Menos votos, menos deputados, menos força no Parlamento. A esquerda saiu derrotada das eleições de 30 de janeiro, mas as consequências do enfraquecimento da sua influência política vão mais longe. Tanto as perdas eleitorais como o fim definitivo da geringonça tiram a Bloco de Esquerda e PCP alguns cargos políticos relevantes – ou põem, noutros casos, as decisões que eram até agora partilhadas à esquerda nas mãos (e na vontade de colaborar) do PS.
O caso mais imediato será o do Conselho de Estado, onde a harmonia à esquerda nascida nos tempos da geringonça fez com que o PS indicasse, desde 2015, militantes de peso do Bloco de Esquerda e do PCP. Os socialistas cediam, assim, dois lugares que poderiam ser seus em nome da convergência no órgão consultivo da Presidência da República.
A regra é clara: cinco dos membros do Conselho de Estado são eleitos pela Assembleia da República, depois de serem indicados pelos maiores partidos, PS e PSD (os restantes são escolhidos pelo Presidente da República ou têm assento por inerência, sendo que só o mandato dos que foram escolhidos pelos deputados termina com a dissolução do Parlamento).
Em 2015 e em 2019, o PS cedeu dois lugares à esquerda. Além de indicar o seu próprio representante (Carlos César), apontou ainda os nomes do fundador bloquista Francisco Louçã e do histórico comunista Domingos Abrantes. Na altura, a ideia passava precisamente por assegurar que o espírito de colaboração à esquerda se mantinha.
Agora, com o PS absoluto e sem necessidade de assegurar consensos deste tipo, dirigentes bloquistas e socialistas asseguram ao Observador que o assunto não foi conversado – mas no Bloco vai-se deixando o aviso: não será boa altura para o PS começar já a mostrar sinais de “absolutismo”.
Na cúpula do PS a garantia é de que a decisão não está fechada. O Bloco de Esquerda também esconde o jogo: oficialmente, diz-se apenas que a “decisão é da próxima legislatura”; mas, no interior do partido, há quem vá sugerindo que esta era uma oportunidade para António Costa provar que vai ser, de facto, “dialogante” e que a sua palavra pode ser levada a sério.
Para os bloquistas, seria do maior “interesse” de António Costa dar esse “sinal” à esquerda, até para segurar uma base de apoio composta por milhares de votos que em 2019 tinham sido de BE e PCP. Se o primeiro-ministro tem jurado que esta vai ser um maioria absoluta diferente, aberta ao diálogo, então aqui tem uma primeira oportunidade para causa uma boa impressão, sugere ao Observador um dirigente bloquista.
Os cargos que desaparecem no Parlamento
Este não é o único cargo que pode estar em causa – há outros que, matematicamente, Bloco de Esquerda e PCP perderão graças ao encolhimento das respetivas bancadas. Para o PCP a diferença não é tão grande, embora significativa: passou de dez deputados, ou 12 a contar com os do PEV, para estes seis. Mas, para o Bloco, a passagem de terceira para quinta força política implica várias mudanças.
Desde logo, nas presidências das comissões parlamentares. Uma vez que o regimento da Assembleia da República define que a composição das comissões deve ser “proporcional à representatividade dos grupos parlamentares” e que as presidências são “repartidas” pelos grupos em função do número de deputados, as presidências são definidas aplicando o método d’Hondt.
Com as alterações na correlação de forças no Parlamento, o Bloco deverá perder, assim, a única presidência de comissão que tinha, a do Ambiente (até agora, assumida pelo deputado que elegia por Braga, José Maria Cardoso, que falhou a eleição).
Como fonte conhecedora do processo recorda ao Observador, os grupos parlamentares mais pequenos costumam assegurar representação nas vice-presidências (há duas por comissão): na legislatura que terminou, o Bloco tinha oito e o PCP cinco (e o CDS uma, a de Agricultura, presidida pela ex-deputada Cecília Meireles). Agora, tanto o Chega como a Iniciativa Liberal terão hipótese de ocupar esses lugares nas comissões parlamentares, relegando Bloco e PCP para posições menos influentes.
É, aliás, algo de semelhante que acontece no cargo que tem gerado mais polémica nos últimos dias: o de vice-presidente do Parlamento, que é indicado pelos quatro maiores grupos parlamentares e votado depois pelos deputados. Os vice-presidentes deixam, assim, de poder ser indicados pela esquerda, que contava até agora com José Manuel Pureza (Bloco) e António Filipe (PCP) na Mesa da Assembleia da República, e passam a ser sugeridos por Chega e Iniciativa Liberal. A esquerda contava ainda com dois secretários da Mesa: Nelson Peralta (Bloco) e Ana Mesquita (PCP). Com a derrocada eleitoral de 30 de janeiro, nenhum destes nomes conseguiu segurar o assento de deputado.
A guerra do Tribunal Constitucional (salva pelo timing)
A influência política – e não só – dos partidos tem ainda outra dimensão, que neste caso não ficará posta em causa por uma questão de timing. Ainda no espírito de diálogo com a esquerda, o PS tem escolhido nomes que sejam sugeridos também por Bloco de Esquerda e PCP para o Tribunal Constitucional.
Um dos sinais de que o verniz estaria prestes a estalar à esquerda deu-se, aliás, quando, em 2020, Bloco e PS trocaram acusações, depois de os socialistas terem proposto sozinhos dois nomes que estavam em falta (com as saídas dos juízes Cláudio Monteiro e Clara Sottomayor) no elenco do TC. Um “rompimento com a situação política anterior”, acusava então o Bloco.
“Má fé”, respondia a líder parlamentar socialista, Ana Catarina Mendes, lembrando que Sottomayor fora, na verdade, uma indicação do Bloco – mas “para espanto de todos” decidira renunciar ao mandato, que dura nove anos, “ao fim de um ano e meio”, depois de ter visto um acórdão seu sobre a lei dos metadados chumbado pelos colegas.
Como consequência, o PS informou o Bloco de que indicaria sozinho os próximos nomes, deixando os bloquistas sem qualquer nome no elenco no TC. Os comunistas passaram ao lado desta guerra e a personalidade que indicaram — a juíza Mariana Gomes Canotilho — mantém-se ainda em funções.
Na altura do diferendo entre Bloco de Esquerda e PS, Ana Catarina Mendes pedia que o assunto não desembocasse numa “guerra partidária”, o que manifestamente não aconteceu — os bloquistas nunca esqueceram o golpe infligido pelo PS.
Desta vez, apesar da alteração da correlação de forças, não deverá haver dramas de maior: os únicos juízes que acabam os respetivos mandatos nesta legislatura são cooptados pelos pares e não escolhidos pela Assembleia da República, o que retira pressão à esquerda. As frentes de batalha serão outras.