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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entrevista ao ex-diretor do El Mundo: "Entre intrigas dos poderes político, económico e mediático, não sabia de onde vinham as balas"

David Jimenez dirigiu por um ano um dos mais influentes jornais espanhóis e desvendou o lado negro do jornalismo num livro. Foi um best-seller. Políticos e empresários adoraram. Os jornalistas não.

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No livro que David Jiménez escreveu sobre a sua experiência de um ano à frente do El Mundo, entre 2015 e 2016, as principais figuras do jornal não são identificadas pelo nome, mas sim por alcunhas que ele inventou — e que depois da saída do livro se colaram à pele das personagens. Há o Cardeal, que era o seu administrador, sempre a pressioná-lo para não publicar histórias que irritassem os anunciantes ou os políticos do PP. O Silicon Valley, o jovem executivo contratado na Califórnia para modernizar o grupo. O Dois, que nomeou para seu adjunto e passou a vida a conspirar contra ele. A Digna, a sua principal redatora de política. Os Nobres, os jornalistas mais velhos e com mais estatuto, mas sempre resistentes à mudança. E Rasputine, o chefe da Opinião que tinha uma atração fetichista pelos gabinetes da direção, que ocupava quando estavam vazios. As personagens são tão boas que menos de uma semana depois de o livro El Director ter sido posto à venda, o autor já tinha propostas de dez produtoras e plataformas de streaming para transformar a história numa série.

A nomeação de David Jiménez para diretor foi uma surpresa. Tinha passado as duas décadas anteriores como correspondente para a Ásia, baseado em Hong-Kong e temporariamente em Banguecoque. Tinha uma vida de sonho para qualquer jornalista, sempre a caminho das principais histórias mundiais nos 40 países que cobria: guerras, revoluções, catástrofes e outros grandes eventos. Tão perto da reportagem pura e dura e tão longe das intrigas de corredor na sede que, quando chegou, nem o porteiro do El Mundo o queria deixar entrar. Passava tão despercebido que meses depois de ter assumido o cargo, numa cerimónia de entrega de um prémio a um toureiro, Ana Botella, mulher de José Maria Aznar, confundiu o diretor do jornal com o próprio toureiro homenageado. E ficou tão estupefacto com o ambiente e as corruptelas que encontrou na redação em Madrid que começou logo a tirar notas para escrever este livro.

Durou um ano no cargo. Passou outro ano em conflito judicial com a empresa, mas acabou por receber uma indemnização e conseguiu colocar no acordo uma cláusula que salvaguardava a sua liberdade de expressão, para poder publicar este relato, que tanto agradou a políticos e empresários, não por eles saírem bem tratados na narrativa, já estão habituados a serem criticados, mas por verem também pela primeira vez algumas denúncias arrasadoras sobre os jornalistas, feitas a partir de dentro. David Jiménez esteve terça-feira na conferência Justiça e Democracia na sede do Observador, que pode rever aqui. No fim deu-nos esta entrevista.

“De cada vez que mudava algo que afetava alguém com influência dentro da empresa tinha de parar”

O teu livro é dedicado aos futuros jornalistas. Mas se algum futuro jornalista ler o livro, pode ficar muito desiludido quanto a uma profissão vista como idealista.
Eu tinha esse medo, de desmotivar candidatos a futuros jornalistas. Mas aconteceu o oposto. Recebo todos os dias currículos de jornalistas que dizem: “Se algum dia fundares o El Normal [um jornal idealista, referido no livro, projetado para nascer em Espanha mas que não chegou a avançar], quero fazer parte dele”. Para muitos estudantes, o livro foi uma chamada de atenção para a profissão em que vão entrar. E provocou um desejo de mudança e transformação. É bom que eles sofram um golpe de realidade sobre o que vão encontrar.

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Não conseguiste fazer esse El Normal quando chegaste à direção do El Mundo.
Agora toda a gente quer que eu faça o El Normal. A minha ideia era fazê-lo no El Mundo. Tinha um plano muito ambicioso de transformação de um jornal tradicional num momento de grande crise e dificuldade, depois de dois processos de reestruturação com despedimentos. Chamaram-me dizendo que precisavam de uma mudança radical. Ofereci-lhes um plano com uma mudança radical, mas rapidamente percebi que queriam um rosto que fingisse que queria uma mudança e que não a concretizasse. Porque de cada vez que mudava algo que afetava alguém com influência dentro da empresa tinha de parar. Há quem diga que era um projeto que morreu por excesso de romantismo. Mas num momento de crise e de falta de confiança dos leitores nos meios de comunicação, é preciso recuperar algum idealismo.

Quando cheguei ao El Mundo, o que mais me perguntavam era: "Vieste para matar o papel?" E eu respondia: "Nenhum diretor pode decidir o que se vai passar com o papel. Quem vai decidir isso são os leitores. Devemos é fazer o melhor produto disponível em todas as plataformas. E os leitores é que escolhem".

Percebe-se no livro que tiveste dois tipos de dificuldades. Uma tem a ver com as relações com os acionistas e administradores, as pessoas que têm o dinheiro e não querem que o jornal continue a perder milhões. Outra foi a resistência à mudança e a inércia dos jornalistas, aqueles com mais anos de carreira e a quem chamas no teu livro Os Nobres. Qual dessas duas dificuldades foi mais difícil de gerir?
É curioso porque essas duas frentes se uniram num dado momento para me derrubarem da direção. O meu jornalismo independente era visto como uma ameaça pela empresa e, por outro lado, os Nobres, o establishment, viam como uma ameaça as mudanças que eu queria fazer. Os meios de comunicação tradicionais são muito conservadores, sejam de esquerda ou de direita, e os jornalistas não gostam das mudanças. Historicamente, os jornais fizeram-se mais ou menos da mesma forma, adicionando cor ou acrescentando um modelo de distribuição diferente, mas basicamente faziam-se da mesma maneira. Nada teve de mudar para os jornalistas durante séculos. E de repente chega a internet e muda tudo. E dizes a jornalistas que já têm muitos anos de carreira: agora tens de fazer outras coisas. Tens de te adaptar à tecnologia e aos tempos. Podiam ver a tecnologia como uma oportunidade ou como uma ameaça. E a maioria viu-a como uma ameaça. Perante a ameaça fecharam-se sobre si próprios e ergueram um muro dizendo: vamos defender o jornal como era antes. Creio que se cometeu um erro muito grave.

Aconteceu no El Mundo ou em toda a indústria?
É internacional, nuns países a resistência foi maior e noutras menor. Viveu-se uma contra-revolução nas redações. Quando cheguei ao El Mundo, o que mais me perguntavam era: “Vieste para matar o papel?” E eu respondia: “Nenhum diretor pode decidir o que se vai passar com o papel. Quem vai decidir isso são os leitores. Devemos é fazer o melhor produto disponível em todas as plataformas. E os leitores é que escolhem”.

Encontrei um político do PSOE numa festa que me disse: “Sabes que os políticos gostaram muito do teu livro?” E eu: “Mas como, se critico tanto os políticos?” E ele: “Os empresários também adoraram”. “Mas também critico muito os empresários”. E ele: “Sim, estamos habituados. Mas o teu livro pela primeira vez critica e põe a nu aqueles que nos criticaram durante tanto tempo”.

E como era a relação com os acionistas?
Lembro-me de reunir com os acionistas italianos, que me pressionavam muito para obter resultados em 3 meses. E eu respondia: o projeto que quero fazer é a 3 anos. E dava-lhes sempre o exemplo do Washington Post quando foi comprado por Jeff Bezos. Puseram em marcha um plano para 3 a 5 anos. Embora o jornal fosse uma marca reconhecida globalmente, estava em crise e perdia dinheiro. Não tinha credibilidade. A marca tinha perdido peso. Quando Bezos o comprou decidiu fazer uma aposta na qualidade, investir no jornalismo, pensando em resultados a longo prazo. Claro que os italianos respondiam: “Nós não somos Jeff Bezos, não temos o músculo financeiro de Jeff Bezos, nem temos 3 anos”. Porque os bancos em Itália estavam a pressionar para reaver créditos, o que pediam era planos de despedimentos, menos jornalistas, menos salários, menos custos. Os banqueiros não estavam a pensar no futuro do projeto jornalístico, mas sim em como reaver o dinheiro que tinham emprestado. Isso produziu um choque entre uma visão a longo prazo e uma visão de curto prazo, que levou a que tenhamos continuado em crise, com despedimentos, cortes, e menor qualidade dos jornais, o que leva a mais despedimentos, num ciclo vicioso.

“A corrupção que denunciávamos na política tinha-se propagado ao jornalismo”

Falas muito da vida dupla dos jornalistas, que por um lado questionam a corrupção na sociedade, mas por outro nalguns casos cometem os mesmos erros e aceitam diariamente pequenas corruptelas. Como se faz a gestão disto?
Encontrei um político do PSOE numa festa que me disse: “Sabes que os políticos gostaram muito do teu livro?” E eu: “Mas como, se critico tanto os políticos?” E ele: “Os empresários também adoraram”. “Mas também critico muito os empresários”. E ele: “Sim, estamos habituados. Mas o teu livro pela primeira vez critica e põe a nu aqueles que nos criticaram durante tanto tempo”. E de certo modo tem razão nisto: nós jornalistas adoramos criticar a corrupção e denunciamos os empresários quando não fazem bem as coisas, e denunciamos o sistema judicial, até podemos afundar um restaurante com uma crítica negativa. Mas não gostamos nada de falar de nós próprios, nunca o fazemos, não fazemos autocrítica. E em Espanha, como havia um código de silêncio sobre a imprensa, o nosso gueto, o nosso establishment, não saía nada sobre o que se estava a passar. No entanto, a corrupção que denunciávamos na política tinha-se propagado ao jornalismo. O nepotismo que denunciávamos estava nas redações. Muitos dos que denunciavam estavam também avençados ou recebiam ofertas regulares, vendiam-se. E falávamos disso em círculos pequenos. O meu livro desvenda essas histórias. E claro, quem ficou mais irritado foram os jornalistas. “Tu eras um dos nossos, porque é que revelas tudo isto?” Precisamente porque se queremos reconquistar a confiança do público, temos de começar por limpar a nossa casa. E isso é urgente. Em Espanha, o jornalismo está hoje mais corrompido do que a política ou as empresas.

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Mais corrompido por estar mais dependente?
Não é só dependência política, ou a corrupção de renunciar aos princípios de interesse público do jornalismo em troca de interesses económicos. Falo de jornalistas que recebem dinheiro e avenças de empresas sobre as quais escrevem. Noutro dia estive com os dirigentes de um clube da 1ª divisão do futebol espanhol e disseram-me: “Quando chegámos, o que nos surpreendeu foram os gastos no orçamento para comprar jornalistas”. Avenças aos jornalistas desportivos para não criticarem os dirigentes. Isto converteu-se numa norma em Espanha. Ou por exemplo as viagens em que grandes empresas levam jornalistas a ver jogos dos mundiais de futebol. São jornalistas que se deparam com situações em que terão de falar dessas empresas. Se aceitaste essa viagem, isso compromete a tua independência. Mas não é o mesmo aceitar uma viagem que cobrar uma avença de uma empresa. A Telefónica, durante muitos anos, pagou avenças a 80 dos jornalistas mais conhecidos de Espanha. Tinha um presidente muito controverso, mas não encontrarás uma só crítica em todos os meios espanhóis durante todos os anos em que ele esteve à frente da empresa. É quase impossível. E é por isso. O que ofende muitos companheiros é eu dizer que em Espanha não é possível comprar um jornalista, mas pode alugar-se um.

Na conferência [do Observador] disseste que entendias que não devias ir passear de iate com um empresário ou ir à festa de casamento da filha do primeiro-ministro. No livro contas uma cena divertida, em que Ana Botella te terá confundido com um toureiro a quem ias entregar um prémio. Garantir-te-ia mais independência não te relacionares com as pessoas poderosas e influentes, mas também perdes acesso a informação.
É uma linha muito fina. Quando cheguei a diretor, mantive muita distância face às empresas do IBEX (índice bolsista espanhol), porque estavam a sustentar o meu jornal, graças à publicidade. Entendia que isso podia reduzir a minha independência. Mas sim, são pessoas muito informadas e tens de manter contacto com elas. A seguir, quando comecei a vê-los e a almoçar com eles, começou o pedido de favores. E nalguns casos de maneira muito óbvia, recordam-te quanto dinheiro estão a investir no teu jornal. Em troca esperam que zeles pela reputação dos presidentes dessas empresas, que não publiques coisas negativas. E aí tinha um dilema moral: por um lado não queria perder o investimento publicitário, por outro queria poder criticar esses empresários. Por exemplo, Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, é uma das pessoas mais poderosas de Espanha. E no livro conto como ele foi decisivo na destituição do diretor do jornal Marca. E posteriormente no afastamento do meu sucessor, Pedro Cuartango.

Pelo caso Ronaldo.
Sim, comecei eu a investigação ao caso Ronaldo, num consórcio com a Der Spiegel. E quando essa investigação foi concluída, eu já não era diretor. Mas o diretor seguinte decidiu publicar e recebeu uma pressão direta e frontal de Florentino Pérez. Deixou de ser diretor: publicar a informação custou-lhe o cargo.

Estou convencido de que Ronaldo não fez nada, nem lhe ocorreu pensar no El Mundo. Em Espanha há uma série de pessoas, onde se inclui Florentino Pérez, que acreditam que são intocáveis. Nem se tratava de Ronaldo, tratava-se de defender a posição de Florentino Pérez, que queria manter Ronaldo como jogador do Real Madrid, e sabia que esse processo das Finanças espanholas estava a pôr em perigo a continuidade de Ronaldo na equipa.

A defesa da imagem de Ronaldo teve mais força do que a defesa do interesse público em Espanha.
Nem sequer é culpa de Ronaldo. Estou convencido de que não fez nada, nem lhe ocorreu pensar no El Mundo. Em Espanha há uma série de pessoas, onde se inclui Florentino Pérez, que acreditam que são intocáveis. Nem se tratava de Ronaldo, tratava-se de defender a posição de Florentino Pérez, que queria manter Ronaldo como jogador do Real Madrid, e sabia que esse processo das Finanças espanholas estava a pôr em perigo a continuidade de Ronaldo na equipa.

“Encontraram essa forma particularmente miserável de me pressionarem”

Também falas do teu dilema numa notícia sobre a Telefonica, quando o teu administrador te diz que tens de optar entre a notícia ou provavelmente uma parte da tua redação, porque a notícia te vai fazer perder a publicidade e sem publicidade a empresa vai ter de despedir alguns jornalistas.
E isso é o que tornava tão difícil o cargo de diretor. Estava mais confortável como correspondente no Afeganistão do que como diretor do El Mundo, num centro de poder. Na guerra sabes de onde vêm os tiros. No El Mundo, entre intrigas e conspirações do poder político, económico e mediático não sabes de onde vêm as balas. Além disso, chegou um momento, depois de ter suportado muitas pressões durante seis meses, em que eles perceberam que não me importava se perdesse o meu cargo. Tanto se me dava. Tenho os meus livros, as minhas viagens, oportunidade de escrever para o NYTimes, não tenho essa necessidade de manter o estatuto de diretor do El Mundo, não me interessava. Então encontraram essa forma particularmente miserável de me pressionarem, que é dizerem-me: “Bueno, não te importas com o teu trabalho, mas e o trabalho dos teus companheiros? Se publicas estas informações, haverá consequências no orçamento da empresa e quem paga são os redatores”.

Como é que a redação lidava com essas pressões?
Acho que o diretor tem a obrigação de ser o muro que protege a redação das pressões. Não partilhava com a redação essas pressões. Se vou ter com um jornalista que está a cobrir a Telefónica e lhe digo “olha, ligou-me o presidente da Telefonica e não quer que publiquemos esta história, mas vou publicá-la mesmo assim”, de certo modo estou a dizer-lhe: “Puseste-me numa situação difícil, desta vez vou publicar, mas não me tragas complicações”. Por isso é importante que o diretor assuma essas pressões, o que me deixou numa posição de absoluta solidão. No ano em que fui diretor do El Mundo senti-me muitas vezes muito sozinho, porque não podia partilhar as pressões com ninguém, também não as podia tornar públicas porque isso iria afetar a imagem do diário, e por outro lado tinha que tomar decisões de princípio, sobre o que é o jornalismo. Sabendo além disso que de cada vez que tomava uma decisão contra os poderes económico e político, tinha cavado uma sepultura ainda mais funda, e que os administradores da empresa já estavam a preparar o caixão.

Também é impressionante que fique a ideia de que as regras e dificuldades são as mesmas noutros grandes jornais, como El País ou ABC.
As mesmas ou até piores nalguns casos. O El Mundo foi o jornal mais corajoso da história democrática de Espanha, publicou investigações que contribuíram para esclarecer os principais casos de corrupção. O El País, na época de Juan Luís Cebrián, estava completamente manietado pelas suas relações com o PSOE. No ABC, os diretores tradicionalmente também estiveram sujeitos a estas pressões. Os jornais em Espanha escolheram sempre um partido para apoiar. E isso também era para protegerem os seus interesses. Sabiam que na época do bipartidarismo iam governar uns ou outros. Quando governavam os teus davam-te licenças de rádio, de televisão, mais publicidade institucional, etc. Depois mudava o governo e as coisas melhoravam para outro. Mas sabias que ia voltar a tocar-te a melhor parte do pastel durante uma época. Tudo isso se desmoronou um pouco, porque se desmoronou o bipartidarismo, está tudo muito fragmentado. E os meios de comunicação estão muito fragmentados com a pressão da internet.

E são menos influentes também.
Muito menos. O livro El Director foi censurado nos grandes meios de comunicação de Espanha. E mesmo assim tornou-se um best-seller [com vendas de cerca de 50 mil exemplares]. Saíram entrevistas sobretudo em meios digitais novos.

Achas que houve um acordo para não te deixarem falar?
Eu sei que houve um acordo, porque tenho amigos nesses meios de comunicação e alguns tentaram.

O que lhes disseram?
Que não se podia falar neste livro. Em meios dos mais importantes do país. Um elemento de uma rádio contou-me: “Todos lemos o livro, adorámos, queríamos fazer algo, mas deram-nos ordem para não se mencionar ‘El Director’”. Cheguei a ter entrevistas acordadas com jornalistas muito conhecidos, que à última hora, receberam ordens dos diretores para não se fazer nada. Mas esses meios tradicionais já não têm o monopólio da informação. Não podem evitar que as pessoas saibam da existência do livro, porque há meios digitais que não têm esse problema.

O facto de teres sido enviado especial a guerras dá-te muita tranquilidade. Se estiveste um mês em Tora Bora, na montanha, a fugir dos talibãs, pões as pressões políticas um pouco em perspetiva. Qual é a pior coisa que me pode acontecer: despedirem-me? Onde estive antes, o pior que me podia acontecer era matarem-me.

Foste correspondente durante 20 anos na Ásia. Como mudaste interiormente quando assumiste o cargo de diretor, com todos esses dilemas e essa solidão? Passaste a dormir pior?
Isso interessa muito aos produtores da série de televisão que se vai fazer baseada no livro. O lado humano. É uma mudança radical. De estar a 10 mil km como correspondente em Hong Kong, com liberdade, a viajar, tendo como única preocupação enviar a crónica a tempo, para de repente chegar a um jornal em crise, a ter de gerir 300 jornalistas, com a publicidade e as vendas do papel em queda, despedimentos, cortes, uma situação política com novos partidos a emergir, e o establishment muito assustado com o que se poderia passar, no meio de uma crise económica brutal. De repente, as preocupações crescem muito. O tempo que um diretor passa a fazer jornalismo é na verdade muito escasso. Está a apagar fogos todos os dias. Isso criou muita frustração: não poder dedicar mais tempo ao jornalismo, que é do que gosto. E ver-me de repente envolvido no que se espera institucionalmente de um diretor de um grande jornal de Espanha. São como ministros, tens de ir a cerimónias públicas e reuniões constantemente, há uma função de representação que pode ser esgotante.

Não foste feliz como diretor.
Fui mais feliz como correspondente. Como diretor, a primeira etapa foi de uma grande esperança, quando vês as fotos dessa primeira fase é só sorrisos. E a segunda metade foi toda uma guerra. Mas o facto de teres sido enviado especial a guerras dá-te muita tranquilidade. Se estiveste um mês em Tora Bora, na montanha, a fugir dos talibãs, pões as pressões políticas um pouco em perspetiva. Qual é a pior coisa que me pode acontecer? Despedirem-me? Onde estive antes, o pior que me podia acontecer era matarem-me. Isso ajudou-me muito a manter a tranquilidade em tempos duros. Repetia sempre à minha equipa: não se preocupem, vai correr tudo bem.

E acreditavas nisso?
Acreditava.

“Quando saí, tentaram anular-me completamente como jornalista. Foi muito duro”

Fala-nos do dilema de escrever o livro. Contas que começaste a tomar notas logo na primeira semana no cargo. Mas em algum momento sentiste o dilema de denunciar algumas das pressões enquanto estavas como diretor?
Não tinha dúvida quanto à necessidade de publicar o livro e denunciar a corrupção nos meios de comunicação…

Mas não o podias ter feito enquanto estavas no cargo? Não teria sido mais corajoso, mais eficaz e mais útil?
Como diretor do El Mundo, escrevi um dos artigos mais duros, e que adianta muito do que está no livro. Surpreendeu-me tanto o que encontrei quando voltei a Espanha. Há especialmente um artigo onde conto como se repartem as tertúlias políticas…

[Puxa do telemóvel, faz uma busca rápida e começa a ler o início deste artigo, publicado a 29 de Novembro de 2015, seis meses depois de ter assumido o cargo de diretor. Tem como título “Este país não é para debates (sérios)” e arranca assim: “Se lhes descrevesse um país onde o Governo manobra para despedir jornalistas incómodos, impõe tertulianos em programas de rádio e televisão e pressiona os diretores dos meios de comunicação para evitar as críticas, pensariam que falo de uma república das bananas. Ocorre em Espanha. (…)”]

Mas há uma grande diferença: é geral e abstrato, não são denúncias em concreto.
Nesse dia ligou-me o presidente da minha empresa dizendo que era um artigo contra ele, que se via refletido no artigo.

Mas para os leitores não. Era algo que se pode dizer de todos, de forma generalizada, não em concreto. É menos forte.
É verdade que tens duas opções: tentar mudar as coisas a partir de dentro e, se não conseguires, denunciar o que se passa. Podia ter feito muito mais crítica. Quando falava na rádio e na televisão denunciava a situação que ocorria no país e nos media. Isto era visto pelos meus companheiros como uma traição, de certo modo. A função do jornalismo é denunciar as coisas para que melhorem, não como entretenimento. Descobri mais coisas sobre como estava o jornalismo quando saí, do que no ano em que estive como diretor e tinha acabado de chegar a Espanha. Quando me despediram, processei a empresa e estive um ano numa batalha judicial. Nessa batalha, tive de investigar como estava o papel dos media e até que ponto as grandes empresas estavam a condicionar os media. Chamei como testemunhas pessoas muito importantes no país, políticos, empresários e administradores dos media.

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Como foi esse processo? Não contas muito sobre isso no livro.
É curioso porque no livro original estava contado com muito mais detalhes e tive uma discussão com a editora, disseram-me que estava um pouco extenso depois do momento em que me despediram. O processo era interessante para mim a nível pessoal, mas na editora acharam que não era tão importante para o livro. Gostava que essa parte tivesse mais importância na série, porque foi uma batalha mais dura do que as que travei como diretor do El Mundo. Quando processei a empresa, invoquei a cláusula de consciência prevista na constituição, que protege os jornalistas em Espanha e que muitos jornalistas nem sabem que existe. Quando me despediram, ofereceram-me outra vez o lugar de correspondente e indemnização, mas rejeitei isso tudo e processei a empresa. E durante esse ano a empresa tentou oferecer-me cada vez mais dinheiro e melhores condições em troca de uma cláusula de confidencialidade que me impedia de publicar o livro. Eu rejeitei. Eles no fim aceitaram as condições, incluindo uma muita importante, que é terem admitido que o meu despedimento não teve nenhuma razão. Isso está para a história num papel. Mas foi muito difícil esse ano porque foi uma batalha contra o “establishment”, que reagiu de forma muito dura contra mim. Não fui só despedido do El Mundo. Fui despedido da Onda Cero, da Antena 3, quando ia a uma universidade dar uma conferência tentaram que fosse cancelada, tentaram anular-me completamente como jornalista. Esse ano foi muito duro. Hoje estou particularmente orgulhoso da forma como resisti. Graças a isso está aí o livro e pôde ser contada a verdade.

Quando começaste a escrever o livro?
Dois dias antes antes do julgamento, quando a empresa admitiu as minhas 3 condições: reconhecer que eu não tinha feito nada de mal, pagar a indemnização correspondente e pôr essa frase de respeitar a minha liberdade de expressão constitucionalmente reconhecida, anulando assim qualquer confidencialidade que me impedisse de contar a história. Depois demorei um ano. Não foi particularmente difícil quanto à escrita em si, mas a cada parágrafo tinha de medir quem afetava ou prejudicava, não queria provocar danos desnecessários ao jornal. Havia amigos que podiam ficar zangados, e alguns zangaram-se mesmo. A parte mais difícil do livro é sobre a redação. Nos filmes de Hollywood (Spotlight, The Post, etc.) as redações são apresentadas de uma maneira romântica, cheias de heróismo. Uma das partes menos bem compreendidas do meu livro é que faço um retrato muito cru e duro da vida numa redação. Todos os que trabalhamos numa redação sabemos que há fações, choques, grupos, que nem sempre há uma concorrência salutar. E quis refletir isso de uma forma honesta e real, com o bom que tem uma redação, mas também com o mau.

E optaste por alcunhas.
Sim, identifiquei por alcunhas todos os jornalistas do El Mundo. Todos os empresários e políticos fora da Unidad Editorial [nome do grupo que detém o El Mundo, a Marca e o Expansión, entre outros meios] aparecem com os seus verdadeiros nomes e apelidos.

Nem todos do El Mundo aparecem com alcunhas. Alguns têm o nome real. E todos sabem quem são.
O que aconteceu é que a seguir fizeram listas na Internet, chegaram-me listas com os nomes reais por grupos de WhatsApp, toda a gente já sabe em Espanha quem são. Mas outra razão é que eu não queria que o livro fosse só sobre o El Mundo. Estes personagens existem em quase todas as redações e queria que o público pudesse perceber como funciona qualquer redação. Alguns jornalistas protestam por não ter posto todos os nomes verdadeiros. Os leitores que não são jornalistas identificaram-se muito melhor com as personagens desta forma. Têm alcunhas que são adjetivos: a Digna, o Rasputine, o Cardeal.

O uso de alcunhas para identificar os jornalistas funcionou muito bem para os leitores. E por azar as personagens do livro acabaram por ficar também na vida real com as alcunhas que lhes dei. Não os tinham. Agora, não só no jornal mas fora, toda a gente lhes chama assim. Até os políticos.

Pode ser um recurso literário, mas como denúncia perde força.
Todos os políticos e empresários saem com nomes e apelidos. Quando se denuncia o pagamento de avenças a jornalistas por empresas como o Corte Inglês e outras, saem com nomes e apelidos. Quem sai protegido? Os que estão dentro da redação, porque me parece irrelevante para a história se foi o jornalista y ou z quem fez um coisa ou outra dentro da redação, porque o mundo da redação é exatamente o mesmo no El País, no ABC e noutros jornais.

Num livro de denúncia dos jornalistas, estão nomes de políticos e empresários, mas não de jornalistas.
Também estão. Mas a redação merece certa proteção tendo em conta que comecei como estagiário no El Mundo, que considero a minha casa, pelo que também há um vínculo emocional com esse projeto e esse jornal. Mas até eu, ainda hoje, tenho dúvidas e não tenho a certeza de ter sido a melhor opção. Acho que funcionou muito bem para os leitores. E por azar as personagens do livro acabaram por ficar também na vida real com as alcunhas que lhes dei.

Não as tinham antes?
Não as tinham. Agora, não só no jornal mas fora, toda a gente lhes chama assim. Até os políticos.

Enquanto estavas a escrever, sentiste em algum momento a necessidade de falar com algum deles para confirmar se determinado episódio tinha mesmo sido assim ou como o tinham visto? O facto de não o teres feito é outra das críticas que se fez ao livro…
Havia 300 jornalistas no El Mundo. Se cada um tivesse escrito um livro sobre o que aconteceu nesse ano, teriam sido 300 livros diferentes. É normal. O meu livro é um testemunho na primeira pessoa do que eu vivi. Entendo que outras pessoas tenham vivido de outra forma. Recentemente, na apresentação de um livro, encontrei-me pela primeira vez com ex-companheiros do El Mundo e pensei que ia ser uma situação violenta, mas foi o contrário. Foi muito cordial, falámos, uns disseram-me que tinham gostado do livro, outros fizeram reparos, disseram que não o teriam escrito, cada um deu a sua opinião de forma cordial e entendo perfeitamente as críticas. O que digo é que se este livro tivesse sido de um ex-banqueiro a contar como funciona a banca por dentro, não estaríamos a discutir se devia ou não tê-lo escrito. Os jornalistas estariam a aplaudir esse ex-banqueiro que revelasse como funciona por dentro a banca. Mas como é um livro sobre jornalismo e não gostamos que se fale de nós e que alguém conte os nossos segredos… Nós dedicamo-nos a desvendar os segredos e a desnudar os outros, mas não aceitamos que isso possa ser feito connosco. Aí está uma incoerência com a qual eu quis romper.

Não houve processos?
Não houve processos, entre outras razões porque é difícil processar a verdade.

Terias gostado, porque teria dado mais publicidade ao livro?
A editora teria ficado encantada, sim.

Tens alguma cláusula para não pagar indemnizações judiciais?
Não. Se houver um processo sou responsável. E assumo isso com naturalidade.

“No jornalismo, quando fazes bem o teu trabalho normalmente despedem-te”

Que outras reações tiveste da redação?
Ias ficar surpreendido com a quantidade de gente dentro do jornal que em privado me felicitou, dizendo que já era hora de alguém contar o que contei. Em Málaga, uma jornalista que trabalha há 20 anos para o El Mundo disse-me que tinha chorado a ler o livro. É o que vivemos, a emoção de um projeto ao qual dedicámos toda uma vida e como nos roubaram, como a ambição de uns poucos destruiu essa ilusão. Outra pessoa de dentro escreveu-me que tinha lido e que a primeira parte era verdade, a segunda era certa. Isso resume bem o livro. É honesto, ao ponto de ter auto-crítica: no livro admito os meus erros, a minha falta de preparação para o cargo e muitas coisas que fiz mal.

E o teu ex-administrador, o Cardeal, reagiu?
Se certas pessoas tivessem gostado do meu livro teria sido um fracasso: os que despediram quatro diretores do El Mundo em 3 anos e meio e 200 jornalistas do jornal e acabaram com o espírito livre e independente do El Mundo. Imagina que eles tinham gostado do meu livro. Eu teria ido para casa a chorar.

Não acho que o Estado deva sustentar economicamente os meios de comunicação, porque isso deixa muito pouca capacidade de independência. Nós jornalistas temos de vigiar o Estado. Temos de denunciar os abusos do governo e do Estado para que não abuse das suas competências. Como vamos fazer tudo isto se é o Estado que nos sustenta?

E sabes se foi lido em Itália [na sede da administração do grupo de media que controla o El Mundo]?
Dizem-me que alguns administradores o leram e que estão cada vez mais perto das minhas posições sobre o tipo de pessoa que têm em Espanha a dirigir a sua empresa. O livro vai ser traduzido internacionalmente em vários países e espero que saia em italiano e em português e noutros idiomas, porque a linguagem do livro é universal. Não se cinge ao El Mundo ou a Espanha. Creio que é uma batalha pela verdade e pela defesa do serviço público que deve ser o jornalismo. E uma batalha pela integridade frente ao poder. O jornalismo é uma das carreiras mais estranhas do mundo, porque quando fazes bem o teu trabalho normalmente despedem-te. Noutras profissões quando fazes bem o teu trabalho promovem-te, dão-te um salário maior. E isto é importante porque obriga os jornalistas a terem a coragem de dizer que não. Muitas vezes disse que não no ano em que fui diretor sabendo que isso me prejudicava, sabendo que se continuasse a dizer que não ia aceitar certas coisas ia perder. É uma profissão vocacional. Há outros milhares de profissões que não te obrigam a decidir moralmente, mas o jornalismo sim. Obriga-te a tomar uma posição de coragem moral.

Em Portugal está a falar-se muito do financiamento estatal para salvar os jornais da crise. Como vês essa hipótese?
Mal. Eu acredito nos meios de comunicação públicos, como a RTVE, são importantes quando são independentes dos partidos. Mas não acho que o Estado deva sustentar economicamente os meios de comunicação, porque isso deixa muito pouca capacidade de independência. Nós jornalistas temos de vigiar o Estado. Temos de denunciar os abusos do governo e do Estado para que não abuse das suas competências. Como vamos fazer tudo isto se é o Estado que nos sustenta? É muito difícil nestes tempos, mas não se pode renunciar, nem abdicar dos princípios. Devemos manter a integridade do jornalismo, procurar modelos diferentes e sobretudo apostar na educação, que é chave para o futuro do jornalismo. Se não criamos desde a escola cidadãos com pensamento crítico, nunca vão valorizar o papel que a imprensa tem na democracia. Temos de fomentar a importância da informação para o público tomar decisões. É uma crise da sociedade. Há pessoas disponíveis para pagar pela Netflix, ou pelo Spotify, por entretenimento, ou se for a um bar…

O problema de apostar na educação é que demora muito tempo.
Sim, mas há que tentar.

Mas muitos meios podem não resistir os 1o a 15 anos que demora até que a aposta na educação faça efeito.
Sim, mas com essa desculpa nunca começas. É preciso fazer um esforço hoje para convencer as pessoas de que vale a pena apoiar o jornalismo independente e que isso tem uma influência direta na sua vida. Nós vamos fazer o papel de vigilantes do sistema que garante os seus direitos. Há que fazer pedagogia constante e a melhor maneira de o fazer é fazendo bom jornalismo, publicar histórias que são relevantes para o público, é a melhor maneira de demonstrar que somos úteis. Se mesmo assim o modelo económico não funcionar, teremos um grave problema nas democracias liberais.

“Uma redação como a do El Mundo é uma House of Cards”

Quanto tempo depois de teres publicado o livro recebeste propostas para o adaptar a uma série?
O livro só tinha uma semana nas livrarias e já tinha recebido uma dezena de propostas de produtoras e de plataformas de distribuição. Nunca imaginei que o livro tivesse o êxito que teve. De repente pus-me a pensar que uma redação como a do El Mundo é uma House of Cards. As intrigas, as conspirações dentro da redação criam um ecossistema com muito potencial para contar histórias. Depois há as personagens da redação, que são maravilhosas. Junta-se a relação com o poder, que tem muito potencial para uma série de tv. Tens o mundo do dinheiro, outro ingrediente. E os guionistas ainda vão arranjar algo erótico, para juntar os três grandes elementos, que são poder, dinheiro e sexo. Só espero que não me arranjem uma amante na série, creio que a minha mulher não estaria de acordo com isso.

Ficaste como produtor executivo da série. Vai ser muito ficcionada?
Estamos a trabalhar no guião. No acordo a que cheguei, eles podem dramatizar ou ficcionar, mas o espírito do livro, a mensagem que procura transmitir vai ser mantida. Para mim isso é o mais importante.

Vais ter direito de veto?
Mais do que isso, gostava de pensar que teremos uma conversa construtiva. Quando a Fremantle me comprou os direitos, o que me atraiu especialmente nesta proposta foi o facto de me quererem envolver no projeto para manter o espírito do livro. Nestas primeiras semanas de trabalho estou a encontrar esse respeito ao livro e ao autor. A Fremantle está a negociar em que plataforma a série será exibida.

Há gente que me pergunta se me arrependo de ter aceitado o cargo de diretor do El Mundo. Não. Tinha de ter tentado. O jornalismo é estampares-te contra o muro mil e uma vezes. É uma profissão difícil. Mas quem vive em Portugal ou em Espanha tem de pôr a situação em perspetiva. No México, quem faz jornalismo arrisca-se a levar dois tiros.

Vês a hipótese de uma segunda temporada?
Imagino que a primeira temporada tenha 6 a 8 episódios. Mas toda a gente sabe que despedem o diretor do El Mundo no fim do livro e acaba aí. Se os criadores da série quiserem fazer algo mais, teremos de ver. Eu não fecho a porta.

Será difícil voltar a dirigir um jornal, até pelo receio das pessoas que trabalharem e falarem contigo de que escrevas tudo num livro outra vez.
Nenhum jornal me quer ter como diretor e eu não quero dirigir nenhum jornal. Neste ano percebi que os gabinetes da redação não foram feitos para mim.

Nem para fundar um jornal, como o El Normal, de que falas?
Quem sabe se a criação do El Normal não pode ser a segunda parte da série? Um jornal corajoso e independente, que não tenha em vista mais do que o interesse dos leitores. Essa é uma possibilidade. Está decidido? Não. Há investidores em Espanha que me abordaram para me oferecer a possibilidade de o fazer, há jornalistas muito bons interessados e é uma das opções que admito. Seria bom que Espanha, França Portugal ou China tivessem projetos que as pessoas podem dizer que são idealistas, românticos. Isso faz falta na nossa profissão.

Vamos supor que ficas rico com o livro e a série. Investirias o teu dinheiro na criação de um jornal? Seria um bom investimento?
Se criar o El Normal, parte do investimento será meu.

E se perderes tudo?
Estou acostumado a ganhar e a perder. A vida é uma montanha russa. Mas se não tentas… Há gente que me pergunta se me arrependo de ter aceitado o cargo de diretor do El Mundo. Não. Tinha de ter tentado. O jornalismo é estampares-te contra o muro mil e uma vezes. É uma profissão difícil. Mas quem vive em Portugal ou em Espanha tem de pôr a situação em perspetiva. No México, quem faz jornalismo arrisca-se a levar dois tiros. Na China há jornalistas que estão presos mais de uma década por criticarem o seu governo. E na Síria quantos jornalistas morreram tentando contar a guerra? Há possibilidades de um diário correr bem ou mal. Mas há pessoas que estão a fazer jornais em ditaduras e que enchem a prisão, estão a arriscar a vida e o futuro da família por contar a verdade. Não podemos não arriscar por termos medo de que possa não sair bem.

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