A 14 de julho de 1936, um dia depois do assassinato por partidários da Frente Popular do deputado monárquico e nacionalista, membro da Renovación Española, José Calvo Sotelo, o embaixador dos EUA em Madrid redigiu e enviou para o Departamento de Estado em Washington um despacho em que se referia aos “acontecimentos extraordinários” ocorridos em Espanha nas “últimas 48 horas”. Os eventos a que aludia neste e noutros despachos escritos ao longo de meses eram, basicamente, uma sucessão de episódios de crescente violência política e de violação da lei praticada por indivíduos e grupos identificados com as esquerdas ou as direitas radicais. Todos esses episódios tinham “agravado a séria situação […] existente em resultado da continuada agitação política e social”. Não lhe custava, portanto, desde Madrid, concluir que ou bem que o Governo “agia energicamente para impor o respeito pela lei e pela ordem” ou a sua posição seria “insustentável”.
Quando o sucinto relato e breve análise dos eventos ocorridos a 13 e a 14 de julho chegou ao Foggy Bottom, o que aconteceu a 27 daquele mês, a profecia que se podia deduzir das palavras usadas pelo embaixador Claude Bowers apenas pecava por defeito. Não só a posição do Governo e do regime se tinham tornado absolutamente insustentáveis – aliás, o presidente do Conselho de Ministros, Santiago Casares Quiroga, fora substituído, primeiro, por Diego Martínez Barrio e, logo de seguida, por José Giral Pereira, tendo ainda o executivo visto substancialmente alterada a sua composição –, como havia dez dias que parte das Forças Armadas, vários setores da sociedade espanhola e uma fatia do seu imbricado e exuberante leque político-partidário tinham iniciado e prosseguido um “levantamento” armado contra o Governo argumentando laconicamente, como fez o general Mola em conversa telefónica com Casares Quiroga, que a Frente Popular era incapaz de manter a ordem.
Claude Bowers foi até ao último momento da sua missão em Espanha um defensor da República e um crítico radical dos sublevados e do seu programa político. Mas independentemente das suas simpatias, a verdade é que o diagnóstico que fez da trágica situação espanhola foi quase sempre esclarecido e objetivo, facto que o tornou num observador sagaz da vida política e social da Espanha que, entre 1936 e 1939, seguiu caminhos e conheceu privações que alguns profetizaram, mas muitos poucos considerariam possíveis.
As origens
O falhanço do levantamento militar mergulhou Espanha numa guerra civil que os sublevados previram, de algum modo prepararam e se prolongou por dois anos e oito meses, dando início àquele que foi o mais marcante acontecimento da história espanhola do século XX. Foi também um dos mais relevantes da história europeia e global da primeira metade daquele século, sendo que os seus efeitos políticos, ideológicos ou culturais ainda hoje se fazem sentir, sobretudo em Espanha. Este acontecimento que envolveu e apaixonou Governos e populações da Europa às Américas, mas também na Ásia ou em África, e muito ficou a dever, nas suas origens e desenvolvimento, aos ventos que começaram a soprar na história europeia desde a Grande Guerra, do triunfo do bolchevismo na Rússia e do subsequente avanço e consolidação de soluções políticas que convencionalmente se foram designando como fascistas, teve, no entanto, e sobretudo, causas e motivações espanholas.
A confirmação de que assim foi decorre de distintas circunstâncias e acontecimentos, mas desde logo da constatação de que, até ao deflagrar da guerra civil, as duas forças políticas espanholas, Partido Comunista Espanhol e Falange Espanhola, que mais e maiores ligações, além de cumplicidades, podiam ter, e tinham, com acontecimentos, ideologia e formações políticas estrangeiras – nomeadamente, o fenómeno do comunismo soviético, por um lado, e do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão, por outro –, possuíam afinal escassa implantação política e social. Nas eleições de fevereiro, entre os 263 deputados eleitos pela Frente Popular apenas 14 eram comunistas, ao passo que a Falange não elegeu nenhum deputado entre os 133 que a coligação de direita viu serem escolhidos pelos espanhóis (a coligação centrista elegeu os restantes 77 deputados).
Portanto, e ainda que não beneficiando da perspetiva privilegiada sobre os acontecimentos que só a passagem do tempo costuma proporcionar, o retrato da situação político-social feito por Claude Bowers, como por muitos outros observadores da vida política e social espanhola nos primeiros cinco meses em que durou o Governo da Frente Popular, era, no essencial, correto e rigoroso ao valorizarem os aspetos espanhóis de uma crise que se agravava todos os dias. Independentemente de, sobretudo a partir de março de 1936, parte direita civil e militar ter retomado e depois intensificado vários processos conspirativos de derrube da Governo eleito, conspirações essas que depois convergiram para uma única, a verdade é que a vontade de ação dos conspiradores esteve até ao último momento muito dependente da forma como o Governo e os seus apoiantes agiram, não tendo elementos estrangeiros desempenhado qualquer papel substantivo na preparação da conspiração e nas decisões tomadas para que ela se materializasse.
O Governo em funções em meados de julho de 1936, a generalidade dos seus apoiantes mais radicais – organizados em movimentos, partidos e sindicatos armados –, assim como os opositores mais extremados à Frente Popular e à sua alegada ou real, voluntária ou involuntária, inépcia governativa, enveredaram por um caminho e fizeram escolhas que, com o passar do tempo, tornaram inevitável a tentativa de derrube do Governo através de um pronunciamento militar que se viria a transformar numa guerra civil. Foi por isso aos espanhóis e só aos espanhóis que coube a responsabilidade pela crise política e social e pelo radicalismo ideológico existente nas vésperas da guerra civil e que prolongou já depois desta iniciada.
Ao contrário do que se possa pensar, a inevitabilidade do levantamento militar e, também, da guerra civil, decorreu do facto da preparação de ambas ter sido demorada e cuidadosa, mas, também, de ter estado sujeita a revisões, adiamentos e, até, a um possível cancelamento. Este comportamento por parte dos conspiradores, sobretudo oficiais-generais do exército, deveu-se àquilo que consideravam ser a continuada e irreversível perda de credibilidade do Governo e da República junto dos mais variados setores da sociedade espanhola, a começar pelo exército, passando pela igreja católica e acabando em grandes interesses económicos ligados a todos os setores de atividade, mas, também, a boa parte das classes médias urbanas ou rurais.
Esgotados os poucos recursos que podiam ter, na Primavera e no início do Verão de 1936, impedido que o pior acontecesse, em meados julho de 1936, a sublevação militar e a guerra civil (já) não puderam ser evitadas, do mesmo modo que não havia maneira de pôr cobro ao crescente radicalismo das esquerdas apoiantes do Governo da Frente Popular. Uma e outra alimentavam-se, mesmo que os seus reais ou potenciais seguidores não fossem maioritários na sociedade espanhola.
Porém, evitada, ou eficazmente combatida, podia ter sido a capacidade demonstrada pelos sublevados, no decorrer das semanas iniciais da guerra, para se tornarem donos e senhores de fatias importantes do território metropolitano espanhol (o mesmo não pode ser dito dos territórios coloniais espanhóis situados no norte de África, no golfo da Guiné [Rio Muni e Fernando Pó] e as Canárias cuja ocupação pelos sublevados só muito dificilmente podia ser impedida). Um misto de impotência e de incompetência governamental verificada nas primeiras semanas pós-17 de julho criaram condições, internas e externas, não só para a continuação do esforço de guerra dos sublevados como, e sobretudo, para que pudessem vir a tornar-se vitoriosos. Isto apesar de, em fases mais avançadas da guerra civil, os republicanos terem tido algumas oportunidades para inverterem o curso de uma guerra que lhes foi sempre desfavorável, e de os “nacionais”, sob a liderança político-militar unificada de Francisco Franco a partir de finais de 1936, terem tido menos possibilidades de ganhar rapidamente a guerra do que muitas vezes se pensa e diz.
O fracasso inicial do Governo, o primeiro entre muitos que os lealistas colecionaram até ao fim o conflito, e verificado após o sucesso limitado da sublevação militar, decorre de uma leitura simples, mas não simplista, dos factos. Quaisquer que fossem as divisões existentes no seio do campo lealista, certo é que o Governo nacional em Madrid, mas também os Governos regionais sediados na Catalunha e no País Basco, ficaram, direta ou indiretamente, com o exercício da soberania do estado espanhol e a gestão dos maiores e melhores recursos do país: os económicos (industriais, agrícolas, mineiros e relativos ao sistema financeiro), os sociais (regiões mais populosas e urbanizadas e com população possuidora de um maior nível de instrução escolar) e os político-militares (infraestruturas militares – terrestres, aéreas e marítimas – e o estatuto de Governo legítimo).
Isto porque Astúrias e País Basco, Aragão, Catalunha e região de Valência, Madrid, Extremadura e boa parte da Andaluzia permaneceram lealistas, assim como – Sevilha foi talvez a exceção mais notória – de todas as maiores e mais prósperas cidades espanholas (Santander, Oviedo, San Sebastian, Barcelona, Bilbau, Valência, Málaga e Madrid, entre outras). Porém, o acumular de erros e indecisões de natureza político-militar, a que há que juntar a dificuldade extrema em encontrar apoios externos, mas, ainda, as profundas divisões político-ideológicas que se acentuariam no campo lealista até, pelo menos, ao Verão de 1937, assim como a capacidade dos insurgentes para resolverem de modo minimamente capaz as suas diferenças no campo tanto político como militar, além de reunirem importantes apoios externos, político-militares e financeiros, ditaram o fracasso da República onde esta não podia fracassar e o êxito dos rebeldes onde estes dificilmente deveriam e poderiam ter tido sucesso. Tendo em conta o ponto de partida de um e de outro bando nos dias 17 e 18 de julho quando o levantamento se iniciou, primeiro no “ultramar” e só depois na “metrópole”, o que surpreende os historiadores hoje, como os protagonistas então, se for feita uma análise cuidada e objetiva, é, portanto, o fracasso lealista e o sucesso dos sublevados.
Quantas “Espanhas”?
Isto significa, por exemplo, que um debate tão velho como a guerra civil mas que nas últimas duas ou três décadas foi recuperado, sobretudo por historiadores, jornalistas, intelectuais e políticos, sobre até que ponto, no Verão de 1936, havia, ou não, duas “Espanhas” sociológica, política e ideologicamente inconciliáveis, ou, pelo contrário, uma pluralidade de “Espanhas” passíveis de convívio e (re)conciliação, que podiam ter prevalecido e evitado a espiral de violência iniciada ainda antes de julho de 1936 é, genericamente, a expressão de um desejo e de uma reescrita da história sem grande sustentação empírica. Não porque no Verão de 1936, ou meses ou anos antes, a sociedade espanhola se encontrasse efetivamente cristalizada e dividida entre e por dois bandos política e ideologicamente homogéneos e antitéticos. Ou seja, a Espanha de então não se dividia apenas entre “brancos” – que procuraram e conseguiram derrubar um regime e um Governo, e depois alguns dos importantes alicerces em que assentava sociedade espanhola – e “vermelhos” – que, inspirados nos modelos revolucionários do jacobinismo, do anarquismo e/ou do bolchevismo, tinham retomado (ou iniciado), após o triunfo eleitoral da Frente Popular, uma estratégia que pretendia forçar um Governo, constituído essencialmente por republicanos e socialistas moderados para os padrões de então, a pôr em prática uma estratégia de mudança rápida e radical da realidade política, mas também económica, social e cultural.
Portanto, ainda que houvesse descontentamento político e social generalizado com salários, horários de trabalho, distribuição e uso da propriedade, fosse ela rural, industrial ou urbana, realidades que constituíram o sustentáculo de programas revolucionários e uma parte importante da base de apoio e da vitória da Frente Popular nas eleições, por outro lado deve ser tida ainda em conta a aspiração de populações de muitas regiões de Espanha não só a uma maior autonomia político-administrativa mas, sobretudo, à autodeterminação e independência (casos do País Basco e da Catalunha). Por exemplo, a guerra civil no País Basco nunca foi um conflito político-militar em prol de um projeto de mudança radical de modelo de sociedade, mas uma contenda pela manutenção da unidade política de Espanha por parte do bando nacional, e um conflito pela independência vasca que unia a grande maioria dos bascos quaisquer fossem as suas crenças religiosas, opções político-ideológicas e clivagens sociais.
A existência de um conjunto de projetos políticos diversificados e até contraditórios, tanto no bando sublevado como no lealista, ajudam a perceber que embora seja redutor interpretar a Espanha de 1936 à luz da existência de apenas duas Espanhas antagónicas, inconciliáveis e intrinsecamente homogéneos, não significa que houvesse espaço para o êxito de soluções verdadeiramente conciliadoras e conciliatórias. Caso o ambiente de acelerada decomposição do Estado, do Governo e da II República que decorria nas vésperas do levantamento de 17 e 18 de julho fosse eficaz e convictamente combatido pelos setores moderados da Frente Popular, em especial para agradar às direitas, dificilmente se poderá afirmar que teria sido possível, no curto prazo-médio prazo, coartar de forma eficaz e duradoira o recurso à violência por grupos e indivíduos radicalizados tanto à direita como à esquerda, o que significaria que embora a guerra civil pudesse ser evitada, não queria dizer que a violência entre dois bandos bem organizados e com propósitos políticos claros – de afirmação de um projeto revolucionário por um lado, e contrarrevolucionário, por outro –, terminasse ou diminuísse de intensidade por si.
Finalmente, a luta sem quartel contra a igreja católica ocorrida em grande parte do território espanhol, que ia desde a perseguição aos sacerdotes, passando pela destruição de templos e proibição do culto, não esquecendo ainda a tentativa de diminuir a dimensão das Forças Armadas e do seu papel e influência tradicionais na sociedade espanhola, mostravam que a existência de várias Espanhas contrárias ou tementes a duas instituições nacionais e, em grande medida, tradicionais e tradicionalistas, não era um elemento pacificador, no imediato, ou a prazo, da vida política e social. Era, isso sim, uma realidade que potenciava e criava conflitos.
Os resultados
Depois da queda da Catalunha em fevereiro de 1939, a prioridade dos nacionais centrou-se na conquista de Madrid, que fracassara logo nos primeiros meses do conflito, e na conclusão de uma guerra que tinha tardado muito mais do que seria antecipado e desejado no Verão de 1936. À perda da Catalunha, o campo republicano respondeu com um levantamento militar liderado pelo coronel Segismundo Casado e pelo civil Julían Besteiro contra o Governo chefiado por Juan Negrín. O antigo chefe de Governo abandonou Madrid e o próprio território espanhol. Depois da vitória, os golpistas constituíram um Conselho de Defesa Nacional que tinha por missão negociar com os nacionais um acordo de paz, pensando que podiam ter sucesso onde Negrín tinha falhado. Antes, porém, aos métodos e ao programa dos golpistas vitoriosos opuseram-se milícias e tropas comunistas estacionados em Madrid, embora, após mais um breve e violento episódio de guerra civil no campo republicano, os comunistas tenham sido derrotados.
Infelizmente para Casado e Besteiro, Franco continuou a recusar tudo o que lhe fosse proposto que ficasse aquém de uma rendição incondicional. E, de facto, tinha razão para se mostrar confiante. Desde setembro de 1938, a Cimeira de Munique, que juntara os primeiros-ministros britânico e francês, além de Mussolini e de Hitler, para decidirem o futuro da região dos sudetas na Checoslováquia, tornou claro aos republicanos que a guerra estava perdida e aos nacionais que seria uma questão tempo, eventualmente apenas de alguns meses, para que a vitória finalmente lhes sorrisse.
Entre 26 e 29 de março os nacionais lançaram uma derradeira ofensiva militar sobre Madrid que os conduziu à conquista e ocupação da capital. A 1 de abril, Francisco Franco proclamou a vitória e, dias mais tarde, a 14, teve lugar na capital a parada militar que celebrou a vitória dos nacionais e seus aliados italianos e alemães sobre os inimigos “vermelhos”.
Durante a guerra civil, como nos anos do pós-guerra, a Espanha não viveu em paz. Se, entre julho 1936 e março de 1939, “brancos” e “vermelhos” tinham sido implacáveis na forma como reprimiram os inimigos do campo oposto e, por vezes também, dos seus próprios campos, sendo exemplar neste comportamento o processo de hegemonização política e militar que os comunistas espanhóis e dos seus aliados conduziram no seio do bando republicano, sobretudo durante o primeiro ano do conflito, após o fim da guerra iniciou-se um processo violento de eliminação física de milhares de reais ou virtuais militantes e simpatizantes daquele que durante a guerra fora o campo lealista.
Se a questão do terror “vermelho” foi em grande medida resolvida pelo franquismo e a ele a historiografia não tem querido regressar em força desde 1975, a questão do lugar do terror “branco” na memória e na história contemporânea de Espanha tem sido conturbada, seja do ponto de vista académico seja do ponto de vista político – partindo aqui do pressuposto que há uma separação entre estas duas realidades – e tanto junto de historiadores espanhóis como de hispanistas, nomeadamente britânicos, franceses e norte-americanos.
Por um conjunto variado de razões, desde que o Partido Popular, com José Maria Aznar presidente, governou Espanha com maioria absoluta entre 2000 e 2004, a história da II República, da guerra civil e dos anos iniciais do primeiro franquismo (1939-1959) começaram a ser alvo de uma tentativa, primeiro inorgânica e depois organizada, de manipulação política por parte de uma pluralidade de personagens e de movimentos e partidos de esquerda e/ou nacionalistas que não se vira, ou se vira pouco, nos cerca de primeiros 25 anos de vigência da democracia em Espanha. Sendo certo que havia um desconhecimento historiográfico razoável e um esquecimento social, pelo menos expresso publicamente, em torno da questão do terror “branco”, a verdade é que o interesse que o conhecimento daquele fenómeno tem despertado liga-se muito mais aos danos políticos e morais que possa infligir ao Partido Popular, em grande medida por ser visto à esquerda desde 2000, como herdeiro direto e dileto do franquismo, do que ao seu conhecimento enquanto questão histórica e moral que vale por si mesma e pela memória das vítimas e dos familiares do terror “branco”. Nesse sentido, e desde 2000, a guerra civil voltou a ser, e é-o cada vez mais, um tema importante da vida pública espanhola. Porém, diz mais sobre o intenso e muitas vezes pouco produtivo combate político-ideológico que decorre quotidianamente do que sobre o labor dos historiadores que, naturalmente, ainda se vai fazendo.