Estávamos em fevereiro e o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, aterrava em Moscovo para exigir a libertação de Alexei Navalny, o principal opositor de Vladimir Putin. Numa conferência de imprensa, ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Borrell começou por criticar a forma como o Kremlin lida com os direitos humanos e acabou em silêncio enquanto Serguei Lavrov disparava em todas as direções, acusando a União Europeia de ser mentirosa e de ter duplicidade de critérios. Uma visita diplomática que foi apelidada de desastrosa e humilhante.
Pouco mais de um mês depois, numa entrevista à ABC News, Joe Biden acusava Vladimir Putin de ser um assassino e prometia que a Rússia iria pagar pela interferências nas presidenciais de novembro do ano anterior. O Presidente russo respondeu desejando “boa saúde” ao seu homólogo norte-americano.
Estes dois episódios são apontados como dois momentos decisivos numa escalada de tensão que veio aprofundar a crise diplomática entre Moscovo e o Ocidente, de que, de acordo com os analistas, atingiu o nível de maior tensão desde a anexação da Crimeia. Movimentações militares na fronteira com a Ucrânia, degradação do estado de saúde de Alexei Navalny na prisão, expulsão de diplomatas de lado a lado e imposição de duras sanções são acontecimentos que parecem retirados dos tempos da Guerra Fria, quando o mundo vivia sobre a ameaça constante de uma guerra de grandes dimensões entre Moscovo e Washington.
Ao longo dos anos, Putin foi habituando o mundo a uma postura agressiva, repetindo frequentemente que o Ocidente quer destruir a Rússia. Contudo, as movimentações das últimas semanas, mesmo para os padrões habituais do Presidente russo, apontam para uma escalada que remonta a 2014, quando Moscovo anexou a Crimeia, o que tem levantando questões quanto aos seus reais objetivos e até onde está realmente disposto a ir com as ameaças.
Presidente russo avisa Ocidente que provocações à Rússia terão resposta “rápida e dura”
Quem esperava clarificação, ou um grande anúncio, no discurso anual à nação feito por Vladimir Putin esta quarta-feira, terá ficado algo desapontado. O Presidente russo, que centrou grande parte do discurso na pandemia de Covid-19, não deu pistas quanto ao que pretende fazer em relação à Ucrânia, não fez qualquer referência a Navalny e repetiu ameaças ao Ocidente, garantindo, no entanto, que a Rússia “não pretende queimar pontes” e que está comprometida com a paz.
Contudo, Putin avisou que não vai permitir que sejam ultrapassadas “linhas vermelhas” e prometeu uma resposta “assimétrica, rápida e dura“ em caso de provocações. “Aqueles que organizarem quais provocações que ameacem os nossos interesses de segurança essenciais, irão arrepender-se como há muito tempo não acontece “, ameaçou Putin, que acusou ainda o Ocidente de planear o assassínio do Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, e de desestabilizar a Ucrânia.
Alta tensão no leste da Ucrânia
Tendo em conta que este tipo de palavras duras em relação ao Ocidente tem sido recorrente ao longo dos anos, é difícil antecipar os passos seguintes. Certo é que a tensão tem vindo a agudizar-se e tem epicentro no leste da Ucrânia, onde há várias semanas estão destacadas centenas de milhares de tropas russas — a União Europeia fala em mais de 150 mil soldados.
Os analistas têm-se dividido sobre as intenções de Putin e até que ponto pode ou não estar iminente uma intervenção militar, que tanto pode ter como objetivo anexar as repúblicas separatistas de Donetsk e de Lugansk, onde combatem separatistas pró-Rússia, como uma intervenção de maior dimensão no território ucraniano.
Porque é que Putin enviou militares para a fronteira com a Ucrânia? O Ocidente está preocupado
“Existe uma demonstração de força em ambos os lados, mas tanto a Rússia como a Ucrânia não estão realmente interessadas num grande conflito e num confronto direto”, afirma ao Observador o analista Andrey Kortunov, que, no entanto, não exclui a possibilidade de “uma escalada inadvertida causada por um erro de cálculo ou um erro técnico, ou outro incidente que possa levar gradualmente para um grande conflito”.
O diretor-geral do think tank Russian International Affairs Council (RIAC), com sede em Moscovo, nota ainda que é “muito difícil, senão mesmo impossível” que Vladmir Putin consiga mobilizar o povo russo em torno de uma “agenda patriótica” que justificasse uma ofensiva semelhante à de 2014, na Crimeia, uma vez que a grande preocupação dos russos neste momento é a pandemia de Covid-19 e a recuperação económica.
Contudo, Kortunov alerta que há muitos cidadãos com passaporte russo no Donbass, o que poderá ser usado pelo Kremlin como justificação para agir em defesa das “repúblicas” de Donetsk e de Lugansk e dos cidadãos que lá vivem.
“Estas pessoas com cidadania russa esperam algum tipo de proteção e penso que será difícil ignorá-las. Putin poderá ter de fazer alguma coisa para demonstrar que consegue proteger os cidadãos russos, mesmo que os que vivem num país estrangeiro”, sublinha Kortunov, considerando que a Ucrânia tem exacerbado a tensão naquela região.
Nos últimos meses, de facto, o Presidente ucraniano, Volodomyr Zelensky, assumiu uma postura de maior confronto com a Rússia e encerrou vários canais de televisão pró-russos na Ucrânia, impôs sanções a aliados próximos de Putin e tem declarado abertamente, pressionando até o Ocidente, para que Kiev entre para a NATO o mais rapidamente possível, uma possibilidade que é percecionada em Moscovo como uma ameaça à sua segurança.
No entanto, de acordo com o Ocidente, o contingente militar russo na fronteira com a Ucrânia é o maior desde a anexação da Crimeia. Nesse sentido, a analista Katharine Quinn-Judge sublinha que a movimentação de tropas russas “é anormal”, mas não crê que o Kremlin esteja a ponderar uma ofensiva de grande escala, pelo menos no curto prazo.
“Não acho que uma intervenção militar seja provável no futuro — isto é, nas próximas semanas —, mas não a podemos descartar nos próximos meses. Quando as tensões são elevadas, as provocações podem vir de ambos os lados”, afirma ao Observador a analista do International Crisis Group, uma organização independente que trabalha na prevenção de conflitos internacionais.
Na terça-feira, na véspera de Putin fazer o seu discurso à nação, o Presidente ucraniano convidou o seu homólogo russo para um encontro no Donbass, para discutir a paz na região, um convite que ainda não teve resposta. Zelensky acrescentou ainda que a Ucrânia “não quer a guerra, mas está pronta para a guerra”.
Navalny, uma figura “desconfortável” para o Kremlin
Enquanto nas últimas semanas a tensão subia no leste da Ucrânia, Alexei Navalny iniciava, no final de março, uma greve de fome em protesto contra a sua detenção. Desde então, o estado de saúde do principal opositor político de Putin tem vindo a agravar-se e alguns médicos têm alertado que Navalny, desde segunda-feira a ser acompanhado num hospital-prisão, pode morrer a qualquer momento.
O caso tem sido uma das maiores dores de cabeça para o Kremlin e um dos principais focos de tensão com o Ocidente, numa troca de acusações que se arrasta desde agosto do ano passado, quando o opositor russo foi envenenado, tendo sobrevivido após receber tratamento num hospital alemão.
Ao regressar à Rússia, no início deste ano, ciente de que seria detido, Navalny desafiou diretamente Putin e acabou por ser condenado a dois anos e meio de prisão, o que intensificou ainda mais as críticas vindas do Ocidente e aumentou a contestação interna, com manifestações pró-Navalny, como as desta quarta-feira, com milhares de pessoas nas ruas, a serem violentamente reprimidas.
“Navalny é uma figura muito desconfortável para o Kremlin, que, na minha visão pessoal, não sabe como lidar com ele”, afirma Andrey Kortunov. O analista acrescenta, porém, que Navalny “não constitui uma ameaça imediata para Putin”, uma vez que a sua popularidade é muito inferior à do Presidente russo, contudo, o opositor russo é o “crítico mais radical do Kremlin” — o que “pode explicar, mas não justificar, a abordagem” de Putin.
Médicos alertam que Navalny pode sofrer paragem cardíaca “a qualquer momento”
Depois de prender Navalny, as autoridades russas parecem querer ir mais longe e, segundo o The Guardian, é expectável que a Fundação Anti-Corrupção da qual o opositor russo faz parte seja classificada como organização extremista, um rótulo que no passado foi aplicado à Al-Qaeda ou às testemunhas de Jeová. A confirmar-se, os seus membros estarão ainda mais expostos às autoridades e podem enfrentar duras penas de prisão.
A perseguição a opositores políticos parece estar relacionada com um receio no Kremlin de que os aliados de Navalny conseguiam ter um bom resultado nas eleições para o parlamento russso (Duma), marcadas para setembro. Esse é, aliás, apontado como um dos motivos para a intransigência de Moscovo ceder às pressões do Ocidente em relação a Navalny, apesar de os Estados Unidos terem alertado que “haverá consequências” caso o opositor russo morra na prisão.
“A mensagem que [Putin] quer enviar é que as questões internas da Rússia apenas dizem respeito à Rússia, e que nem a União Europeia nem os Estados Unidos têm o direito de as comentar ou influenciar”, diz ao Observador Gustav Gressel, analista do European Council on Foreign Relations.
Putin “não se importa” com a UE e quer “clareza” na relação com EUA
No que diz respeito ao caso Navalny, ao longo dos últimos meses, a União Europeia tem feito uma série de declarações a condenar a forma como o opositor russo está a ser tratado pelas autoridades russas. Bruxelas tem repetido os apelos sobre defesa dos direitos humanos na Rússia, mas as suas palavras têm sido recebidas com desdém em Moscovo.
“A Rússia não se importa muito com o que a União Europeia pensa, porque não a vê como um ator relevante”, aponta Gustav Gressel, defendendo que Bruxelas deve “ganhar força e coragem”, reforçando as suas capacidade de defesa, de forma a ser levada a sério por Moscovo. “A lição a retirar de 2014 [anexação da Crimeia] é que a Rússia, independentemente das suas desculpas formais, vai tão longe quanto lhe permitam”, acrescenta o analista.
No que diz respeito aos Estados Unidos, no entanto, os analistas concordam que a abordagem de Putin é diferente e a chegada de Joe Biden à Casa Branca representa uma mudança nas relações entre Washington e Moscovo, com o Presidente norte-americano a deixar bem claro que pretende uma abordagem mais dura.
Depois de ter chamado assassino a Putin, acusando o Presidente russo de interferir nas presidenciais norte-americanas e de ser responsável por ataques informáticos aos EUA, Biden impôs sanções a figuras próximas do Chefe de Estado russo e seguiu-se a diplomatas de parte a parte, com os embaixadores chamados às respetivas capitais. As movimentações recentes por parte de Putin podem, por isso, ser vistas como uma demonstração de força perante Biden.
“Putin quer chamar a atenção de Biden e negociar a partir de uma posição de força. Biden chamou-lhe assassino, por isso, agora, Putin está a dizer ‘sim, e os assassinos passam à ação, portanto terão de lidar comigo’”, afirma Katharine Quinn-Judge, do International Crisis Group.
Por outro lado, pouco depois de tomar posse, Joe Biden prolongou o tratado de limitação de armas nucleares New START com a Rússia, e apesar das duras críticas e ameaças ao Kremlin, o Presidente norte-americano convidou o seu homólogo russo para uma cimeira, num local neutro, que poderia ser um passo importante para a melhoria das relações ente Washington e Moscovo.
Há mais de 150 mil soldados russos na fronteira com a Ucrânia, diz chefe da diplomacia europeia
“Putin gosta de clareza nas relações, gosta de saber com o que é que os seus parceiros estão comprometidos. É por isso que ele respeita [o Presidente turco, Recep Tayyip] Erdogan, apesar de a Turquia e a Rússia terem muitos conflitos de interesses”, afirma Andrey Kortunov, para justificar porque é que o Presidente russo estará disposto a reunir-se com Biden.
“A porta do diálogo continua aberta e acho que vamos ver mais contactos entre a Rússia e o Ocidente nos próximos meses”, antevê o diretor-geral do RIAC, um think tank que é conhecido por ser levado em conta pelo Kremlin. “Não quero soar demasiado otimista, porque acho que há grandes desentendimentos em relação a questões essenciais, mas isso não significa que nada possa ser feito”, concluiu o analista