Nunca tinha acontecido na Espanha democrática: um juiz entrou esta terça-feira no Palácio da Moncloa, a residência oficial do primeiro-ministro espanhol, para interrogar Pedro Sánchez como testemunha no âmbito do caso de alegado tráfico de influências que envolve a sua mulher, Begoña Gómez.
A audição durou apenas dois minutos, mas foi o suficiente para fazer escalar a tensão de um caso judicial de evidentes contornos políticos, que já se arrasta há mais de 100 dias sem que tenha sido produzida qualquer prova dos alegados crimes, mas que em abril esteve perto de levar à demissão de Sánchez.
Agora, ao fim de meses a lamentar um caso que considera ser um assédio da direita (e que foi motivado justamente por uma denúncia de uma organização com ligações à extrema-direita), o primeiro-ministro espanhol moveu um processo judicial contra o juiz que está a conduzir a investigação, acusando-o de incumprir a lei.
Apesar da falta de indícios, o caso tem provocado múltiplos pedidos de demissão, sobretudo da parte do PP e do Vox (que está envolvido no caso, representando um conjunto de acusações populares), mas chega agora a uma nova fase, com a tensão crescente entre Governo e poder judicial a ganhar uma dimensão formal.
Um interrogatório polémico que durou apenas dois minutos
O juiz Juan Carlos Peinado, que lidera o 41.º juízo de instrução criminal de Madrid e tem o caso em mãos desde abril, entrou no Palácio da Moncloa às 10h20 desta terça-feira — para sair poucos minutos depois, com a certeza de que o chefe de Governo ia mover um processo judicial contra ele.
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À porta, esperava-o um protesto de cerca de 30 apoiantes da organização católica ultraconservadora Hazte Oír, com ligações à extrema-direita, que foi responsável por uma das queixas incorporadas neste processo. Os manifestantes gritavam que Sánchez tinha de “dar a cara”, exigiam “explicações”, pediam a demissão de Sánchez e classificavam o governo do socialista como uma “máfia”.
A perspetiva de um interrogatório judicial a um chefe de governo em funções, inédito na Espanha democrática, estava nas manchetes dos jornais desde a semana passada, quando o juiz Peinado decidiu convocar Sánchez para a audição. A mulher de Sánchez, a principal acusada no caso, já tinha recusado prestar declarações — e o juiz considerou que era necessário ouvir o próprio primeiro-ministro.
“Considera-se conveniente, útil e pertinente receber uma declaração do esposo da investigada, Pedro Sánchez Castejón”, determinou o juiz.
Pedro Sánchez quis prestar declarações por escrito, ao abrigo da legislação espanhola, que permite que os membros do Governo possam responder por escrito aos tribunais quando sejam convocados para testemunhar sobre factos de que tenham tido conhecimento no exercício das suas funções. Contudo, Peinado recusou o pedido de Sánchez, argumentando que pretendia ouvir Sánchez, não na sua qualidade de primeiro-ministro, mas na condição de marido de Begoña Gómez. Isto apesar de Begoña Gómez estar a ser investigada por alegados crimes de tráfico de influências e corrupção cometidos como mulher do presidente do governo.
Sánchez recorreu a outro mecanismo legal para evitar o depoimento: a lei espanhola isenta esposos e familiares diretos da pessoa sob investigação de prestar depoimentos, para evitar que tenham de testemunhar contra o esposo ou familiar.
O juiz sabia que Sánchez usaria este argumento, mas ainda assim avançou para o interrogatório, que, de acordo com o advogado de Begoña Gómez, durou “exatamente dois minutos”. O juiz perguntou a Sánchez se tinha algum grau de parentesco com algum dos envolvidos no caso; o primeiro-ministro respondeu que era marido da acusada; e o juiz confirmou que Sánchez estava isento de prestar declarações. Ao fim de dois minutos, o juiz estava novamente a sair do Palácio da Moncloa.
Devido a este interrogatório polémico, o estado espanhol moveu um processo contra o juiz Juan Carlos Peinado “em defesa da instituição da Presidência [do Conselho de Ministros]”. O processo foi movido pelo gabinete do defensor geral do Estado, em nome de Sánchez, junto do Tribunal Superior de Justiça de Madrid. O estado espanhol alega que o juiz em questão emitiu uma ordem “injusta” e sabendo qual seria o resultado.
De acordo com o El País, que teve acesso a esse processo, a queixa garante que não pretende levar a cabo um “ataque ao poder judicial”, mas, pelo contrário, defender o poder judicial de um elemento que se “afastou” do exercício da lei.
O advogado de Begoña Gómez também lamentou toda a cena ocorrida esta terça-feira na residência do primeiro-ministro. “Consideramos que era desnecessário afetar o funcionamento de uma instituição fundamental do Estado”, disse. “Não teve sentido realizar esta diligência.”
Governo e tribunal estão agora formalmente em pé de guerra devido a um processo a que o próprio Ministério Público espanhol já apontou a falta de indícios e a investigação desproporcional e imprecisa, liderada por um juiz que não tem justificado corretamente as suas decisões. Em sentido contrário, a advogada Marta Castro, do partido de extrema-direita Vox, que coordena as acusações populares, continua a pedir uma condenação da mulher de Sánchez.
A verdade é que desde abril até agora ainda não surgiu um único indício que aponte para a prática de qualquer crime por parte de Begoña Gómez — e Pedro Sánchez não tem hesitado em classificar este processo como um ataque político da direita e da extrema-direita contra o seu governo, usando os tribunais como arma.
Uma denúncia com base em recortes de jornal
O caso teve início nos primeiros dias de abril, quando chegou ao 41.º juízo de instrução criminal de Madrid uma queixa enviada pela organização de extrema-direita “Manos Limpias”. A organização é bem conhecida dos tribunais espanhóis. Autoproclama-se como um “sindicato de funcionários públicos” e dedica-se a apresentar queixas e a mover processos judiciais contra dezenas de políticos espanhóis por corrupção. São frequentes as queixas pouco fundamentadas ou mesmo falsas que acabam em arquivamentos — e a própria organização já foi várias vezes acusada e condenada por apresentar denúncias falsas.
A denúncia que chegou em abril às mãos do juiz Juan Carlos Peinado tinha como alvo Begoña Gómez, a mulher de Pedro Sánchez, e apontava para vários alegados indícios de corrupção e tráfico de influências em diferentes situações, incluindo na adjudicação de contratos públicos a um empresário e a suposta interferência no resgate público da companhia aérea Air Europa.
De concreto, a denúncia tinha pouco: baseava-se quase exclusivamente em recortes de jornais, vários dos quais se comprovaria mais tarde serem notícias falsas, que apontavam para os alegados crimes de Begoña Gómez. Ainda assim, o juiz decidiu abrir um inquérito e mandar a polícia investigar as denúncias — e, logo nas primeiras semanas, a polícia não encontrou mais do que coincidências temporais em alguns contactos.
Uma das linhas do caso prende-se com o alegado favorecimento de um empresário espanhol na adjudicação de contratos públicos. A denúncia alega que Begoña Gómez, aproveitando-se da sua condição de mulher de Pedro Sánchez, exerceu pressão no Governo para que a Red.es (entidade pública espanhola responsável pela transição digital, na altura dependente do Ministério da Economia) adjudicasse contratos à empresa Innova Next, liderada pelo empresário Juan Carlos Barrabés. Ora, Barrabés era um dos professores de um curso coordenado por Begoña Gómez na Universidade Complutense de Madrid.
A prova apresentada para comprovar esta alegada pressão? Para o concurso público, as Innova Next apresentou 32 cartas de apoio e recomendação de 32 instituições, empresas e entidades — e Begoña Gómez assinou uma dessas cartas de recomendação. Contudo, como já concluiu a polícia, as cartas de recomendação só tinham um peso de 8% nos pontos de avaliação das empresas concorrentes — e só foram tidas em conta, neste caso, as cartas de empresas tecnológicas. Ou seja, a carta de Begoña Gómez terá tido uma influência muito residual na adjudicação do contrato. A polícia diz não ter encontrado qualquer indício de pressão por parte da mulher de Sánchez — e lembra que a Innova Next tem muitos outros contratos públicos, incluindo com a câmara de Madrid, que é liderada pelo Partido Popular.
Outra linha do caso diz respeito ao resgate público da companhia aérea Air Europa durante a pandemia da Covid-19.
A denúncia aponta para uma coincidência temporal: na altura em que o governo espanhol negociou com a Air Europa o empréstimo de 475 milhões de euros para resgatar a companhia aérea no período crítico da pandemia, Begoña Gómez terá tido reuniões com Javier Hidalgo, o CEO do grupo Globalia, dono da Air Europa. Para quem fez a denúncia, isto era um indício que apontava para alegadas pressões da mulher de Sánchez para que o governo resgatasse a companhia aérea. Contudo, a versão de Hidalgo é outra: o empresário queria o apoio de Gómez num projeto de inovação em turismo, uma colaboração que a pandemia acabaria por fazer cair, nunca tendo havido qualquer contacto com a mulher de Sánchez centrada no financiamento da companhia aérea.
Além destas duas principais acusações, a denúncia também visava o facto de Begoña Gómez ter sido convidada a dar aulas na Universidade Complutense de Madrid sem qualificações para tal e a possibilidade de Gómez ter registado em seu nome um software desenvolvido na universidade. Ambas estas suspeitas já caíram por terra.
Cem dias sem indícios, mas novos arguidos
Apesar de a polícia não ter encontrado indícios concretos de qualquer crime, o caso rapidamente ganhou dimensão em Espanha. À direita, PP e Vox pediram a demissão de Pedro Sánchez — e, no final de abril, o governante socialista chegou mesmo a tirar cinco dias para refletir sobre se devia ou não manter-se em funções, lamentando “os ataques sem precedentes da direita e da extrema-direita” contra a sua mulher. O tema tem sido objeto de permanente debate político e está a dividir o país entre aqueles que apoiam Sánchez e pedem a sua continuidade e aqueles que exigem a sua demissão, associando-o aos alegados crimes de corrupção da mulher.
O caso também já deu origem a uma crise diplomática entre Espanha e a Argentina, depois de o Presidente argentino, Javier Milei, ter chamado “corrupta” a Begoña Gómez. Madrid exigiu um pedido de desculpas à Argentina, Milei recusou e Espanha decidiu retirar a sua embaixadora de Buenos Aires. Um mês depois, a presidente da comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso (PP), condecorou Milei com a Medalha Internacional de Madrid.
Na semana passada, os jornais espanhóis assinalaram o momento em que passaram 100 dias desde a denúncia contra Begoña Gómez, sem que qualquer prova tenha sido apresentada até ao momento. O caso ganhou contornos evidentemente políticos, transformando-se numa arma de arremesso da direita contra Sánchez, apesar de já haver vários recursos apresentados contra ações concretas do juiz que está a liderar o caso. O próprio Ministério Público diz não ver indícios de crime, mas os partidos da direita continuam a usar o caso como argumento contra Sánchez.
Ainda assim, o juiz Juan Carlos Peinado tem insistido em manter o caso vivo. No mês passado, quis ir a fundo na linha de investigação da Air Europa e pediu toda a documentação relativa ao resgate da companhia aérea. E, já esta semana, o juiz, que já tinha ouvido o empresário Juan Carlos Barrabés e o reitor da Universidade Complutense, Joaquín Goyache, como testemunhas, voltou a chamar os dois para prestarem declarações — mas, desta vez, na condição de arguidos. Isto apesar de as suspeitas sobre os dois já terem sido dissipadas durante a investigação.
Na sexta-feira passada, Begoña Gómez invocou o seu direito de não prestar declarações quando foi interrogada pelo juiz. Esta terça-feira, a polémica voltou a subir de tom com o interrogatório falhado a Pedro Sánchez.
Os últimos desenvolvimentos do caso já levaram o Ministério Público espanhol a denunciar uma “deriva processual”. O procurador José Manuel San Baldonero lamenta a “incerteza” no caso e acusa o juiz de levar a cabo diligências “com uma amplitude claramente desmesurada e carente de qualquer precisão ou definição”. Para Baldonero, o juiz passou os limites da sua ação e está a conduzir uma investigação sem “utilidade”, “sentido” nem “necessidade” — como a convocatória de Pedro Sánchez para depor como testemunha.
O procurador também acusou o juiz de recorrer a vários subterfúgios no caso. Critica, por exemplo, o facto de de ter chamado Barrabés e Goyache como testemunhas (o que os obrigou a falar, sem poderem escudar-se em qualquer direito a não depor), para logo depois os constituir arguidos (condição com a qual já poderiam recusar-se a depor). O procurador critica também os subterfúgios usados pelo juiz para recusar que Sánchez prestasse declarações por escrito — apenas para garantir que as câmaras de televisão filmavam a entrada do juiz no Palácio da Moncloa.