O Papa Francisco publicou esta semana a quarta encíclica do seu pontificado, um longo texto intitulado Dilexit Nos (“Ele amou-nos”) em que observa um mundo contemporâneo ferido por “sucessivas novas guerras” e por um “sistema degradante” de consumismo voraz, ao mesmo tempo que deixa um aviso para dentro de portas, sobretudo às alas mais conservadoras que nos últimos anos têm contribuído para uma polarização do discurso e das ideias: perante este contexto, a Igreja Católica tem de evitar a tentação de trocar o “amor de Cristo” por “estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género”.
A encíclica, que surge na última semana do Sínodo dos Bispos que está a decorrer este mês em Roma (embora com os temas mais polémicos fora da agenda), sucede a Fratelli Tutti (2020), Laudato Si’ (2015) e Lumen Fidei (2013, escrita em grande parte por Bento XVI e completada por Francisco). O texto, com 220 pontos divididos por cinco capítulos, é dedicado ao “amor humano e divino do coração de Jesus” — uma devoção cristã que o Papa procura oferecer à humanidade como resposta para um mundo marcado pela violência, pela guerra, pelo consumismo, pela intolerância, pelo narcisismo e pela crescente secularização.
“Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”, escreve o Papa Francisco na encíclica. “O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre.”
“A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades”, acrescenta o Papa, visando diretamente o interior da Igreja Católica.
Na linha das duas encíclicas anteriores, amplamente consideradas entre os textos mais importantes do mundo contemporâneo, também a encíclica Dilexit Nos versa sobre a importância social da fé cristã: depois de Fratelli Tutti (sobre a fraternidade e a amizade social) e de Laudato Si’ (sobre o cuidado da casa comum e as questões ambientais), o Papa Francisco inspira-se na história e na tradição da devoção do Sagrado Coração de Jesus para produzir um documento sobre a necessidade de a fé cristã se traduzir em ações concretas de amor e cuidado entre humanos.
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“Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração”
Francisco começa, aliás, o texto por recordar o próprio conceito de coração, habitualmente usado como símbolo do amor. “Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido”, reconhece o Papa. “É necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência.”
Citando autores como Homero, Platão ou Dostoiévski, Francisco procura chegar a uma definição do conceito que, defende, é preciso recuperar. O Papa recua ao grego antigo, em que “o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas”, e lembra como, “em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano”.
“Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função ‘sintetizante’ do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração”, escreve Francisco.
“O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular. Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se pensa, se acredita e se quer realmente, os ‘segredos’ que não se contam a ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou mentira, mas autêntico, real, inteiramente ‘pessoal’”, acrescenta o Papa. “Frequentemente, esta verdade íntima de cada pessoa está escondida debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e ainda mais difícil conhecer o outro.”
“A mera aparência, a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio”, diz Francisco.
Para o líder da Igreja Católica, “neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas”.
“Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige”, avisa o Papa, alertando para o perigo de o ser humano se “desorientar do centro de si mesmo” justamente pela falta da sua dimensão do coração.
“O problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem — o coração — vem de mais longe: encontramo-la já no racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo nas suas diversas formas”, lamenta o Papa. “O coração teve pouco espaço na antropologia e é uma noção estranha ao grande pensamento filosófico. Preferiram-se outros conceitos, como a razão, a vontade ou a liberdade. O seu significado permanece impreciso e não lhe foi atribuído um lugar específico na vida humana.”
“Assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração”, escreve Francisco. “Basta olhar e ouvir — nos diferentes lados do confronto — as idosas que são prisioneiras destes conflitos devastadores. É desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Elas, que muitas vezes foram modelos de força e resiliência ao longo de vidas difíceis e sacrificadas, chegam à última fase da sua existência e não recebem uma merecida paz, mas sim angústia, medo e indignação. Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração.”
Francisco destaca, por outro lado, que o coração humano assume uma importância redobrada no mundo digital. “O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais padronizados do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração”, diz o Papa. “Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano.”
“Uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade ‘anti-coração’. E, por fim, chega-se à ‘perda do desejo’, porque o outro desaparece do horizonte e nos fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis”, escreve Francisco.
“Um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus”
Na encíclica, Francisco alerta também para um “forte avanço da secularização” que se observa nos tempos atuais e “que visa um mundo livre de Deus”, a que se soma “a multiplicação na sociedade de várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma ‘espiritualidade sem carne’”.
O Papa recorda as antigas polémicas teológicas dos séculos XVI e XVII em torno do pensamento jansenista, baseado num dualismo inconciliável entre a graça divina e o livre arbítrio humano, que desprezava práticas de piedade religiosa e de devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Os jansenistas, escreve Francisco, “desprezavam tudo o que era humano, afetivo, corpóreo, e entendiam, em última análise, que esta devoção nos afastava da mais pura adoração ao Deus Altíssimo”.
“Pio XII chamou ‘falso misticismo’ a esta atitude elitista de alguns grupos que viam a Deus tão alto, tão separado, tão distante, que consideravam as expressões sensíveis da piedade popular perigosas e necessitadas de controle eclesiástico”, recorda o Papa. “Poder-se-ia afirmar que hoje, mais do que o jansenismo, enfrentamos um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus.”
“Devo advertir que, no seio da própria Igreja, o nefasto dualismo jansenista renasceu com novos rostos. Ganhou força renovada nas últimas décadas, mas é uma manifestação daquele gnosticismo que já nos primeiros séculos da fé cristã causava dano à espiritualidade e ignorava a verdade da ‘salvação da carne’”, considera o Papa Francisco.
Numa altura em que a Igreja Católica debate, ao mais alto nível, o papel dos padres e bispos no mundo contemporâneo, Francisco identifica um “dualismo” na existência de “comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos”.
“O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado”, alerta. “A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos”, acrescenta mais à frente num documento em que reitera várias vezes que no centro da fé cristã está o amor e não os “fanatismos” religiosos.
Encíclica “não é só um discurso dirigido para o exterior”
Na sequência da publicação da encíclica, foram vários os responsáveis da Igreja que viram no documento um reflexo do pensamento teológico do Papa Francisco em continuidade com as encíclicas anteriores. Num artigo publicado no Ponto SJ, o padre jesuíta Paulo Duarte, adjunto do diretor nacional da Rede Mundial de Oração do Papa, destacou que a nova encíclica de Francisco é “rica em passagens que convidam a saborear internamente” e sublinhando a importância dada pelo Papa à “interioridade”.
“O coração foi descurado do imenso que concentra em si mesmo. Ou pelo menos relegado para planos afastados, onde se deu mais preferência à racionalidade, à vontade ou à liberdade. Por isso, Francisco apela a voltar ao coração, desde o Coração de Cristo”, diz o sacerdote, que pertence à mesma ordem religiosa que o Papa.
No mesmo sentido, em declarações à Agência Ecclesia, o padre Paulo Coelho, superior do Seminário de Alfragide e membro da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, considera que a encíclica do Papa Francisco é um desafio para dentro e para fora da Igreja Católica.
“Isto não é só um discurso dirigido para o exterior, mas é para todos, exatamente com a intensidade que tem”, disse o sacerdote dehoniano, de uma congregação cujo carisma se foca justamente na devoção do Sagrado Coração de Jesus. “Perante este contexto de sínodo, a publicação desta encíclica que aponta para a centralidade do coração, não deixa também de nos desafiar. É impossível separar este pronunciamento agora de todo o magistério e de todo este processo que temos feito com a Igreja e, sobretudo, com este grande impulso, que nos compromete muito.”
Para aquele sacerdote, a encíclica do Papa Francisco aponta para “uma espiritualidade do concreto” e não apenas “da intencionalidade”.
“Não podemos estar indiferentes ao que se está a passar ao nosso lado, não podemos estar indiferentes àquela pessoa que está ao nosso lado. Não pode ser qualquer coisa apenas adquirido racionalmente, mas tem que ser qualquer coisa que se fundamenta numa relação amorosa com Jesus, com a Igreja, com os outros, que contribui também a própria vida dos santos, pelos seus exemplos e também os testemunhos de tantas pessoas concretas que passam na vida”, diz o padre Paulo Coelho.
“Hoje falta-nos sensibilidade pela humanidade. Se nos centramos e contemplamos o amor de Jesus, que é profundamente humano, intensamente humano, quer dizer que também nós somos capazes disso”, acrescenta ainda o sacerdote. “Isto requer, obviamente, da nossa parte, superação do nosso egoísmo.”