honra de Nossa Senhora de Fátima, que se realiza a cada dois anos entre a igreja paroquial e a praia de Angeiras para abençoar os pescadores e os barcos, não seria feita, como habitualmente, com a antiga estátua de Nossa Senhora que está na paróquia desde a década de 1940. Usariam uma outra imagem, recentemente comprada em Fátima pelo sacerdote. Foi o suficiente para que se levantasse uma onda de indignação contra o padre António Augusto.

Além de muitos insultos diretos ao padre e aos responsáveis da paróquia, houve quem acusasse o sacerdote de desrespeitar uma antiga tradição da comunidade piscatória, quem lhe apontasse uma atitude de “quero, posso e mando” a respeito das devoções populares, quem prometesse protestar nas ruas contra a decisão e até quem lamentasse que os fiéis ficassem impedidos de cumprir as suas promessas a Nossa Senhora por não estarem na presença da imagem original junto da qual fizeram as ditas promessas. A tensão subiu de tom e, em maio, como noticiou na altura a agência Lusa, já circulavam duas petições dirigidas ao bispo do Porto contra o padre: uma pedia a substituição imediata do sacerdote, outra pedia o regresso da procissão, alegadamente cancelada.

Também em maio, um grupo de manifestantes em defesa da tradicional procissão de agosto organizou uma manifestação pacífica em frente à igreja paroquial de Lavra, na noite em que se realizou uma procissão de velas em honra de Nossa Senhora de Fátima. Dezenas de pessoas, vestidas de preto, ficaram em silêncio à porta da igreja enquanto decorria a celebração, como mostram as imagens captadas na altura por uma reportagem da TVI. Depois, colocaram-se no meio da procissão e abrandaram o passo, com o objetivo de a atrasar significativamente. No final das celebrações, vários dos manifestantes entraram na igreja e colocaram flores junto da imagem enquanto gritavam: “É nossa!”

Na paróquia de Lavra é praticamente impossível encontrar quem queira falar abertamente sobre o caso
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
A maioria dos paroquianos recusa alimentar uma polémica que dividiu a paróquia nos últimos dois meses
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Tudo por causa desta histórica estátua de Nossa Senhora de Fátima, entronizada na parede lateral direita da igreja de Lavra
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Em declarações à Lusa, Mónica Oliveira, uma das promotoras da petição em defesa da procissão com a imagem original, explicava que os manifestantes estavam contra a “não autorização da saída da imagem principal da santa [sic], bem como dos restantes santos da paróquia, a quem muitos têm promessas para cumprir, algumas com mais de 40 anos”. Segundo a peticionária, “esta é uma tradição com 82 anos”, que “começou depois de uma aflição no mar de pescadores de Angeiras”. Por isso, “é muito sentida na localidade”. “Dizer que as imagens podem ser danificadas na procissão não é aceitável. Isso não é justificação”, acrescentou ainda, acusando o padre e os responsáveis da paróquia de fazerem um “bate-pé” contra uma imagem que “foi oferecida aos pescadores”.

A história, contudo, não é bem assim. Para a perceber, é preciso recuar quase um século. De acordo com registos partilhados com o Observador por alguns paroquianos de Lavra, a imagem de Nossa Senhora de Fátima que ainda hoje se encontra na igreja foi comprada por subscrição no ano de 1940 pela paróquia. A escultura tinha sido feita em Santa Cruz do Bispo pelo célebre escultor Guilherme Thedim, irmão mais novo de José Ferreira Thedim, conhecido por ter sido o autor da primeira imagem de Nossa Senhora de Fátima da história — a que se encontra na Capelinha das Aparições, no Santuário de Fátima, e que é uma das peças de arte sacra mais valiosas do país.

A estátua chegou à igreja paroquial de Lavra no dia 21 de julho de 1940, numa procissão de velas em que participou uma grande multidão de fiéis. O valor artístico da imagem foi reconhecido de imediato, tanto que se conta que o padre António Francisco Ramos, então pároco de Lavra, a envolveu num saco de plástico para a proteger das moscas e das poeiras — e nunca quis que ela saísse da igreja em qualquer procissão. A partir de agosto de 1942, começou a realizar-se a cada dois anos a Festa em Honra de Nossa Senhora de Fátima, que é atualmente a festa popular mais importante da freguesia.

A história e o mistério do maior tesouro de Fátima

A festa, porém, ficaria para sempre marcada por um episódio ocorrido cerca de duas décadas depois, por volta do ano 1960. Um grande vendaval agitou o oceano e ameaçou os pescadores de Angeiras que andavam no mar e que tentavam regressar à praia, sem conseguirem sequer aproximar-se da barra devido à agitação marítima. A população da pequena povoação piscatória, nomeadamente as mulheres e as crianças, juntaram-se na praia à espera de um desastre iminente e começaram a rezar a Nossa Senhora de Fátima pela salvação dos pescadores. De acordo com relatos da época, o mar terá acalmado e permitido o regresso em segurança de todos, o que inaugurou uma profunda devoção dos pescadores a Nossa Senhora de Fátima.

A estátua de Nossa Senhora de Fátima foi esculpida por Guilherme Thedim e foi recentemente restaurada

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Um dos protagonistas desse momento terá sido Ezequiel Seabra, patrão de uma das embarcações. Naquela mesma noite, Ezequiel e os restantes pescadores dirigiram-se à igreja de Lavra para, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, manifestarem o seu agradecimento pelo salvamento das suas vidas. Terá sido Ezequiel Seabra a convencer finalmente os responsáveis da paróquia a autorizar a saída da valiosa estátua de Nossa Senhora de Fátima da igreja, para visitar a praia de Angeiras e abençoar barcos e pescadores, recordados desse acontecimento do século passado.

Aquela aflição marítima terá sido decisiva para a comunidade piscatória dar outro significado a um festejo que, na altura, já tinha cerca de vinte anos. Isso poderá explicar o facto de praticamente todos os habitantes de Lavra que aceitaram falar ao Observador terem contado a história da festa em honra de Nossa Senhora de Fátima da mesma forma, falando de uma devoção inaugurada pelos pescadores. Sessenta anos depois daquela quase-tragédia, muitos se referem àquela estátua de Maria e da procissão de agosto como uma tradição exclusivamente associada à comunidade piscatória de Angeiras — um dos muitos lugares que compõem a paróquia de Lavra —, deixando de fora a história original da aquisição e conservação da estátua.

No dia de chuva em que o Observador visitou Lavra, era praticamente impossível encontrar alguém nas proximidades da igreja. Uma paroquiana que lá entrou por volta da hora do almoço aceitou contar ao Observador o que se tem vivido nos últimos meses na paróquia — e começou justamente pela história de Ezequiel Seabra e da aflição no mar. “Eu sou da zona piscatória, era pequenita e tínhamos muita fé a Nossa Senhora. Houve uns pescadores que viveram uma tempestade enorme há muitos anos. A minha mãe é que me falava, eu não me lembro”, conta a paroquiana de 66 anos, no interior de uma igreja paroquial repleta de talha dourada, a poucos metros da estátua original de Nossa Senhora de Fátima, que continua inamovível na lateral direita do templo. “Havia um senhor, Ezequiel Seabra, que era o capitão dos salva-vidas, que era muito religioso. E a Senhora de Fátima vai de dois em dois anos abençoar a praia de Angeiras e os pescadores, sempre com esta imagem. Eles faziam votos de que a Nossa Senhora fosse abençoar.”

A tradição cumpriu-se durante décadas a fio, até mergulhar em polémica este ano. “Houve aqui um restauro e o padre não autorizava a saída da Senhora”, lamenta a mulher. “Mas deviam falar com os paroquianos”, acrescenta, sublinhando que não tinha “nada contra” o sacerdote e que continua a ir à missa semanalmente. Até elogia o trabalho de restauro que o padre António Augusto levou a cabo na igreja e nas imagens dos santos, mas diz não compreender a necessidade de interromper uma tradição com quase um século.

A cerca de um quilómetro da igreja paroquial, junto ao areal onde estão os barcos de pesca e onde alguns pescadores preparam as redes e as embarcações para voltarem ao mar, três homens na casa dos 60/70 anos contam uma história parecida ao Observador. Também recusam ser identificados para não alimentar polémicas, mas dizem que são filhos de pescadores e que se lembram de participar na procissão com Nossa Senhora de Fátima no areal de Angeiras desde a infância. Lamentam que o padre e os responsáveis da paróquia tenham decidido mudar uma tradição que lhes diz tanto e que, insistem, é responsável por manter a ligação de muitos à sua terra natal.

A praia de Angeiras é o palco de uma procissão histórica com a imagem de Nossa Senhora de Fátima — um ritual especialmente estimado pela comunidade piscatória

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Garantem que há muita gente que é dali, mas que vive fora, e que faz questão de marcar anualmente as suas férias para a semana da festa para poder ver a procissão. Outros vêm de fora para assistir à tradição. E muitos são os que têm promessas para cumprir a cada dois anos naquela procissão, que, afirmam, ficou em risco devido uma atitude de “quero, posso e mando” adotada pelo sacerdote. Apesar de reconhecerem que uma parte da comunidade, sobretudo composta pelos pescadores de Angeiras, levou a cabo vários protestos contra a decisão do sacerdote, rejeitam que esse clima de tensão tenha tido algo que ver com a morte do padre António Augusto. “Foi na hora em que tinha de ir, não passou de uma coincidência”, comentam.

Como uma polémica paroquial chegou às páginas dos jornais

Durante décadas, a tradição da paróquia de Lavra repetiu-se pacificamente. De dois em dois anos, em agosto, a Festa em Honra de Nossa Senhora de Fátima incluía uma majestosa procissão pelas ruas da povoação, terminando no areal de Angeiras, onde a estátua era colocada junto dos muitos barcos de pesca que fazem daquela praia o seu porto. Os pescadores e as suas famílias agradecem a proteção dada por Maria à pesca, cumprem promessas e renovam as preces que vão passando de geração em geração. O que motivou, então, este ano uma polémica digna de chegar às páginas dos jornais nacionais?

Novamente, é preciso recuar alguns anos para perceber o que se passou. Segundo os relatos feitos por alguns paroquianos ao Observador, a igreja de Lavra, que já tem cerca de 300 anos, estava a atingir um elevado estado de degradação patrimonial, tanto no edifício como na muita arte sacra que existe naquele templo, incluindo a talha dourada que decora o retábulo e as muitas imagens dos santos que os fiéis veneram. Algumas estátuas de madeira tinham bicho, a talha dourada estava já muito danificada e até o chão da igreja precisava de arranjo. Impunha-se um profundo trabalho de restauro que já tinha tido início durante o consulado do anterior pároco.

Em setembro de 2020, chegou à paróquia de Lavra o padre António Augusto Teixeira de Sousa, um missionário dehoniano que já estava ao serviço da diocese do Porto havia alguns anos. Logo nos primeiros meses, quando o novo sacerdote conheceu a realidade da paróquia e os responsáveis dos vários serviços e movimentos lhe apresentaram a necessidade de avançar com trabalhos de restauro, António Augusto decidiu avançar com o projeto. A pandemia atrasou os trabalhos, que decorreram em 2022 e 2023. Na igreja, um dos pontos positivos apontados por uma paroquiana com quem o Observador conversou é justamente a melhoria que foi feita no edifício.

O ponto mais sensível, contudo, prendeu-se com as imagens dos santos. De acordo com o relato de alguns paroquianos, o padre António Augusto chamou um perito restaurador para avaliar as imagens. A conclusão dessa avaliação foi a de que as imagens, de grande valor histórico e artístico, estavam bastante degradadas e precisavam não só de um trabalho de restauro, mas também de uma preservação mais adequada. Uma das recomendações do perito foi mesmo a de que a paróquia seguisse uma prática habitual em vários lugares de culto, inclusivamente no próprio Santuário de Fátima: preservar a imagem original no lugar de exposição ao culto e usar uma outra imagem, mais moderna, para as procissões no exterior.

A decisão de preservar as imagens originais restauradas na igreja (incluindo a de Nossa Senhora de Fátima) e de passar a usar novas imagens nas procissões foi tomada pelo padre depois de consultar o Conselho para os Assuntos Económicos da paróquia. Em maio de 2023, o sacerdote comprou uma nova imagem de Nossa Senhora de Fátima, mais pequena e mais leve, no Santuário de Fátima, para poder ser usada nas procissões daí em diante.

A 13 de maio de 2023, a nova estátua chegou a Lavra. A página de Facebook da paróquia ainda conserva o registo da celebração em que a imagem foi benzida pelo padre António Augusto. Os paroquianos recordam que, nessa ocasião e nas várias missas dessa altura, o padre informou que aquela imagem — que ficaria no centro paroquial — passaria a ser usada em todas as procissões na paróquia. É também isso que se lê na publicação feita pela paróquia na altura: “Esta imagem servirá, a partir de agora, para incorporar todas as procissões em louvor de Nossa Senhora de Fátima. A imagem que se encontra no altar da igreja, manter-se-á no seu lugar para que aí todos a possam louvar.”

Em maio de 2023 já tinha sido anunciado que a nova imagem vinda de Fátima substituiria a antiga nas procissões. A original ficaria preservada na igreja

Na altura, garantem alguns paroquianos ao Observador, ninguém discordou da decisão do sacerdote. A compra da imagem foi pacífica na paróquia (na página do Facebook, também não há registo de qualquer comentário negativo) e, além disso, foi usada na procissão de velas de maio de 2023, em Lavra. Na ocasião, não houve protestos contra o uso da nova imagem nessa procissão, enquanto a antiga permanecia no seu local de culto, dentro da igreja, garantem os paroquianos.

O problema começou já em 2024, ano de procissão em honra de Nossa Senhora de Fátima até à praia de Angeiras — quando, para a generalidade da paróquia, a ideia de que a nova imagem peregrina seria levada no andor era já um dado adquirido.

No início do ano, entrou em funções uma comissão de festas, composta por representantes dos vários lugares da freguesia, com o objetivo de organizar a festa de agosto e a procissão até à praia de Angeiras. Paroquianos ouvidos pelo Observador garantem que, desde o início, a comissão de festas sabia que seria a nova imagem a ser levada no andor. E é já neste período de trabalho da comissão que começa a circular nas redes sociais, em grupos ligados à paróquia, a ideia de que o padre António Augusto teria proibido subitamente a saída da imagem original de Nossa Senhora de Fátima. Uma primeira publicação deu origem a uma escalada de insultos contra o padre por uma parte da paróquia — um grupo de pessoas que, de acordo com alguns paroquianos ouvidos pelo Observador, não são frequentadores habituais da vida paroquial (o que poderá explicar que não tivessem sabido da aquisição da nova imagem um ano antes), mas são devotos indefectíveis da procissão na praia de Angeiras.

Perante a confusão gerada, que escalou fortemente em poucos dias, o padre António Augusto terá mesmo chegado a organizar uma sessão de esclarecimento na igreja, num domingo de manhã, com a presença dos peritos que tinham avaliado as imagens, para explicar o trabalho de restauro que tinha sido feito, a importância da preservação da imagem e a decisão de manter a estátua original em permanência dentro da igreja.

Na praia de Angeiras, a um quilómetro do centro de Lavra, ninguém quer falar abertamente sobre o tema em que todos pensam

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Os esforços não resultaram. Dentro da própria comissão de festas (composta por elementos dos diferentes pontos da freguesia), surgiram fortes divisões quanto à possibilidade de a procissão se realizar com uma nova imagem. No dia 13 de maio de 2024 — exatamente um ano depois da chegada a Lavra da nova estátua de Nossa Senhora de Fátima —, a comissão de festas divulgou um comunicado explosivo: pela primeira vez em 82 anos, a festa em honra de Nossa Senhora de Fátima “não se irá realizar”. Segundo o comunicado, “não estavam reunidas as condições para a realização” da festa devido aos “diferendos existentes em relação à imagem da Nossa Senhora de Fátima”.

“O diferendo existente entre parte da comunidade lavrense, que exige a saída da imagem original no dia da Grandiosa Procissão da Nossa Sra. de Fátima, e a Paróquia de Lavra, leva a que esta comissão conclua que não estão reunidas as condições para que a tradição religiosa e festiva se realize este ano”, lê-se no comunicado. “Assim, a Comissão de Festas toma a decisão de cessar funções, com efeitos imediatos.” No fim de semana seguinte ao comunicado da comissão de festas, o sacerdote informou a comunidade de que, não havendo comissão, não haveria festa este ano — o que fez subir a tensão. Segundo o Jornal de Notícias, terá havido uma provocação por parte dos paroquianos mais próximos do padre, que bateram palmas no final do anúncio. Até a GNR terá sido chamada à igreja.

A partir desse momento, espalhou-se a ideia de que o sacerdote tinha decidido cancelar a Festa em Honra de Nossa Senhora de Fátima, por muitos na zona piscatória de Angeiras chamada simplesmente “Festa da Praia”. Basta passar pelos muitos grupos do Facebook que reúnem habitantes de Lavra para perceber o que se seguiu: são centenas os comentários insultuosos contra o padre, acusando-o de vir de fora para desonrar uma tradição secular própria da comunidade piscatória usando uma “réplica” da estátua. Muitos mandaram o sacerdote voltar para a sua terra, outros perguntaram “quem é ele” para proibir a procissão e outros ainda apelaram ao boicote da paróquia.

Nos dias seguintes à demissão da comissão de festas, a história tornou-se notícia nacional. A Agência Lusa noticiava: “População de Angeiras quer substituir padre por cancelar tradição com 82 anos.” Na altura corriam já as duas petições contra o sacerdote com a acusação de que tinha sido António Augusto a decidir cancelar a procissão. A paróquia estava já dividida: de um lado, uma parte significativa, embora minoritária, de pessoas que queriam a procissão com a imagem original e que se posicionaram contra o sacerdote; do outro, uma parte maioritária da paróquia, mas menos expressiva, que ficou do lado do padre.

Tensão na paróquia deixou padre sem comer e sem dormir

Naqueles dias de grande tensão do mês de maio, ambas as fações terão pedido reuniões ao bispo do Porto, Manuel Linda, para explicar a situação. Alguns paroquianos mais próximos do sacerdote enviaram também um email ao bispo para lhe explicar o drama que se estava a viver na paróquia e para alertar que tudo aquilo estava a ter um grande impacto no sacerdote, que vivia angustiado com os insultos permanentes de que era alvo. Ao mesmo tempo, a comunidade dos pescadores continuava a acusar o padre de querer acabar com uma tradição. Numa reportagem do Jornal de Notícias publicada por esta altura, vários pescadores reivindicavam a festa da freguesia como sua. O pico da tensão aconteceu na noite de 24 de maio, na procissão das velas, quando mais de duas centenas de manifestantes fizeram um protesto na igreja que foi acompanhado por vários meios de comunicação social. Os manifestantes, vestidos de negro, colocaram-se mesmo em frente à carrinha de som onde seguia o sacerdote e abrandaram o passo, de modo a impedir o andamento da viatura e a perturbar a procissão.

De dois em dois anos, a imagem de Nossa Senhora é levada até ao areal de Angeiras, transformado em porto de pesca
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
A procissão em honra de Nossa Senhora de Fátima é particularmente estimada pela comunidade piscatória local
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Uma tragédia iminente, evitada no limite, na década de 1960 associou para sempre os pescadores de Angeiras e o culto a Nossa Senhora
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Depois da morte do padre António Augusto, a procissão foi suspensa
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Mas a comunidade de pescadores continua confiante de que conseguirá organizar a procissão ainda este ano
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Depois daquela noite, dizem alguns paroquianos ao Observador, o padre António Augusto nunca mais foi o mesmo: não dormia, não comia, chorava convulsivamente, dizia-se desiludido e angustiado com os insultos que lhe dirigiam. Chegou mesmo a ter episódios de tensão arterial invulgarmente elevada (a tensão máxima terá mesmo chegado aos 220 mmHg) e alguns responsáveis de movimentos da paróquia, mais próximos do padre, relataram ao bispo, ao vigário-geral e a outros responsáveis da diocese o estado de saúde do sacerdote. Muitos paroquianos disseram sentir-se abandonados pela diocese, que não resolvia a situação e se limitava a apelar à paz dentro da paróquia.

Em junho, começou a circular a informação de que o bispo teria decidido mandar que se realizasse a procissão. O sacerdote, que não tinha conhecimento dessa decisão, ainda terá enviado uma carta a Manuel Linda dando conta da sua opinião sobre o assunto, mas não teve sucesso na sua intenção. A 7 de junho, quando a paróquia já estava há várias semanas num clima de forte tensão e já tinha atraído a atenção de várias televisões, o sacerdote recebeu indicações da parte da diocese para que se avançasse com a procissão de agosto, mas sem a parte festiva habitualmente associada às festas durante todo o fim de semana. Aos seus colaboradores na paróquia, o sacerdote terá mesmo desabafado que teve de “aceitar o inaceitável”.

Sem festa, mas com procissão, foi constituída uma comissão organizadora para tratar dos detalhes da procissão — um grupo de pessoas que faziam parte da anterior comissão de festas a quem o padre pediu que assumissem a nova tarefa e que deveriam reunir-se com responsáveis da diocese para organizar a procissão, que não seria presidida pelo padre António Augusto. O sacerdote convidaria um outro padre da diocese para assegurar a festa. Contudo, a história ainda teria mais uma reviravolta: um grupo de outras pessoas além das indicadas pelo padre também foram à reunião com a diocese e assumiram elas uma nova comissão de festas para organizar não só a procissão, mas todas as celebrações. O sacerdote ainda se reuniu com o bispo para perceber o que tinha acontecido, mas, de acordo com o relato dos paroquianos, terá cedido em nome da paz na paróquia.

Devido à decisão da diocese, o caso de Lavra voltou às páginas dos jornais a 26 de junho, quando a Lusa noticiou que o bispo do Porto tinha ordenado a “manutenção” da procissão, citando como fonte novamente Mónica Oliveira, uma das promotoras das duas petições contra o padre António Augusto. O Observador tentou contactar Mónica Oliveira a propósito do movimento de contestação ao sacerdote, mas sem sucesso.

Procissão novamente suspensa após morte de padre

Quatro dias depois da notícia sobre a decisão de manutenção da procissão na praia, o padre António Augusto foi encontrado morto na casa paroquial. Se, de imediato, houve quem nas redes sociais tivesse procurado associar a morte do sacerdote ao clima de tensão que se viveu na paróquia nos últimos dois meses, ninguém em Lavra o quer dizer abertamente. Na praia de Angeiras, junto ao areal transformado em porto de pesca, quase ninguém aceita falar ao Observador dando o nome e a cara. O tema paira no ar e, tanto no centro da vila como na praia, é possível sentir a tensão. Há muito pouca gente ali. A maioria dos pescadores, ou anda no mar, ou está a descansar. O único lugar movimentado é a pequena rua onde alguns restaurantes especializados em peixe e marisco atraem dezenas de turistas, alheios à polémica das últimas semanas.

O único que aceita falar abertamente é Nuno Araújo, 43 anos, vice-presidente da Associação Mútua dos Armadores de Pesca de Angeiras e um dos membros da nova comissão de festas, formada já depois da polémica. Nuno Araújo está no areal de Angeiras, junto ao seu barco, a preparar-se para ir para o mar, de onde só deverá regressar no dia seguinte. Diz que não tem nada a acrescentar ao que já foi dito por não querer “alimentar a polémica” numa altura em que “a paróquia está de luto”. O pescador revela que a procissão, que entretanto tinha sido recuperada, está agora suspensa sem nova data para respeitar o luto pelo sacerdote: foi adiada para outra altura e a comissão quer que se realize ainda este ano.

Nuno Araújo, pescador de 43 anos, tem sido um dos rostos da defesa da procissão com a imagem original de Nossa Senhora

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Nuno Araújo garante que nunca teve “nada contra o padre”, mas lamenta que o sacerdote não tenha autorizado que a procissão levasse “a imagem original que sempre se levou”. A versão do pescador não é exatamente coincidente com os relatos ouvidos pelo Observador da parte de vários outros paroquianos: Nuno Araújo garante que a comunidade piscatória falou com a diocese e que se “chegou a acordo” para avançar com a procissão. “Antes da morte dele estava tudo bem”, assegura o pescador, que argumenta que o próprio padre estava de acordo com a realização da procissão “com a imagem original”. Agora, nada disso importará. Nuno Araújo assegura que os pescadores estão “solidários” e não querem “exigir nada” que alimente a polémica.

A diocese do Porto, liderada pelo bispo Manuel Linda, remete para dois textos publicados sobre o assunto: um comunicado logo após a morte do padre e a homilia do bispo no funeral do sacerdote.

“Diante de circunstâncias conhecidas e amplamente divulgadas, importa sublinhar a disponibilidade do Padre António Augusto para encontrar uma solução. Foi esse amor à Igreja, a todos os paroquianos e o desejo de encontrar a paz que o motivou ao diálogo e a convidar um sacerdote vizinho para ajudar à realização da festa do dia 11 de agosto. E só depois disso, com o seu conhecimento e na presença de paroquianos por ele indicados, se concretizou uma reunião onde foi comunicada a decisão. Ao contrário do que alguma comunicação anunciou, esse reunião não contou com a presença do Bispo diocesano ou do seu secretário”, lê-se no comunicado.

A nota da diocese também sublinha que nunca houve qualquer imposição da vontade do bispo ao padre, mas um diálogo entre as duas partes.

“A disponibilidade do nosso Bispo, D. Manuel Linda, para acolher e escutar o Padre António Augusto foi constante, tal como a preocupação em encontrar uma solução que permitisse percorrer caminhos de paz. Reuniram os dois várias vezes e mantiveram-se em contacto telefónico continuamente. As propostas de solução a que iam chegando deveram-se sempre à colaboração do pároco e nunca resultaram de qualquer imposição. E será oportuno sublinhar que, em todos os momentos, foi contínua a vontade do Pe. António Augusto em permanecer nas paróquias a ele pastoralmente confiadas”, disse ainda a diocese. “O momento que vivemos entristece-nos e deve motivar todos na busca conjunta de um caminho onde a diversidade nos deve enriquecer e nunca dividir.”

A praia de Angeiras é um dos vários lugares que compõem a freguesia de Lavra, em Matosinhos

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No funeral do sacerdote, Manuel Linda não mencionou as polémicas na paróquia de Lavra, mas fez referência à “profunda amizade” que tinha por António Augusto e lembrou como chorou quando foi informado, ao telefone, da morte do padre. Uma fonte próxima da diocese confirmou ao Observador que a diocese quis sempre “propor o diálogo” entre as duas fações em disputa, o sacerdote e o episcopado.

As paróquias de Lavra e Perafita estão, agora, sob o cuidado pastoral do padre Francisco Andrade, pároco de Leça da Palmeira. Ao Observador, o sacerdote não quis pronunciar-se sobre o caso nem sobre a situação que encontrou na paróquia de Lavra. Disse apenas que é “muito cedo” para falar e que a comunidade ainda está a “digerir o que aconteceu”. A morte do sacerdote, porém, parece não ter serenado a profunda divisão que se vivia na paróquia. Alguns paroquianos lamentam a injustiça a que o sacerdote foi sujeito nos últimos dois meses da sua vida; outros continuam a considerar que o padre agiu mal e a exigir que, no futuro, a imagem original de Nossa Senhora de Fátima saia mesmo até à praia. Para já, a procissão está suspensa: resta saber o que vai fazer o padre que vier a ser nomeado para a paróquia.

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